A história da moral
Você tem-me cavalgado
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.
Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá–lo.
ALEXANDRE O´NEILL
Povo que lavas no rio,
que vais às feiras e à tenda,
que talhas com teu machado
as tábuas do meu caixão,
pode haver quem te defenda,
quem turve o teu ar sadio,
quem compre o teu chão sagrado,
mas a tua vida, não!
Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia…
Mas a tua vida, não!
Fui ter à mesa redonda,
bebendo em malga que esconda
o beijo, de mão em mão…
Água pura, fruto agreste,
fora o vinho que me deste,
mas a tua vida, não!
Procissões de praia e monte,
areais, píncaros, passos
atrás dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços…
Mas a tua vida, não!
Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama…
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las…
Mas a tua vida, não!
Subi às frias montanhas,
pelas veredas estranhas
onde os meus olhos estão.
Rasguei certo corpo ao meio…
Vi certa curva em teu seio…
Mas a tua vida, não!
Só tu! Só tu és verdade!
quando o remorso me invade
e me leva à confissão…
Povo! Povo! Eu te pertenço.
deste-me alturas de incenso,
mas a tua vida, não!
Povo que lavas no rio,
que vais às feiras e à tenda,
que talhas com teu machado,
as tábuas do meu caixão,
pode haver quem te defenda,
quem turve o teu ar sadio,
quem compre o teu chão sagrado,
mas a tua vida, não!
http://www.diariodetrasosmontes.com/cronicas/cronicas.php3?id=1361&linkCro=1
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https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=6fZXXJMofm8#!
Auteur : DEVEAU Jean-Michel Illustrateur : CACHIN Claude Collection : L'Histoire en images Renovo-lhe a expressao de toda a minha consideracao. Simao SOUINDOULA HISTÓRIA DE AFRICA A KILUANJE REAPARECE NA FRANCA ATLANTICA O facto foi notado com a recente publicação, em Saint-Herblain, perto da cidade Nantes, de “Nzingha, Reine d’Angola” da autoria de Jean-Michel Deveau e Claude Cachin. A obra saiu na editora Gulf Stream na sua coleção A Historia em imagens, chancela que conta, entre outras personagens, célebres, biografadas, o Louis Pasteur e a Marie Curie. Selado em 72 páginas, o álbum, de formato 22/28, profusamente, ilustrado, com um novo pseudo-retrato da “Dizonda” articula-se numa dezena de capítulos, entre os quais, distingue-se a apresentação dos grandes momentos educativos, púberes, da filha de Mbandi, a corajosa ida, como Embaixadora, da Princesa a São Paulo de Loanda, capital da constituída, arbitraria, Colonia de Angola, a laboriosa conquista do poder e o fim do seu longo reinado. Nota-se, entre os mapas, inseridos nesta publicação, o indicando os Reinos do Congo, Ndongo, Matamba e o pais dos Jagas Kassanji, no seculo XVII. Jean – Michel Deveau, redator dos textos, confirma que a adolescente, de comportamento bem varão, era, mesmo, a preferida do seu pai. A delicada missão de negociações da Princesa de Cabazzo, iniciada em 1622, com o Governador da Colonia, autoproclamada, sobre as terras do Ndongo, constitui uma das partes essenciais do livro. Sensível a importância da inteligência politica e militar, a irmã do Rei Ngola comprova a presença de navios negreiros, na baia de Loanda, e aprecia o dispositivo defensivo da cidade, que privilegia a linha marítima. Aprecia a natureza, fortemente, esclavagista da cidade, meio-seculo depois da sua fundação. REGENCIA A incontornável anedota da cadeira humana, o impressionante domínio do raciocínio diplomático, a sua estratégica conversão ao cristianismo e a sua perfeita expressão em português são realçados. São, igualmente, destacados as vivas rivalidades de natureza politica no seio da família real, sobretudo em 1617, as dificuldades militares e as contrariedades nas campanhas de evangelização. A pretensa Regência da Nzinga do