Ana Monteiro · Perdidos no verdadeiro Halloween

Ana Monteiro
56 mins ·
Perdidos no verdadeiro Halloween

Há uns bons anos passou na televisão uma série que me manteve “colada” ao ecrã durante várias temporadas. Isto na era pré-gravações automáticas em que não existia um botão que permitia “viajar” facilmente pelos últimos 7 dias.
A série “Lost” (Perdidos) girava à volta de um grupo de sobreviventes de um acidente de aviação que se encontravam numa ilha repleta de experiências enigmáticas. Uma delas, uma Escotilha, onde um morador solitário seguia escrupulosamente um protocolo que consistia em digitar uma sequência de números a cada 108 minutos e carregar um botão (“A partir do momento que o alarme soa, vocês têm 4 minutos para digitar o código ou algo de terrível acontecerá”; nem eles – nem os espectadores – fazem ideia do que poderá acontecer, mas decidem acreditar e seguir as instruções. Fazem turnos e, sem falta, continuam a carregar o botão que pode manter a ordem das coisas).
Ontem, ao ler o “Living Planet Report 2018” da WWF lembrei-me do tal “botão” do Lost, não no sentido em como bons selvagens podem ser condicionados a um novo comportamento mas no conforto que é haver um mecanismo que faz mover o mundo de forma infalível. Esse mecanismo chama-se Natureza.
Segundo o relatório ontem anunciado, as populações mundiais de peixes, aves, mamíferos, anfíbios e répteis diminuíram 60% (soletrem devagar: s-e-s-s-e-n-t-a por cento) entre 1970 e 2014.
Nas zonas tropicais da América do Sul e Central, as perdas chegam aos 89%.
Estes números deveriam fazer soar todos os alarmes da Terra. Imaginei que hoje, ao ligar a televisão, todos os canais estariam a noticiar tamanha catástrofe; estava convicta de que nas capas dos jornais de hoje aparecesse um 60% em letras garrafais e berrantes como nos dias em que o Benfica vence o Futebol Clube do Porto. Esperei discursos políticos e a criação de um sindicato do Ambiente. Imaginei que as publicações do relatório nas redes sociais teriam mais “likes” do que uma foto de um prato de chicharros.
Eu estava claramente errada. Este mau presságio não abalou, nem um centímetro que fosse, a trajectória fútil da humanidade.
60% às tantas não é assim tanto. Certamente fui eu que me tornei pessimista.
Imaginemos então que 60% da nossa família é exterminada ou 60% dos nossos colegas de trabalho ou da nossa equipa de futebol. Ou 60% dos vizinhos da nossa rua. Ou 60% de todas as nossas opções consumistas – da cerveja ao telemóvel.
Imaginemos agora que 60% de toda a Humanidade se extingue e os 40% que sobram têm de manter a “máquina” a funcionar de forma mais ou menos digna. Precisamos de alguém que cultive alimentos, de alguém que saiba fazer pão pão, de professores que eduquem as nossas crianças, de médicos que nos diagnostiquem e nos curem algumas doenças. Com apenas 40% não poderemos exigir muitas especialidades; teremos de nos contentar com generalistas e esperar que consigam fazer o melhor que puderem.
Os ecossistemas encontram-se assim amputados em 60% das suas capacidades, muitas delas desconhecidas para nós mas todas elas importantes para a nossa sobrevivência e para a sobrevivência do Planeta.
Por exemplo, um terço da produção alimentar mundial depende de polinização – por 20 mil espécies de abelhas, centenas de outros insectos e até mesmo de vertebrados como alguns pássaros e morcegos. Todas estas espécies se encontram em risco de extinção.
A Natureza é portanto o “botão” que mantém o equilíbrio do Planeta e da Vida (esta parece uma frase destinada a crianças do primeiro ano, mas não estou certa de que todos tenham assimilado esta ideia).
A culpa do extermínio destes 60% é nossa. De todos nós e do nosso consumismo desenfreado: agricultura intensiva, degradação dos solos, sobrepesca, desperdício de alimentos, alterações climáticas, todas as formas de poluição, sobre exploração de recursos naturais e energia, etc, etc, etc.
A culpa desta aniquilação em massa é também fruto da nossa crescente visão descartável de tudo o que nos rodeia e da nossa facilidade em desculpar a irresponsabilidade ambiental das pessoas e instituições.
Quando ouço responsáveis políticos apregoarem medidas que aumentam o conforto das pessoas penso se a palavra “conforto” também não estará em vias de extinção. Não me parece que nada de “confortável” possa advir do encurtamento ou desaparecimento de ecossistemas.
Não será também “confortável” ter um discurso radical ou disseminar o pânico generalizado mas creio que a fase das mezinhas e dos paninhos quentes já passou. Precisamos de medidas urgentes e concretas, de pactos de governação a longo prazo que incluam todos os quadrantes políticos.
Este é o maior desafio da Humanidade e está a passar-nos ao lado. Se não despertarmos para uma nova forma de consciência, espera-nos uma eterna noite de Halloween com muitos mortos-vivos, bruxas mercenárias de recursos, vampiragem e outras estranhezas.
O ser humano não consegue substituir-se ao “botão” que mantém a ordem das coisas nem possui um comando de um qualquer equipamento “Smart” que permita recuar no tempo e recuperar todos os anos de destruição infligida à Natureza. Mas o ser humano pode reaprender e encontrar-se.

a contaminação na Ilha Terceira

Partilha-se notícia do jornal Diário Insular de ontem, com o título: “Reportagem lançada a nível nacional confirma radiação artificial na Terceira”.
A TVI lançou, no passado fim-de-semana, duas reportagens que se debruçam sobre a possibilidade de contaminação radioativa na Terceira, em consequência do armazenamento de armas nucleares pelas forças norte-americanas estacionadas na Base das Lajes.
Na última das reportagens emitida pela cadeia de televisão são apresentados os resultados de análises a amostras de solo retiradas da zona Pico Careca. Os testes foram feitos por um laboratório francês independente, o CRIIRAD.
“Vocês enviaram-nos duas amostras de solo, que foram recolhidas perto do Pico Careca e observamos nessas duas amostras uma contaminação por elementos radioativos artificiais; Césio 137 e, numa das amostras, Amerício, que indica provavelmente a presença de plutónio. Esses níveis de contaminação não são muito importantes, mas são anormais”, afirma Bruno Chareyron, diretor do laboratório CRIIRAD.
Duas amostras de água recolhidas em locais muito próximos da base nada revelaram de anormal.
A matéria já foi motivo de um estudo encomendado pelo Governo Regional ao Instituto Superior Técnico (IST), depois de ter estalado a polémica sobre esta possível contaminação.
No dia 18 deste mês, DI noticiou as conclusões do relatório do Laboratório de Proteção e Segurança Radiológica do IST da Universidade de Lisboa que indica que o nível de radioatividade natural e artificial existente na Terceira está, em termos gerais, abaixo dos valores máximos previstos na legislação nacional.
O relatório atribui a presença de alguma radiação artificial aos acidentes nucleares de Chernobyl e Fukushima e também aos testes nucleares efetuados na Guerra Fria pelos EUA, União Soviética e China, cujas consequências se propagaram pelo globo.