trono e comentada, assim como as suas tentativas, falhadas, de ofensiva militar em direção ao Ndongo ocupado, a famosa Guerra das Ilhas do Coanza, empreendidas entre Kitaxi e Danji. A Muene recuara para o hinterland e com a ajuda dos errantes Jagas conquistara, o Reino da Matamba, em 1630. A evolução histórica dará uma acalmia a Grande Singhille com a ocupação de Loanda pelos holandeses de 1640 a 1648. Perante a restauração do domínio português e a sua idade avançada, a Ngola conduzira uma política diplomática conciliadora, eficaz, ate a sua morte. A publicação da Nzinga, Reine d’ Angola confirma a reputação que atingiu a Giague na Europa ocidental, e, particularmente, no Hexágono. ROSTO Este álbum segue diversas iniciativas de natura científica, literária e artística serão, aí, notadas. Essas consubstanciaram-se, do século XVIII ate aos nossos dias, pela edição de romances a carácter histórico, a evocação da figura da temível “Kiluanje” em várias obras clássicas assim como a publicação de relações antigas e de crónicas biográficas. E, e Paris que dará, nos meados do século XIX à filha de Kenkela - ka – Nkombe, um rosto. A obra de Jean-Michel Deveau e Claude Cachin, que tocara, particularmente, a juventude dos 77 países, total ou parcialmente, de língua francesa, e não só, e uma contribuição a elevação da “Nzinga van Matamba”, através das tradições e expressões orais, rituais e eventos festivos, ligados a Soberana angolana, a Património da Humanidade; dinâmica que esta a acompanhar, notavelmente, pela sociedade civil do Quadrilátero, com entidade tal como a Semba Comunicação, que acaba de organizar, em Luanda, o bem-sucedido Coloquio Internacional sobre a Rainha e que prontificar em Setembro, uma serie sobre a “Dona de Angolla”. Por Simão SOUINDOULA Historiador. Perito da UNESCO C.P. 2131 Luanda (Angola) Tel.: + 244 929 79 32 77 ------------------------------------ WEB: http://www.multiculturas.com
Comissão de Educação, Ciência e Cultura
28.fevereiro.2013 – 14h00
RELATÓRIO DE AUDIÊNCIA
Entidade: Professor Doutor Carlos Reis, Professor da Universidade de Coimbra e
filólogo
Dr. José Carlos Vasconcelos, diretor do Jornal de Letras
Recebidos por: Deputados do Grupo de Trabalho de Acompanhamento da Aplicação do
Acordo Ortográfico
Assunto: Acordo Ortográfico
Exposição: O Coordenador do Grupo de Trabalho deu as boas vindas aos intervenientes (o
Professor Carlos Reis a ser ouvido em videoconferência e o Dr. Vasconcelos presencialmente)
e solicitou-lhes que expusessem a sua posição sobre o Acordo Ortográfico (AO) e a sua
aplicação.
O Professor Carlos Reis iniciou a sua intervenção referindo que a vigência do AO não está em
causa e informando que o Brasil prolongou por mais tempo o período de transição, não
obstante o Acordo já esteja em vigor naquele país, sem questões e sem dramas.
Referiu depois que não foi claramente transmitido o que se pretende com o Acordo, situação
que favorece a reação negativa em relação ao mesmo. Nessa sequência, clarificou que se
pretende que o mesmo seja um instrumento político de apoio à internacionalização da língua
portuguesa. Realçou também que se espera tudo do mesmo, mesmo aquilo que ele não pode
dar.
Referiu que as intervenções na língua causam sempre perturbação e informou que em vários
países europeus houve intervenções recentes nesta matéria, nomeadamente em Espanha,
Holanda, França. Salientou depois que a ortografia é também uma questão de hábito e ainda
na década de 1990 foram introduzidas alterações, nomeadamente a nível de acentos, que
estão já assumidas e aceites.
Reiterou que as alterações ao AO precisam de habituação, defendendo que a comunicação
social e o ensino já o incorporaram. No entanto, reconheceu que há algumas dificuldades, que
entendeu que sempre acontecem e que se resolvem com o hábito e com o vocabulário comum.