O passado nuclear das Lajes

A face nuclear da Base das Lajes já foi explorada em vários artigos publicados pelo Diário Insular. O trabalho da TVI explora agora este papel das Lajes como possível ponto de armazenamento de armas nucleares. Durante a Guerra Fria, a Marinha norte-americana mantinha na ilha paióis destinados a guardar bombas e torpedos, que seriam utilizados contra os submarinos soviéticos caso estalasse um conflito.
É citado pela TVI, Mário Terra, ex-funcionário da Base das Lajes. “O meu pai sempre me disse: Os americanos guardam armas nucleares aqui na Base das Lajes”, recordou.
A denúncia da possível contaminação tem partido sobretudo do antigo funcionário da secção de Ambiente das Lajes, Orlando Lima, que garantiu ter-se deparado, nos finais dos anos 90, quando ainda trabalhava na base, com uma situação em que a chefe estava em pânico, depois de terem sido feitas análises ao solo do Cabrito. “Estás a falar de metais pesados radioativos, perguntei. A senhora respondeu-me que isso estava muito acima do seu ´nível de pagamento’ e que não podia comentar”, relatou
Em 2017, Orlando Lima recorreu a um contador Geiger para demonstrar que havia presença de radioatividade no Cabrito.
Félix Rodrigues, investigador da Universidade dos Açores, que acompanhou esse esforço, comentou sobre o assunto: “Há nuclídeos que aqui estão que ultrapassam as explicações normais de fallout radioativo”.
Uma fonte anónima referiu a existência na base militar de uma equipa chamada EOD-Explosive Ordnance Disposal que englobava outra equipa “mais secreta”.
“Nessa, atuavam pessoas de diversos esquadrões, num número máximo de meia-dúzia de pessoas, talvez e essa (equipa) só respondia a uma situação muito grave, em caso de radioatividade ou de alguma fuga radioativa”, contou essa fonte ao canal de TV.
A imagem é da reportagem da TVI.

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Ana Mendonça Será novidade para algum terceirense? Sempre o maior cego é o que não quer ver

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Paula Alexandra Rosa Confirmadas as suspeitas que muitos terceirenses já desconfiavam
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Isabel Mendonça Porque será que só agora é que se preocupam com “essas coisas”?
Enquanto alguém recebia Dólares americanas, esfregavam as mãozinhas e guardavam no bolso, refiro-me a entidades públicas e particulares…
Foi preciso os americanos virarem as costas?See More
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Joao Diniz replied2 Replies1 hr
Fernando Fausto Silva Cristóvam Cheira a ciúme de quem recebeu. Cheira a que se tivesse recebido e estivesse em causa o sustento da família teria calado seguramente. Cheira, não se quer que falem porque incomoda a politica, o Turismo. Cheira que a velha frase é mera conversa “maisSee More

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David Carvalho Devagar devagarinho eles vão aceitar a verdade!

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Joao Cabral Já estou a imaginar o Governo Regional a processar, levando a tribunal a TVI, por divulgar os resultados da sua investigação, alegando difamação de caráter público de um paraíso, em que claramente, segundo os mesmos, nada disso aconteceu …

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DAMIÃO DE GÓIS (1502 – 1574)

 

 

nota biográfica de Arlindo Correia é muito bem elaborada e fundamentada. Uma das pérolas da net. Merece ser aqui colocada para que a visitem. http://arlindo-correia.com/160810.html

16-8-2010

DAMIÃO DE GÓIS

(1502 – 1574)

Publicado em Telheiras – Cadernos Culturais Lumiar – Olivais – Telheiras

2.ª Série n.º 4, Dezembro de 2011

As cartas são referenciadas com os códigos da Correspondência Latina, de Coimbra, 2009: A+ n.º romano para cartas enviadas por Damião de Góis, B+n.º romano para cartas enviadas por outros. Quando as cartas são indicadas por quatro algarismos árabes, estes referem-se à correspondência de Erasmo na edição de T.S. Allen, ou na tradução francesa das cartas que tem a mesma numeração.

Poucos autores têm despertado tanto as atenções dos estudiosos nos últimos cento e cinquenta anos, como Damião de Góis. A lista é muito longa, mas não há unanimidade no modo em como é apreciado. Uns fervorosamente a favor, outros exaltadamente contra. Alguns, mais recentes, procurando encontrar algum equilíbrio no meio da confusão.

No século XIX, António Pedro Lopes de Mendonça, escreveu um longo ensaio sobre o processo da Inquisição, culpando do infortúnio do cronista sobretudo o Cardeal D. Henrique. Joaquim de Vasconcelos, a seguir, publicou as Goesianas apontando o dedo aos fidalgos que não gostaram do tratamento das respectivas famílias na Crónica de D. Manuel. Guilherme João Carlos Henriques (William John Charles Henry – 1846-1924) carreou muita documentação para os seus “Inéditos Goesianos”, mas sofreu a má vontade dos que o acusavam de amadorismo, por não o considerarem um historiador (a deficiência dele não era essa, mas sim a de não saber Latim). Maximiliano Lemos, nos anos 20 do século passado fez obra muito meritória, mas também absolvia o Cardeal D. Henrique. O francês Marcel Bataillon (1895-1977) escreveu alguns artigos de interesse mas ofendeu os damianistas ao arrasar o Latim de Damião de Góis. Nos anos 50, Elizabeth Feist Hirsch (1904-1998), alemã naturalizada americana, dedicou largos anos a Damião de Góis e produziu uma monografia muito bem documentada, ainda hoje essencial para o seu estudo. De vez em quando, porém, pôs os documentos de lado e deixou-se levar pela fantasia. Um padre e professor, Amadeu Torres, tem também dedicado muitos anos da sua vida a Góis, traduzindo as suas cartas e defendendo a tese de que o Latim dele é perfeitamente aceitável. Tendo publicado e anotado profusamente as cartas latinas de Damião de Góis em 1979, só em 2009 publicou a tradução das cartas por ele recebidas, com pequenas notas. É este último livro que permite alargar um pouco o horizonte do estudo de Damião de Góis, dadas as normais dificuldades da consulta dos textos latinos.

Muitos outros autores escreveram sobre Damião de Góis, que suscita um interesse sem proporção com a sua obra publicada. De facto, a sua figura tem uma enorme projecção internacional, que lhe veio em primeiro lugar da convivência e amizade que lhe dedicou Erasmo de Roterdão (1466-1536), nos últimos anos da vida deste. Dele recebeu nove cartas, que merecem atenção. Depois, os temas escolhidos por Damião de Góis para as suas publicações, nomeadamente a Etiópia e o seu Cristianismo, e a situação dos Lapões, eram de muita actualidade e despertaram grande interesse na Europa, como provam as muitas reproduções e traduções que tiveram.

É costume relevar também os amigos que Damião de Góis fez na Europa, revelados pelo grande número de cartas por ele escritas e sobretudo pelas recebidas. Ponho algumas reservas a este ponto de vista. Bastantes cartas das personalidades que lhe escreveram limitam-se a agradecer a oferta de um livro. Como se escrevia em Latim, era de bom tom na época acrescentar fórmulas de cortesia e de amizade, inspiradas ou mesmo copiadas dos clássicos. Apesar de o Latim ser a língua vulgar dos letrados, com que se dirigiam a um estrangeiro, havia a consciência de se estar a produzir literatura e guardavam-se os textos, e cópias deles para a posteridade.

Acho também que se tem dado demasiada importância ao processo da Inquisição, onde os dados estão viciadas por natureza: os Inquisidores querem é condenar o Réu, este quer é defender-se e não é seguro que diga sempre e apenas a verdade. Há que colocar reservas, sobretudo quando as declarações dele frente aos Inquisidores não podem ser confirmadas por outra fonte.

VIDA

Damião de Góis nasceu em Alenquer em Fevereiro de 1502, sendo filho de Rui Dias de Góis e de sua quarta esposa, Isabel Gomes de Limi. Foi sempre muito chegado ao seu irmão Fructos de Góis, filho da segunda mulher de seu pai, Filipa de Góis.

Possivelmente por dificuldades económicas, Rui Dias colocou os seus filhos ao serviço do Paço, primeiro Fructos e depois Damião. Faleceu logo a seguir, em 30 de Novembro de 1513. Nos primeiros tempos, Damião desempenhou as funções de pajem de lança, depois foi moço de câmara.

Sabe-se que D. Manuel tinha a preocupação de educar as crianças que prestavam serviço na Corte. Sem dúvida, Damião estudou ali Gramática, Latim e Música. Na realidade, o estudo do Latim iniciava-se logo na meninice; quando se ia para a Universidade aos 14 ou 15 anos, já tinha de se ler e escrever Latim. Mais adiante falarei dos conhecimentos de Latim de Damião de Góis; acho que, quando ele diz que iniciou o estudo do Latim em 1529, quer dizer apenas que começou a estudar a língua a sério, mas saiu de Portugal já com conhecimentos da língua.

Certamente apaixonou-se sobretudo pelo estudo da música, pois mais tarde revelou conhecimentos com alguma profundidade, como provam as composições dele que chegaram até nós.

Em 25 de Fevereiro de 1514, chegou à Corte, numa nau vinda da Índia, Mateus, embaixador da Rainha Helena, Regente da Etiópia, na menoridade do bisneto de seu marido, conhecido por Imperador David (reinou de 1508 a 1540). Era portador de uma carta escrita em 1509 que propunha uma aliança militar contra os infiéis e o matrimónio entre príncipe das duas nações. Vigorava então na Etiópia, conhecida como a terra do Preste João, um certo Cristianismo que porém, tinha práticas diferentes das Católicas. No entanto, queriam ser reconhecidos pelo Papa. O embaixador ficou em Lisboa mais de um ano. Embarcou de regresso à Índia em Abril de 1516 com o novo Governador da Índia, Lopo Soares de Alvarenga e Duarte Galvão (1447-1517), novo embaixador português à corte do Imperador David. Com a embaixada, ia também o Padre Francisco Álvares. Duarte Galvão morreu no decurso da viagem na Ilha de Comorão.

Em 1516, veio a Lisboa o polaco João Tarnowski (Tarnóvio) (1478-1561) que, juntamente com outros dois nobres polacos, foi armado Cavaleiro por D. Manuel. Mais tarde, Damião de Góis encontrou-o na Polónia.

EUROPA

Entretanto, faleceu D. Manuel I em 13 de Dezembro de 1521. Góis continuou em funções no Paço durante algum tempo, mas depois o Rei D. João III enviou-o para a Flandres, nomeando-o escrivão da Feitoria de Antuérpia, de que era Feitor João Brandão. Era ali também escrivão Rui Fernandes de Almada, que passou a Feitor em 1525. Ao contrário do que refere Maximiliano Lemos, havia ali em serviço mais do que um escrivão.

Partiu ele numa nau de Diogo Fernandes Faria, que integrava uma armada capitaneada por Pedro Afonso de Aguiar. Governava então a Flandres Margarida de Áustria, tia de Carlos V, que veio a falecer em 1530, sendo substituída por Maria de Habsburgo, viúva de Luis II, da Hungria, que governou a região praticamente até à sua morte em 1558.

Embora o seu tempo fosse dedicado sobretudo aos negócios da Feitoria, dedicou-se certamente a outras actividades. Como já referi, não é de crer que apenas em 1529 tenha iniciado o estudo do Latim. Foi seu professor de Latim e provavelmente também de música, Cornelis de Schrijver (1482-1558), que traduzia o seu sobrenome para Grapheus ou Scribonius, o qual, acusado de luteranismo, abjurara em 1522 e estivera um ano preso. Perdeu o seu emprego público na Câmara Municipal e estava precisando de ajuda financeira que lhe foi proporcionada por Damião de Góis. Góis sugere que teria sido ele a enviar ao irmão Joahnes Grapheus, tipógrafo, o manuscrito original da Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Ioannis, sem o seu consentimento para o imprimir, mas, na minha opinião, isso não passa de uma encenação. Foi sem dúvida Damião de Góis quem pagou a edição e mesmo com um bónus relativo ao poema de Cornelis que este lhe dedicou no livro, Pictura illustris Damiani de Goes. Note-se aliás que Góis nunca poderia ter iniciado o estudo do Latim em 1529, pois nesse ano partiu em missão e precisava de conhecer a língua (era o Inglês da altura).

Ao serviço da Feitoria e da Coroa, partiu para ir à Alemanha e a seguir à Corte de Segismundo, Rei da Polónia. As suas não eram missões diplomáticas, mas sim missões comerciais ao serviço da Feitoria. O centro da sua actividade foi Dantzig (ou Gdansk), na Prússia. Dirigiu-se depois para Vilna, hoje Vilnius. Teve de regressar a Dantzig e depois passou ainda por Poznan, tendo como destino final Carcóvia. Conheceu aí a Princesa Hedwiges, filha do Rei Segismundo. O Chanceler Christophe Szydlowiecki pôs-lhe a hipótese do casamento desta com o Infante D. Luis, irmão de D. João III, o que não se concretizou. Junto da princesa, encontrou João Tarnowski seu conhecido de Lisboa, catorze anos antes, agora fidalgo e grande comandante militar. Ignoram-se as datas exactas, mas a missão, cuja finalidade se desconhece, foi relativamente curta. Regressou depois a Antuérpia no início do 2.º semestre de 1529 e dedicou-se a estudar Latim a sério com Corneliis Grapheus.

A segunda viagem de Damião de Góis é mais importante, e também mais perigosa para ele, porque o pôs em contacto com os mentores da reforma protestante.

Faço um parêntese para referir o interesse (ou devo dizer a curiosidade?) de Damião de Góis pela reforma religiosa. É sabido que no primeiro quartel do Sec. XVI era sentida por todos a necessidade de uma reforma no seio da Igreja Católica. À reforma protestante de Martinho Lutero seguiu-se a contra-reforma do Concílio de Trento (1545-1563) que não deixou de ser também uma reforma. Por volta dos anos 30 do Século, ainda a Igreja Católica não tinha reagido convenientemente à iniciativa protestante. O assunto era pois de actualidade e compreende-se que Damião de Góis tivesse interesse em conhecer Lutero e os seus apaniguados.