Reconheceu que não se construíram instrumentos de regulação atempadamente,
nomeadamente o vocabulário comum, embora já exista o vocabulário ILTEC e os vocabulários
da Academia Brasileira e da Academia de Ciências de Lisboa. Realçou que a intervenção do
AO é inferior às alterações de 1911. Por outro lado, informou que o Brasil tem tido uma maior
intervenção no sentido do esclarecimento das alterações geradas pelo AO.
Concluiu que o Acordo permitiu que haja português com uma única norma (não português de
Portugal e brasileiro), como aconteceu noutros países com a respetiva língua.Comissão de Educação, Ciência e Cultura
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O Dr. José Carlos Vasconcelos referiu que o Acordo Ortográfico está integrado na política da
língua, realçando a necessidade de entendimento a nível da ortografia da língua portuguesa.
Fez depois referência à criação, na década de 1990 e com esse objetivo, do Instituto
Internacional da Língua Portuguesa, que não teve grande sequência.
Indicou como objetivo do Acordo a internacionalização da língua e a maior facilidade de ensino
e de aprendizagem da língua portuguesa. Referiu, a título exemplificativo, a situação de Timor,
que tem professores de Portugal e do Brasil (ao abrigo de acordos de cooperação), os quais
ensinam português de forma diferente, pretendendo-se que haja uma forma comum.
Realçou que uma ortografia única é fundamental para a presença do português nas instituições
internacionais e referiu que o Acordo era para entrar em vigor em 1994 e não se percebe a
demora verificada, realçando que as leis aprovadas têm de ser cumpridas. Informou depois que
só Angola ainda não ratificou o Acordo.
Defendeu que o Acordo não é para escritores e que há questões de grafia a reponderar e a
mudar, nomeadamente o para/para, espectador/espetador, mas seria dramático suspender ou
alterar a aplicação do mesmo.
Interveio depois o deputado Miguel Tiago (PCP), que agradeceu os contributos e referiu que o
seu Grupo Parlamentar não parte com objetivos fixos e deixa em aberto todas as hipóteses, de
vigência do Acordo Ortográfico ou de alteração do mesmo, conforme a interpretação que
fizerem do interesse nacional a nível da política da língua, defendendo que ainda não tinha
havido um debate global da sociedade com esta amplitude.
Referiu que o argumento de unificação da língua em plataformas internacionais não é um bom
exemplo, referindo que nas traduções, se houver unificação de ortografia (realçando que ainda
não há) e prevalência do brasileiro, isso terá um efeito dramático.
O deputado Michael Seufert (CDS-PP) referiu que no seu Grupo Parlamentar estão abertas as
várias soluções, informando que em 2008, aquando da discussão da Proposta de Resolução
do Acordo, houve duas intervenções de deputados do CDS-PP, uma a favor outra contra e que
essas posições se mantêm atualmente.
Depois, questionou se entendem que o objetivo enunciado, de unificação da língua, é
exequível, manifestando a convicção de que haverá sempre diferenças em relação às duas
formas de escrita. Perguntou ainda se houve uniformidade com o Acordo, referindo que
atualmente há 3 formas de escrita.
A deputada Rosa Arezes (PSD) informou que estava a fazer-se a primeira audição com
pessoas a favor do Acordo, salientando que pelo que se sabe mais de metade da população
portuguesa é contra aquele, o mesmo acontecendo com muita comunicação social. Questionou
depois que interpretação fazem desta relutância da população e da comunicação social e bem
assim quais as matérias a mudar no Acordo.
A deputada Gabriela Canavilhas (PS) realçou a riqueza das duas intervenções, referiu que a
não ratificação por parte de Angola se prende com o facto de não ter havido introdução de
palavras específicas daquele país e realçou que é lapidar a indicação do Dr. José Carlos Comissão de Educação, Ciência e Cultura
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Vasconcelos de que, se se fazem leis, as mesmas têm de ser cumpridas. Realçou a
sensibilidade com o desconforto de quem é contra, referindo que muitas vezes o poder político
deixa-se condicionar pela sociedade civil e defendeu a necessidade de ouvir a academia.
Questionou depois quais os procedimentos a levar a cabo para introduzir alterações que
melhorem a aceitação do Acordo e se o Vocabulário Ortográfico Comum pode suprir as
dificuldades atuais ou o que é que entendem necessário para esse efeito.