No ano de 1531, D. João III mandou Góis à Dinamarca, onde reinava Frederico I, que encontrou na Corte em Schleswig (hoje na Alemanha). O País era luterano, tal como a cidade de Lubeck para onde foi a seguir. Segundo Jean Aubin, tratava-se de desbloquear uma compra importante de madeiras destinadas a construir barcos, que deveria ser transportada por um navio chamado Michel, de que alguns se queriam apropriar. Em rota, o navio fora apreendido pelos Dinamarqueses.

Em Lübeck, Damião de Góis teve a (infeliz) ideia de se desviar um pouco do seu caminho para ir a Wittenberg conhecer os arautos da Reforma, Lutero e Melanchthon, com quem jantou (3 de Abril de 1531). Mas antes estivera a ouvir um sermão de Lutero, que não compreendeu por ser em alemão, excepto algumas citações latinas. Esteve umas horas a conversar com ambos em casa e eles defendiam naturalmente a Reforma. Melanchthon insistiu que ele fosse a sua casa para mostrar como vivia pobremente, o que Damião de Góis constatou. Esteve dois dias completos em Wittenberg e partiu terça-feira, 5 de Abril de 1531 para Poznan e daí para Cracóvia. Daqui partiu para Dantzig, onde se demorou alguns meses. Ali estaria ainda quando em Marienwerder (hoje, Kwidzyn), encontrou Paulo Spreter ou Speratus (1484-1551) Bispo Evangélico da Pomerânia que no dia seguinte (12-9-1531) lhe enviou um bilhete amistoso (carta B-V). Reencontrou também Jan Tarnowski. Ficou bastante tempo em Dantzig, não devendo ter regressado senão nos últimos meses do ano.

Em Dantzig, travou forte amizade com o Bispo de Upsala, Johannes Magnus Gothus (1488 – 1544) e seu irmão Olaus Magnus (1490-1557) (na sua língua, Jöns e Olof Mansson). O Rei Gustavo Vasa expulsou-o da sua diocese e da Suécia, aderindo à reforma luterana. O Bispo viu-se praticamente condenado a viver de esmolas. À sua morte, sucedeu-lhe à frente da diocese seu irmão, que tomou parte no Concílio de Trento, mas nunca chegou a exercer o cargo. Damião de Góis encontrou-os em Dantzig e contou-lhes a história das relações de Portugal com a Etiópia, da lenda do Preste João e da troca de embaixadores entre os dois países. Os suecos contaram-lhe o drama dos Lapões, os quais, de feitio reservado, se deixavam explorar por gente gananciosa. Instigaram Damião de Góis a escrever sobre os dois assuntos, tarefa a que ele se dedicou com o entusiasmo, esperando certamente a chegada a Antuérpia para pedir a Cornelis Grapheus, que corrigisse e melhorasse o seu Latim no livro.

Foi assim publicada a Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Ioannis, precedida da carta A-I e da carta B-VI, de Cornelis Grapheus a seu irmão tipógrafo Johannes; os textos sobre a Etiópia são seguidos do texto De Pilapiis, que é a carta A-II; termina com dois poemas de Cornelis dedicados a Damião de Góis, o primeiro, um retrato em verso, o segundo um poema de boas-vindas, “Clarissimo Damiano Goi, Lusitano, eius Nationis in Antuerpia Consuli, Regio nomine a Scythis redeunti”. Também André de Resende lhe escreveu um poema de boas-vindas, mais tarde incluído com os de Grapheus nos Aliquot Opuscula de 1544.

A Legatio foi traduzida para Inglês pelo filho de Thomas More, John More e editada em 1533 em Londres (ver edição em fac-simile, de 1967 na bibliografia).

Em Dezembro de 1531, esteve Damião de Góis ocupado na organização dos festejos da celebração do nascimento do Infante D. Manuel, filho de D. João III, ao mesmo tempo que o embaixador português, D. Pedro de Mascarenhas fazia uma grandiosa recepção ao Imperador Carlos V. Foi representada uma peça de Gil Vicente, denominada Jubileu de Amores (hoje perdida), que chocou alguns assistentes por criticar a venda das indulgências. Sobre estes acontecimentos, compôs André de Resende (1500 – 1573) o seu poema Genethliacon, onde destaca o papel de Damião de Góis. No seu livro Diarii, tomo LV (e não 25, como diz o texto de Jean Aubin) faz também Marino Sanuto uma detalhada descrição dos acontecimentos nas colunas 414 a 420.

No mês de Janeiro de 1532, faleceu sua mãe, Isabel Gomes de Limi.

Nestes primeiros meses de 1532, Góis abranda o trabalho na Feitoria, indo matricular-se no Colégio Buslidiano ou Trilingue em Lovaina. Trava relações com Juan Luis Vives (1492 – 1540) e com Konrad Gocklenius (1455 – 1539), professor de Latim no colégio. Frequentou o Colégio durante alguns meses. Mas não abandonou totalmente a Feitoria. Em 22 de Julho de 1532, o Feitor Rui Fernandes de Almada enviou os escrivães Jorge de Barros e Damião de Góis para serem recebidos em audiência pela Rainha Maria da Hungria (governava os Países Baixos desde 1530) e o seu Conselho para pleitearem pela libertação de Diogo Mendes, que havia sido preso a no dia 19 anterior.

Quem saiu de Lovaina nessa altura, foi André de Resende, eventualmente assustado com a proibição pela Igreja dos livros de Erasmo. Ele próprio publicara o texto Erasmi encomium que não agradou aos meios religiosos.

Góis conheceu também por essa altura em Lovaina a Rutgerus Rescius (1497 – 1545), simultaneamente Professor de Grego e Tipógrafo. Ficou mesmo hospedado em casa dele.

Entretanto diz Damião de Góis que adoeceu da vista, sendo obrigado a abandonar os estudos. Tem então uma brilhante ideia: procurando a celebridade, nada melhor para isso do que conviver com um dos homens mais famosos do século, Desidério Erasmo, de Roterdão. Pediu a Rutgerus Rescius uma carta de apresentação (que desapareceu) e apresentou-se em casa dele, em Friburgo de Breisgrau. Isto aconteceu perto do final do mês de Abril de 1533, como muito bem deduz Amadeu Torres. Erasmo convidou-o para jantar e demonstrou simpatia por ele; já na casa dos setenta, gostava de conviver com gente nova, como o era, Damião de Góis, então com 31 anos. Damião de Góis ofereceu-lhe um exemplar da Legatio. Ao partir, Erasmo deu-lhe uma carta (B-VII-2805) para Bonifácio Amerbach (1495 – 1562), pedindo-lhe que a entregasse ao destinatário. Este professor de Direito era o grande orientador nos aspectos práticos da vida de Erasmo: amigo, conselheiro, depois herdeiro universal no testamento de Erasmo. Era ainda homem novo e não se deve ter entusiasmado muito com Góis. Tudo indica que, se lhe dava atenção, era unicamente por consideração para com Erasmo. Este tem medo que Góis lhe seja pesado e diz isso mesmo na carta B-VII-2805.

A amizade da parte de Erasmo tinha dois interesses por trás: o primeiro era que ele queria companhia, sentia-se doente e sozinho. O segundo, mais corriqueiro e material era que ele tinha ainda esperança de arrancar uma dádiva em contado, de D. João III, que lhe havia falhado. O seu amigo Erasmo Schets (? – 1550) sugerira-lhe que dedicasse uma obra a D. João III, o Rei de Portugal, pois isso seria certamente recompensado principescamente. Afinal, Juan Luis Vives dedicara-lhe um pequeno tratado, De tradendis disciplinis e recebera 200 ducados, um gomil de prata com incrustações em ouro e uma mesa de ébano. Erasmo deixou-se convencer. Pediu informações a Rui Fernandes de Almada (Rodericus Fernandius nas cartas) e escreveu uma longa dedicatória ao Rei como prólogo às Chrysostomi Lucubrationes (carta 1800). Mas não se coibiu de acusar os portugueses de monopolistas da pimenta (linhas 41-44) e isso caiu muito mal em Lisboa. Queria ele pedir a Damião de Góis que o desculpasse junto de D. João III, a ver se ainda vinha a desejada compensação. Este “romance” (descrito por Marcel Bataillon, mas não exaustivamente) é narrado com muitos pormenores nas cartas 1647, 1681, 1682, 1750, 1758, 1769, 1783, 1800, 1849, 1866, 2243, e 2370, todas de ou para Erasmo Schets, com excepção da 1800 que é o prólogo adulatório (este traduzido por Ana Paula Quintela F. Sottomayor). Na carta 1866, está ele muito satisfeito do trabalho feito, esfregando as mãos à espera do agradecimento: “Librum Lusitaniae regi dicatum gaudeo vobis placere. Si ille tam liberalis fuerit in dando quam ego fui in laudando, res pulchre habebit.” Fico satisfeito que vos agrade o livro dedicado ao Rei de Portugal. Se ele for tão liberal a dar, como eu fui a louvá-lo a ele, resultará uma coisa bonita. Na carta 2370, está a desilusão: “Não lhes agradou que eu falasse em monopólio”.

Depois do jantar com Erasmo, Góis dirigiu-se a Basileia. Disse mais tarde na Inquisição que ali encontrou e conheceu dois protestantes: Sebastião Munster (1488 – 1552) e Simão Gryneus (1494 – 1541), professor de filosofia. Foi depois ter com Amerbach, a quem entregou a carta de Erasmo. Pouco tardou em Basileia, regressando a Lovaina ainda em Maio de 1533.

Poucas semanas depois, recebeu de Lisboa um pedido inesperado do Rei para que regressasse a Lisboa, pois queria nomeá-lo para um cargo importante, o de Tesoureiro da Casa de Índia. É isso que ele comunica a Erasmo na carta A-IV-2826, expedida de Antuérpia, datada de 20 de Junho. Na sua relação com Erasmo, Góis comporta-se com um bom pedaço de impertinência. Diz-lhe sem rodeios que em Lovaina consta que ele, Erasmo, é favorável ao divórcio de Henrique VIII, Rei de Inglaterra. Pede sugestões para responder aos que o criticam.

Pede a ajuda de Erasmo para uma campanha a favor dos Lapónios, para que sejam evangelizados e se libertem da opressão dos poderosos.

Depois, desejoso das boas graças de Erasmo, envia-lhe um presente: um copo de prata dourado.

Já antes escrevera a Erasmo outra carta que se perdeu. Nela falava da relação mútua deles, da personalidade de Amerbach e de um incêndio nos arredores de Friburgo.

Erasmo respondeu a ambas as cartas com a carta B-X-2846, de 25 de Julho de 1533. É possível que nesta data, Damião de Góis já estivesse a caminho de Portugal.

Erasmo lamenta tê-lo recebido tão friamente. Garante-lhe a sua amizade. Agradece-lhe o copo que ele deu de presente e entregou a Schets. Nega que tenha tomado partido na questão do divórcio de Henrique VIII. No que respeita à Lapónia, mostra boa vontade, mas receia não conseguir escrever para a próxima feira, até porque tem problemas com o impressor. Refere-se ao incêndio. Garante a fidelidade de Amerbach. Felicita Damião de Góis pela nomeação para um cargo de importância. Termina a carta pedindo a Damião de Góis que transmita o seu pedido de desculpas ao Rei de Portugal, prontificando-se a reparar o erro cometido, do modo que lhe for pedido.

Por esta altura, Góis deve ter conhecido Georg Schuler ou Georgius Sabinus, de Brandenburgo (1508-1560), versado em Retórica, Latim e Grego, poeta novilatino prestigiado, que era genro de Melanchthon. Ficaram amigos, tendo ele dedicado a Góis dois poemas, um inserido nos Aliquot Opuscula de 1544, outro por ele publicado nos seus Poemata, que transcrevo aqui no Anexo 1.

Em Julho de 1533, ao atravessar a França, Góis visita em Paris Fr. Roque de Almeida, que daí a tempos mudaria o nome para Jerónimo de Paiva (nome com que se apresentou aos Reformadores), seu amigo, até porque era cunhado de João de Barros. Fr. Roque pediu-lhe uma carta de apresentação para Melanchthon, que ele acedeu a escrever.

Não se demorou Damião de Góis muito tempo em Portugal, só quatro meses, diz ele na dedicatória da tradução do Catão maior. Houve algo que correu mal, mas ele não nos diz o quê. Aliás o pessimismo ali expresso, contrasta com a descrição da estadia feita no processo da Inquisição, que assim soa a menos verdade.

Na verdade, a declaração dele aos inquisidores “El-Rei… me perguntou se o (a Erasmo) poderia eu fazer vir a este Reino para se dele servir em Coimbra” soa a balela, tendo em vista não apenas a idade, mas também a fama de herético que Erasmo tinha em Portugal.

Em Lisboa encontrou um embaixador do negus da Abissínia, um Bispo chamado Sagaza-Ab. Quando o Imperador David soube da morte de D. Manuel I, e da sucessão de D. João III, decidiu enviar uma Embaixada a Lisboa, retribuindo a que o Rei lhe enviara em 1520, chefiada por Rodrigo de Lima e designou Sagaza-Ab, como seu Embaixador. Rodrigo de Lima e o Embaixador apenas chegaram a Lisboa a 24 de Julho de 1527. D. João III não mostrou interesse nas relações com a Etiópia e o Embaixador foi ficando por Lisboa. Em 1532, foi enviado a Roma D. Martinho de Portugal com o P.e Francisco Álvares para notificar o Papa da conquista que o cristianismo fizera de mais um País cristão. Mais tarde, foi considerado que era mais judaísmo que cristianismo.

Sagaza-Ab foi deixado em Lisboa e foi assim que o encontrou Damião de Góis. Este pediu-lhe que escrevesse e lhe enviasse um relato pormenorizado acerca da fé e dos costumes dos abexins. De facto, ele enviou-lhe o texto para Pádua em 1534. Góis traduziu-o para Latim e constitui a 2.ª parte do livro Fides, religio, moresque Aethiopum sub imperio Preciosi Ioannis. O pobre Embaixador nunca mais regressou à sua terra.