O deputado Luís Fazenda (BE) referiu que o Vocabulário Ortográfico Comum não quer dizer
único. Informou depois que o BE, em 2008, entendeu que era importante haver uma
aproximação das várias ortografias e uma plataforma comum da língua, sob pena de
prevalência da brasileira, considerando que acantonarmo-nos na nossa grafia não parece ser a
solução. O óbice agora indicado é que o AO não trouxe unicidade, mas aumentou a
divergência.
Referiu ainda 2 óbices atuais, a saber: o facto de o Brasil ter introduzido uma prorrogação,
enquanto o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros diz que Portugal não alterará a sua
posição; a existência de uma iniciativa legislativa de cidadãos contra o AO, em relação à qual
os Grupos Parlamentares deverão tomar posição, analisando os seus vários argumentos.
Indicou ainda o BE com diferenciação de posições e questionou quais os mecanismos de
atuação que temos se o Brasil não cumprir o Acordo.
Em resposta às questões colocadas e às observações feitas, o Professor Carlos Reis reiterou
que o Brasil está a cumprir o Acordo e bem, tendo apenas prorrogado o período de transição.
Em relação aos objetivos do Acordo, realçou que não se pretende unificar as línguas, mas
esbater as suas diferenças, aproximando-as. Nessa linha, fez referência a um artigo de Jorge
Candeias sobre as diferenças ultrapassadas pelo Acordo e as geradas pelo mesmo, tendo
concluído que se regista um balanço de 5 para 1 a favor das diferenças ultrapassadas.
Reiterou o objetivo do AO de dar ao português uma norma única, sem prejuízo das diferenças
existentes em algumas palavras. Salientou que a ortografia não tem influência no léxico e
normativo da sintaxe e realçou que o português é mais condicionado pela televisão,
nomeadamente pelas telenovelas brasileiras, que geraram a introdução de muitas expressões
e palavras.
Informou que já existe software formatado que respeita as diferenças existentes e defendeu
que o Vocabulário Ortográfico Comum é decisivo para mostrar a grafia das palavras diferentes,
tendo dado como exemplo a palavra autocarro.
Na sequência da indicação de que tinha sido feita a audição de professores e alunos do ensino
secundário, sugeriu a audição de alunos mais jovens, que estão a aprender a escrever, tendo
defendido que o Acordo permite uma aproximação da escrita com o que se diz.
Em traços gerais, manifestou uma opinião favorável em relação às vantagens do AO. Em
relação à indicação de que mais de metade da população é contra o mesmo, referiu que as
pessoas resistem às mudanças, mas há uma pura opinião em relação ao número de pessoas
que estão contra, sem recurso estatístico. Nessa linha, indicou que dos 10 jornais mais lidos, 8 Comissão de Educação, Ciência e Cultura
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já usam a ortografia do AO. Salientou ainda que há questões que têm de ser reajustadas, como
sejam o caso da utilização do hifen.
O Dr. José Carlos Vasconcelos referiu que o Brasil fixou uma data limite para aplicação do AO,
não obstante esteja já em franca aplicação do mesmo. Indicou que muitas pessoas estão
contra o Acordo para não serem ultrapassadas pelo Brasil, entendendo, no entanto, que a
inexistência de aproximação linguística é que geraria a prevalência da grafia brasileira.
Reiterou que a ortografia tem pouco a ver com a literatura e que o tempo resolve muitas coisas
de ortografia. Salientou que em 1911 também houve muita resistência à mudança de
ortografia, por exemplo à queda do y. Esclareceu que Timor subscreveu o AO. Por último,
salientou que a questão principal do Acordo é a internacionalização da língua e a introdução de
maior facilidade no ensino.
A documentação da audiência, incluindo a gravação, encontra-se disponível na página da
Comissão, na Internet.
Palácio de São Bento, 28 de fevereiro de 2013
A assessora
Teresa Fernandes
LER AÇORES programa 14 Ivo Machado – YouTube LER AÇORES programa 11 Nova Grafica Ernesto Resendesby … LER AÇORES … www.youtube.com/watch?v=PVS1GiKSOLE https://www.youtube.com/watch?v=PVS1GiKSOLE
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Julgo que se pode dizer que a literatura sempre teve, para mim, algum tipo de serventia em particular. Tomei contacto com ela aos quatro/cinco anos, soletrando de dedo esticado as palavras da Bíblia Sagrada, e logo ela assumiu a sua primeira utilidade prática. Nós éramos protestantes, manuseávamos “O Livro” – e era através d’“O Livro” que começávamos por manifestarmo-nos gente.
Mal se insinuava no horizonte a entrada para a escola, recebíamos do nosso avô um relógio e dos nossos pais um exemplar das Escrituras, tradução de João Ferreira de Almeida, Velho e Novo Testamento num volume só – e era com esse volume debaixo do braço, transportado numa pastinha de napa, sublinhado a marcadores fluorescentes e decorado nos seus versículos essenciais (João 3:16, todo o Salmo 23, o “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho”, do Evangelho Segundo Marcos) – era com esse volume debaixo do braço que nos tornávamos, por assim dizer, gregários.
Depois, aos catorze/quinze anos (talvez dezasseis, embora eu goste de acreditar que foi mais cedo), eu percebi, enfim, que a literatura existia [não foi só a literatura, mas tudo o resto que se descobre aos catorze anos é inconfessável]. Dei numa montra com um exemplar de “Um Deus à Beira da Loucura”, de Daniel de Sá [há aqui vários amigos e admiradores de Daniel de Sá], e, da primeira vez que alguém me pôs dinheiro no bolso, peguei em quinhentos escudos e fui comprá-lo.
Eu alinhava razoavelmente as frases na disciplina de Português, mas não fazia sequer ideia de para que servia um livro que não a Bíblia. Na verdade, era aquele qualificativo, “À Beira da Loucura”, atribuído ao Criador de todas as coisas, que me interessava. Eu julgava ter descoberto que o Deus que me cativara a infância era, afinal, invejoso e castigador, repleto de proibições e de cólera – e ter aquele livro sobre a mesa de cabeceira assumia duas serventias em simultâneo: não apenas me fazia sentir profundamente subversivo, como também menos só na posse desse segredo de que Deus, na verdade, era mau.
Depois, sim, depois li essa pequena novela de Daniel de Sá. E depois um romance. E outro, e outro – uma série deles, açorianos e do mundo. E ler livros tornou-se uma bandeira: aquilo que me distinguia no meio do marasmo de uma ilha triste e enfadonha. E depois a ideia de que escrevia bem tornou-se outra bandeira ainda: o meu melhor recurso para aplacar a menoridade social.
Nada disto, até aqui, é distinto daquilo que aconteceu convosco. E estamos de acordo: esta é, muito provavelmente, a serventia mais frívola que os livros e a literatura podem ter nos nossos percursos de vida: primeiro colocam-nos numa posição um nadinha mais a salvo das crueldades da adolescência (do tipo: “Deixa lá estar esse, que lê livros e deve ser meio maluco”) e depois até nos arranjam namoradas, nos tempos da faculdade, onde qualquer vago aforismo parece capaz de mobilizar a raiva, ou pelo menos de enternecer um coração.
Quem nunca precisou dos livros para prevalecer sobre a inaceitação, qualquer que ela seja, provavelmente nunca precisou dos livros como os livros devem ser precisados.
E depois, finalmente, veio a utilidade da idade adulta. Lidos ou mesmo escritos por mim, os livros passaram a servir-me para regressar a casa. Eu vivia em Lisboa há cinco, há dez, há quinze anos – e só os livros conseguiam devolver-me à ilha, inclusive à ilha que já nem sequer existia, e que aliás agora já não me parecia tão triste e enfadonha, mas alegre e exuberante e autêntica e minha. Também nisto coincidiremos, muito provavelmente: escrever, como ler, continua a ser sobretudo um modo de voltar. De voltar à infância. De voltar a casa. De voltar, até, a onde nunca sequer se esteve, se me permitem o paradoxo fácil. Um modo de fazer as pazes. E um modo de continuar.