Damião de Góis decidiu rejeitar o cargo que o Rei lhe oferecia, por razões que não conseguimos adivinhar, mas não o disse claramente a D. João III. Partiu em romaria a Santiago de Compostela e de lá escreveu uma carta ao Rei a comunicar a sua decisão.

Na carta B-XIV-2913, de 11 de Março, Erasmo diz a Schets ter recebido uma carta de Damião de Góis remetida de Portugal, que se perdeu. Erasmo responde a Góis com a carta B-XV-2914, intitulando-o Tesoureiro do Rei de Portugal, pensando que ele aceitara o cargo. Recebera outra carta de Portugal de alguém que não conhecia e que lhe escrevera por incitação de Damião de Góis. Difícil identificar de quem se trata (a carta não sobreviveu), embora haja quem diga ser Jorge Coelho. Erasmo elogia Resende e o seu Genethliacon e diz que gostaria de ter notícias dele. Assegura a Góis a amizade de Amerbach e também a de Henrique Glareanus (1480-1563), o teórico musical que, portanto, nessa altura, já era dos seus conhecimentos. Desculpa-se na questão dos Lapões, culpando o impressor, mas diz ter traduzido para alemão a carta de Góis ao Bispo de Upsala. Termina a carta dizendo “A gota da minha mão diminuiu, o suficiente para que eu a custo possa assinar” (tradução diferente da de A. Torres).

Logo a 13 de Março já Erasmo sabia que Góis recusara o cargo e estava de regresso (carta B-XVI-2916, a C. Grapheus). Damião de Góis já andava perto. A 9 e 10 de Março estivera em Basileia pedindo coisas a Amerbach (Carta B-XVII deste a seu irmão): “Cur nunc non libellum Erasmi De morte accipis, Dn. Damianus de Goes, regis Lusitaniae thesaurarius, qui me hodie per totum diem detinuit…” – O facto de não receberes agora o de Erasmo Acerca da Morte, deve-se ao Senhor Damião de Góis, Tesoureiro do Rei de Portugal, que hoje me deteve durante o dia inteiro. Note-se, por um lado, que Góis não informou Amerbach que tinha recusado o cargo e, por outro, que Amerbach se mostra enfastiado, o que revela falta de intimidade e desconsideração mútua.

A carta de Erasmo B-XIX-2919, de 11 de Abril de 1534, revela que ambos já haviam acordado uma estadia de Góis em casa do primeiro; está entusiasmado, chama-o de clarissimo iuvene, isto é, ilustríssimo jovem. Diz ter recebido uma carta dele, que não chegou até nós.

Poucos dias depois, Damião de Góis instalou-se em casa de Erasmo. A 23 de Abril, este escreve a Schet, anunciando a estadia do egregius iuvenis (carta B-XX-2924, P.S.). Por causa da saúde, não comem juntos.

Por volta do fim de Maio, ou princípios de Junho, já Damião de Góis decidira partir para Itália, para estudar em Pádua. Na carta B-XXIV, de 10 de Junho, Conrado Glocklenius (1455-1539), Professor no Colégio Trilingue, estranha essa vontade súbita de partir para Itália; diz-lhe que não tem conhecimentos em Pádua para o poder recomendar; diz-lhe que peça a Erasmo. Esta carta deverá ter sido escrita em resposta a uma de Góis, que se perdeu.

Na carta B-XXV-2944, de 11 de Junho, de Erasmo a Schets, diz ele: “Eu sempre supus que ele (Damião de Góis) tivesse deixado a pátria com boa graça dos seus. Aconselhei-o, no entanto, a obedecer os conselhos dos amigos, o que aliás vai fazer”. Estas frases fazem duvidar da veracidade do depoimento feito na Inquisição (pags. 74 e 75 de Inéditos Goesianos,II); nem tudo teria corrido tão bem como ele disse aos Inquisidores.

Numa carta (B-XXVIII-2954), escrita em 27 de Julho de 1534 por Ulrico Zásio (1461-1535), professor de Direito em Friburgo, este diz a Erasmo que não deseja receber Damião de Góis. “Que fique em casa”. Também tinha já 73 anos.

Sobre a estadia de Góis em casa de Erasmo, tem interesse a carta B-XXXVIII-2997, de 21 de Fevereiro de 1535, de Erasmo a Schets. Queixa-se de um criado, John Clauthus, que enviou a Inglaterra e depois faleceu em 10 de Setembro de 1534. Diz que o colocou vários dias na mesa de Damião de Góis. Mais tarde, chamou-o para a sua mesa, a fim de o interrogar. “In cena addidi illi 12 batzones, tantundem dederat Damianus.” Na ceia, acrescentei-lhe 12 bázios; outro tanto lhe dera Damião” (tradução diferente da de A. Torres). Constata-se um certo afastamento de Erasmo e a preocupação de Damião de Góis de pagar o alojamento.

Entre Abril e Agosto de 1534, coincidindo com a sua estadia em casa de Erasmo, Damião de Góis multiplicou os contactos com os Reformadores. No início de Abril, encontrou Guilherme Farel (1489 – 1565), francês, em Genebra, muito activo a pregar a Reforma em França e na Suiça. Em Maio ou Junho, tendo ido à Flandres regularizar os seus assuntos (carta B-XXIII, de Cognatus a Amerbach), passou por Estrasburgo onde encontrou Wolfgang Fabritius Capito (1478 – 1541), Gaspar Hedion (1494 – 1552) e Martin Bucer (1491 – 1551). Discutiram a Eucaristia e a autoridade do Papa.

Na carta B-XXIX-2955, de 30 de Julho, Erasmo diz a Schets que Damião prepara a sua ida para Itália. A 16 de Agosto, Erasmo escreve uma carta de apresentação para o Cardeal Pietro Bembo (1470-1547) B-XXX-2958).

Na carta B-XXXI, de 16 de Agosto, Luis Bär (1479-1554), professor de Teologia em Friburgo, diz a Jerónimo Aleandro (1480 – 1542), Bispo e Professor de Grego em Paris, que Damião de Góis parte para Pádua para lá estudar Direito Civil(!).

Partiu de Friburgo a 18 de Agosto (Carta B-XXXII-2963, de 25-8-1534 a Góis), está no dia seguinte em Basileia, onde Amerbach lhe entrega uma carta para Andrea Alciati (1492-1550), jurista italiano (carta A-IX). Passados dois dias, adoece um seu criado, que ele manda ir ter com Erasmo (carta B-XXXIV-2970 de Erasmo a Malanchthon). Erasmo diz que não se importa de o albergar se a doença não for a sífilis (carta B-XXXII-2963). Mas logo a seguir chega Damião de Góis que voltara para trás (carta B-XXXIV-2970); terá chegado a casa de Erasmo a 26 ou 27 de Agosto. Deverá ter ficado muitos poucos dias até que o criado se curasse. Depois partiu para Itália. No final de Setembro, ainda não tinha passado Como. Recebeu aí a notícia do falecimento do Papa Clemente VII, que se deu na noite de 25 para 26 de Agosto. Receando tumultos, decidiu não passar por Pavia e dirigiu-se directamente a Pádua. Aí terá chegado na primeira quinzena de Outubro, pois a 31 diz a Amerbach que já alugou uma casa (carta A-IX).

Pietro Bembo escreve em 11 de Novembro a Erasmo dizendo bem de Góis (carta B-XXXV-2975). Estava convencido que ele iria frequentar a Universidade, o que não aconteceu.

Na correspondência aparece aqui uma carta-prólogo (B-XXXVI) escrita e publicada por Segismundo Gelenski ou Gelenius (1497-1554), filólogo checo e tradutor, que dedica a Góis as suas Anotações à História Natural de Plínio, a que chama Castigationes. Estas dedicatórias de livros não têm o significado de homenagem que se lhes costuma atribuir: eram pagas, ou comparticipando as despesas de tipografia, ou adquirindo um certo número de exemplares. Não devem ser tomadas por si só como prova de uma amizade.

A 11 de Janeiro de 1535, Erasmo escreve a Góis a carta B-XXXVII-2987, que responde a uma carta dele que se perdeu. Erasmo está muito doente e de cama. A carta é breve. Parece que Góis tivera a ideia de contratar Lazzaro Buonamico (1479-1552) para vir a sua casa dar-lhe lições. Era uma ideia pretensiosa, tratando-se de um professor de muita reputação na Universidade, já com alguma idade. Recomenda-lhe que contrate um jovem. Pede que o pequeno texto Compendium Rhetorices, que para ele escrevera em 1534, não seja mostrado a ninguém e muito menos publicado (foi impresso por Rutgerus Rescius em Lovaina em 1544). De facto, diz o tradutor das Cartas para Francês:”L’ouvrage, en effet, n’ajoute rien à la gloire d’Erasme.” O texto figura no vol. 10, pag, 396-405 do Opus Epistolarum, de T.S. Allen.

Há na mesma carta uma frase que julgo ser importante: “Miror e Lusitania nihil venire responsi”, Admira-me nenhuma resposta vir de Portugal. É ainda o assunto da recompensa pela carta-prólogo 1800. Ora, constata-se que o assunto já estava esquecido nas cartas de Erasmo; ele volta a aparecer depois do contacto com Damião de Góis que, com toda a evidência, terá prometido alguma coisa. Pouco tempo depois a carta B-XL-3019, de 21 de Maio de 1535, volta ao assunto: “E Lusitania nihil ad te redire valde miror”. Admiro-me muito que nada vos tenha vindo de Portugal.

A carta B-XXXIX, datada de 21 de Maio de 1535 e endereçada por Filipe Melanchthon a um certo amigo é importante porque refere que Jerónimo de Pavia (o nome que adoptou Fr. Roque de Almeida) partira para Pádua para se juntar a Damião de Góis.

Alguns dados dão-nos a entender que Damião de Góis não se sentia bem em Itália. Detestava o clima, sofrendo alternadamente com o frio e com o calor. Sem dúvida estudou Latim, mas não deverá ter frequentado a Universidade. Fez várias digressões em Itália, nomeadamente a Roma; terá também ido frequentemente a Veneza. Passou alguns períodos no Sul da Alemanha, como veremos. Escreveu e publicou duas traduções do Latim: o Cato Maior de Senectute de Cícero e o Ecclesiastes, impressos em Veneza em 1538 por Estevão Sábio.

Em Abril-Maio de 1535, Góis está em Roma (cartas B-XL-3019, B-XLIII-3043); volta a Pádua em Junho (A-X). No final de Junho, vai para Augsburgo, donde escreve a 14 de Julho a Erasmo uma carta que se perdeu e que foi respondida pela carta B-XLIII-3043, de 18 de Agosto de 1535.

Entretanto, a 27 de Maio de 1535, Erasmo muda a sua residência de Friburgo para Basileia, sem que se consigam saber com precisão quais as suas razões.

Alguns dias antes, dia 21, escrevera a Damião de Góis a carta B-XL-3019, em que se queixa das suas doenças. Reprova Segismundo Gelénio que utilizou para a sua edição da História Natural, de Plínio, um manuscrito com falsidades. Queixa-se dos que o atacam por o seu Latim não seguir suficientemente Cícero. Queixa-se também de Lutero que o chama papista e inimigo de Cristo. No final diz: “Soube pela carta de Bero, que percorreis a Itália”, o que prova a inquietação de Góis.

Em Inglaterra, entretanto, eram martirizados John Fisher e Thomas More, o primeiro em 22 de Junho e o segundo em 6 de Julho de 1535. Ao assunto se refere a carta B-XLII-3042 de Schets a Erasmo.

Também a carta B-XLIII-3043, de Erasmo a Góis, responde a uma carta deste último que se perdeu, como já acima dissemos. Diz ter recebido uma carta de Jorge Coelho, mas nada de André de Resende. Erasmo teme haver ofendido a ambos: a Coelho, porque lhe escreveu carta curta demais, a Resende, porque demasiado extensa. A doença continua a apoquentá-lo. Admira-se das vertigens de Góis, quando ele é ainda tão jovem. Recomenda que não leia enquanto faz a digestão. Convida-o a visitá-lo em Basileia.

Refere depois o conselho de Góis para que apurasse mais a escrita, defendendo-se dizendo que escreve de jacto por feitio e tem dificuldade em rever. Mas, no final, atira uma piada a Góis com um pouco de veneno: “Spero te consuetudine doctissimorum hominum eam politiem feliciter assequuturum,ad quam me hortaris”, Espero que com o convívio desses sapientíssimos varões, possas felizmente alcançar a elegância a que me exortas.

Também a carta B-XLV-3076, de 15 de Dezembro de 1535 responde a uma carta hoje perdida de Góis. Queixa-se de Resende, que não voltou a escrever. Gilbert Cousin ou Cognatus (1506 – 1572) abandonou-o, sendo já Cónego. Refere-se depois ao martírio de Fisher e de Thomas More. Com esta remete outra carta da mesma data – a B-XLVI-3077– que se destina a dar notícias da sua precária saúde aos amigos de Pádua.

Aparece-nos a seguir uma carta ditada por Góis – A-XII-3078 – a 22 de Dezembro de 1535. É mais uma carta de circunstância, acompanhada por um relato sobre a morte de John Fisher e de versos em louvor de Carlos V, celebrando a sua entrada triunfal em Nápoles (Carta 3078).

A carta A-XIII-3085, de 26 de Janeiro de 1536, responde à carta de Erasmo B-XLV-3076. Góis lamenta comovidamente a doença de Erasmo. Revela então a Erasmo uma ambição: a de publicar uma biografia dele e a edição completa das suas obras. Para isso, bom seria que ele elaborasse o catálogo geral das suas obras. Declara o propósito de se deslocar a Basileia em Maio ou Junho desse ano, ou mesmo mais cedo. Pede ainda que isso fique em segredo e que ninguém disso se aperceba. Pede finalmente a Erasmo que lhe ofereça um mapa (original ou cópia) da Suíça que vira em sua casa.