Julgo que, se não tivessem sido os livros, eu nunca teria conseguido viver vinte anos em Lisboa, penando com a ausência da terra-mãe. E tenho a certeza de que, se não tivessem sido eles, não teria conseguido regressar em definitivo a ela, como fiz recentemente, instalando os meus modos e os meus gestos e os meus cheiros e as minhas rotinas e os meus objectos lisboetas na freguesia rural da Terra Chã, ilha Terceira, na casa onde os meus avós viveram os últimos cinquenta anos das respectivas vidas, e assim dizendo o meu próprio: “Para sempre. Aqui estou.”
Mas: para que me vão servir os livros agora? Eis a dúvida por que me deixei assaltar aqui há umas semanas, quando peguei nas cento e poucas páginas já escritas do romance em curso, as reli pela duocentésima vez e cheguei à conclusão de que estavam, afinal, “uma merda” – de que, em suma, eu não tinha a mínima ideia do que estava a fazer.
Para que vou eu precisar dos livros agora? Tenho as pazes feitas com Deus, de cuja música e de cuja arquitectura gosto tanto. Os vizinhos colhem batatas ou matam um porco ou fazem uma pipa de aguardente de néveda e vêm dependurar-me na porta um bocado, para eu provar. De namoradas, já tive mais do que merecia: duas – e, aliás, ou muito me engano, ou já casei vezes suficientes [casei com as duas].
E, entretanto, regressei de facto a casa. Regressei a casa e sento-me a ler o jornal da terra naquela mesma cozinha onde o meu avô, José Guilherme, se sentava a ler o jornal da terra – e às vezes vem o meu pai e senta-se comigo, e às vezes vem o Zé Maria e senta-se connosco, embora só eu o possa ver porque é um fantasma – e a certa altura já estamos à mesa todos, eu e aqueles a quem dediquei livros, sobre quem escrevi, cujo amor quis conservar, e pergunto-me: “Escrever o quê, agora?” E o que estou a perguntar é: “Escrever para quê? Terão alguma serventia, a partir daqui, os meus textos?”
Afinal, sem serventia, neste tempo, é que já não dá mesmo. John Banville está a reescrever Philip Marlowe e William Boyd a reescrever James Bond – talvez com a serventia de enriquecerem, talvez com a serventia de submeterem a literatura às regras do cinema comercial. Cada vez mais de nós estão a escrever segundo uma estranha corruptela desta língua, “exceção” sem P, “hei de” sem hífen, “para!” sem acento – talvez com a serventia de ajudarem a tornar a língua num mercado, talvez com a serventia apenas de agradarem a nem sabem bem quem.
E eu, não sendo capaz de reescrever Elias Santana, nem sequer João Garcia, e menos ainda Calisto Elói, escreverei agora para quê? “Apenas” para tentar reinventar ligações entre as palavras, na presunção de que poderei ser eu a iluminar-lhes novas utilidades e, por conseguinte, a abrir-nos a todos novos modos de pensar?
Logo eu, que vivo subjugado pelos computadores, dependente da Internet, submetido à ditadura dos iPhones e dos iPads – poderei ser eu a oferecer à literatura uma nova superação da sua subalternidade, a permitir-lhe vingar-se, mais uma vez, da urgência de uma serventia, a encontrar-lhe nova e superior serventia? E logo neste tempo em que se deixou, em definitivo, de ouvir as palavras “Este livro mudou a minha vida”? Logo agora, que até se convencionou que as elites se podem dispensar de uma cultura literária e serem simplesmente cretinas – e dizerem, inclusive, que se um sem-abrigo aguenta, temos todos nós mas é de aguentar também?
Resta-me, pois, juntar-me a Daniel de Sá e escrever para aquela montra de Angra do Heroísmo onde talvez passe um jovem de dezasseis anos e queira distinguir-se entrando. Resta-me, provavelmente, juntar-me a Daniel de Sá e a Álamo Oliveira e a Dias de Melo e a Madalena Férin e a Urbano Bettencourt e a Emanuel Jorge Botelho e a Vamberto Freitas e a Onésimo Teotónio de Almeida e a João de Melo – a João de Melo também, sim –, e aliás a tantos outros, e tentar oferecer aos meus livros a serventia de tocarem um rapaz de dezasseis anos e, quem sabe, deixá-lo para sempre obcecado com a ideia de voltar a casa.
Interessa-me pouco o debate académico em torno da existência ou não de uma literatura açoriana, em que tantos dos escritores da geração anterior à minha se desgastaram. Mas interessa-me que a literatura tenha sido, ao longo destes quase quarenta anos de autonomia política e administrativa dos Açores, uma das mais importantes ferramentas para a consolidação de uma identidade comum àqueles nove (e tão distintos) pedaços de terra dispersos pelo mar.
Por isso, se me dão licença, eu vou ficar ainda um pouco mais chato com os Açores. Os meus livros vão tornar-se mais açorianos ainda e as minhas conversas mais açorianas ainda e eu mais insistente ainda nas tentativas de despertar os lisboetas e os portugueses para a opressão silenciosa – para a opressão sorridente – de que a minha gente e as suas possibilidades estão a ser alvo.
Será essa, a partir de agora, e em definitivo, a minha serventia. “A serventia dos meus textos”, como diz o poeta. Também eu quero, enfim, tornar-me naquilo que sempre fui: um escritor de fronteira, atento à fúria dos elementos e atento à fúria dos homens.
E, pelo meio, talvez os meus livros venham a ser capazes de sugerir que, no fundo, nunca se regressa verdadeiramente a casa. Que, na verdade, a infância é irrepetível – e que, muito provavelmente, a maior tragédia de todas é mesmo essa.
Talvez eles possam, enfim, continuar a ser literatura. Ou mesmo serem-no finalmente.
***
“Estamos demasiado portugueses. Temos de tornar-nos novamente um pouco mais açorianos e um pouco menos portugueses.” Digo-o a meio de um raciocínio mais ou menos tortuoso sobre literatura açoriana, feito em resposta a uma pergunta da audiência. Não me soa tão mal quanto isso, e o incómodo com que alguns dos presentes reagem agrada-me. A dirimir.
***
Muito me agradaria se me convidassem todos os anos, para este ou para outro festival. Um festival literário a cada doze meses seria uma boa maneira de, face às fronteiras da ilha, me reposicionar perante a coisa literária, o seu universo, a sua magia. O vereador que preside à cerimónia de encerramento elogia-me a intervenção e convida-me a voltar em 2014. Talvez tenham sido palavras de circunstância. Mas fico satisfeito.
***
É, para além de um milagre e um exemplo de organização, o certame. Esta tarde vinha caminhando na rua com o Marmelo e logo apareceu um carro oficial, com um diligente motorista oferecendo-nos transporte para alguma parte. Inspirador.
***
Na última noite de copos, volta a cantar-se o “Grândola”, meio a brincar e meio a sério. Alguns dos mais zangados olham para mim, a conferir se tenho coragem. Já algum tempo que sou o conservador de serviço, e não se pode dizer que a ideia me desagrade. Mas canto com eles, naturalmente. Sou um democrata e não apenas respeito, como admiro (mais do que admirar: venero) o 25 de Abril. Exactamente como eles. E que possam questionar-se sobre isso é outro sinal da esquizofrenia em que neste momento vivemos.
***
De resto, até para isso este festival serviu: para confirmar a hipótese de os intelectuais não estarem a desempenhar devidamente o seu papel nesta crise. Identifica-se o problema, mas não se propõe alternativa – e, pelo meio, tudo se resume a um maniqueísmo ritualista muito mais próximo (de novo) do comportamento de uma claque de futebol, ou do dos adolescentes carregados de hormonas em dia de aula de Educação Física, do que do pensamento. É normal um intelectual comportar-se como um soldado, num certo instante ou durante um determinado período de tempo. Mas, se todos os intelectuais se comportam como soldados ao longo de um mesmo período de tempo, a quem poderemos recorrer como intelectuais?
***
Mas não, este não é um tempo especialmente auspicioso para um moderado. De facto, não é.