Há uma carta em português de Damião de Góis a D. João III, de 12 de Junho de 1536, muito fragmentada e de leitura dificílima (Gavetas da Torre do Tombo, XXII-4-2A). Não a consegui ler, nem encontrar o jornal de Alenquer “Damião de Góis” onde Guilherme J.C. Henriques a transcreveu. Limito-me por isso à descrição do catálogo: “Carta a El-Rei a desculpar-se da falta de notícias e dando como testemunha da sua vida e estado, D. João de Menezes”.

Partiu logo a seguir para a Alemanha, dirigindo-se a Ingolstadt e a seguir a Nuremberga, donde, a 15 de Julho, escreve a última carta (A-XIV-3132) a Erasmo, e anuncia que vai regressar a Pádua. Há guerra na Suíça e tropas por todo o lado; os seus amigos dissuadem-no de prosseguir a viagem para Basileia. É isso mesmo que ele diz no início da sua carta. Sem que ele o soubesse, a carta já não tinha destinatário, pois Erasmo tinha falecido na noite de 11 para 12 de Julho.

Refere-se Góis à última carta de Erasmo que respondia à sua de 26-1-1536 (A-XIII-3085) e à breve resposta que ele lhe tinha remetido: ambas estas cartas foram perdidas. Diz que Erasmo lhe escreveu dizendo estar a pôr em ordem para ele o catálogo dos seus livros. Mas que se recusa a falar da sua vida. Góis diz-lhe que ele pode escrever apenas aquilo que o honra, esquecendo o restante. Que bastaria tocar ao de leve no seu nascimento. T.S. Allen e o tradutor belga anotam que Góis foi o único correspondente de Erasmo a fazer uma clara alusão ao seu nascimento ilegítimo.

Discorre depois sobre a utilidade de difundir uma tal autobiografia e o catálogo dos seus livros, que ele, Damião, publicaria no início das suas obras completas, que se encarregaria de imprimir a expensas suas.

Fala ainda do que ouviu em Ingolstadt, onde ficou dois dias: pregadores e professores caluniam Erasmo dizendo que mudou a sua residência para Basileia para mais à vontade seguir a seita de Huldrych (ou Ulrich) Zwingli (14841531), o chefe da Reforma na Suiça.

Pede de novo o mapa da Suiça.

Esta carta chegou às mãos de Amerbach só a 23 de Agosto, enviada por Bild Rheinauer ou Beatus Renanus (1485-1547), que viria a ser o autor da biografia e o supervisor da edição das obras de Erasmo (carta B-LII, de 29-8-1536, de Amerbach a Góis).

Damião de Góis afinal ficou mais tempo na Alemanha, pois só voltou a Pádua em Agosto, conforme carta A-XV, de 31 de Agosto para Amerbach. Já sabe que este foi designado herdeiro universal no testamento. Diz-lhe que Erasmo lhe escrevera prometendo remeter-lhe o catálogo dos seus escritos; quer saber se Erasmo levou a cabo esse trabalho.

Amerbach faz jogo dissimulado com Góis: diz-lhe que não encontrou catálogo nenhum, ao mesmo tempo que se mostra muito interessado no financiamento por Góis da edição da obra completa de Erasmo (cartas B-LII, já referida e B-LIII, de 12 de Novembro). Naturalmente, a edição não seria preparada por Damião de Góis. Este deve ter percebido o jogo, pois na carta A-XVII, de 14 de Dezembro, comunica a Amerbach “non duco mihi honori fore, si mea opera imprimantur” não acho que viesse a ser-me honroso o imprimi-las à minha custa. A troca de correspondência entre os dois acabou aqui.

Em Fevereiro de 1537, Amerbach publicava o livro Catalogi duo operum D. Erasmi Roterodami ab ipso conscripti et digesti. Cum præfatione D. Bonifacii Amerbachii iuriscons. ut omnis deinceps imposturæ via intercludatur ne pro Erasmico quispiam ædat quod vir ille non scripsit dum viveret. Accessit in fine Epitaphiorum ac tumulorum libellus quibus Erasmi mors defletur cum elegantissima Germani Brixii Epistola ad clarissimum virum d. GuL. Langæum. Basileæ, Anno M. D. xxxvii. Cum privilegio Cæsareo ad annos quatuor. Tem o colofon seguinte: Basileæ, per Hieronynum Frobenium et Nicolaum Episcopium, Anno M. D. xxxvi.

O livro continha a lista das obras de Erasmo por ele preparada em vida mas não para Damião de Góis. Mais tarde, saiu uma edição pirata com título quase idêntico Catalogi duo operum D. Erasmi, Ab Ipso conscripti & digesti. Cum præfatione D. Bonifacij Amerbachij … Accessit Vita Erasmi, per Beatum Rhenanum, Monodia Frederici Nauseæ Erasmi uita graphice depingens … Præterea Epithaphiorum libellus, Antuerpiæ apud uiduam Martini Cæsaris, expe[n]sis Ioannis Coccij, 1537. Esta edição incluiu os epitáfios escritos por um jovem português de 19 anos, Diogo Pires, Poeta novilatino, (2 em latim, 2 em grego e 1 com versos alternados nas duas línguas).

A vida de Góis terá prosseguido entre Pádua, Veneza e outras cidades, mas não saiu de Itália até Julho de 1537. Recebe em Junho desse ano uma carta (B-LVI, de 17-6-1537) do Cardeal Tiago ou Jacob Sadoleto (1477-1547), que lhe solicita uma carta de apresentação para Filipe Melanchthon, na esperança de encontrar apoio para uma eventual reconciliação do aparelho católico com os reformadores. Góis prontifica-se a escrever tal carta, respondendo-lhe nesse sentido (carta A-XVIII, de 1-7-1537). Teve depois umas curtas férias na Alemanha, pois, no dia 19 de Agosto redige uma carta (A-XIX) dirigida a Nicolau Kleynaerts ou Clenardo (1494-1542), amigo conhecido já de Portugal. Da ida à Alemanha fala na carta A-XX, de 17-8-1536, dirigida a “um certo amigo”, que é poeta e poderá ou não ser Jorge Coelho.

A carta de apresentação de Sadoleto a Melanchthon teve como resultado o corte de relações deste com Góis.

Volta a sair de Itália no final do ano (no Outono?), regressa a Pádua em Dezembro, de acordo com uma carta que lhe endereçou Sadoleto (carta B-LX, de 20-12-1537).

Não são conhecidas muitas das suas actividades em 1538. É sabido que habitava com seu futuro cunhado Splinter van Hargen e com Joachim Polites ou Burgher desde pelo menos meados de 1536, como diz Nicolau Clenardo na carta B-XLIX, de 22-4-1536, escrita em Évora e dirigida a Joachim Polites (? – 1569). A poesia Figmentum Politae de Polites, incluída no Aliquot Opuscula enumera o grupo de amigos dele, cheios de nostalgia quando ele foi passear a Roma e ao Reino dos Liburnos (entre a Ístria e a Dalmácia, hoje as cidades litorais a sul da Ístria e as Ilhas da Croácia – e não Nápoles, como já se escreveu); para além dos companheiros de casa, o poema refere outros que o elegeram como chefe e guia: Willinger de Schönenberg, fidalgo alemão, (Villingerus), Christoph von Stadion, idem, (Christophorus), Johannes Paludanus, de Calais. Está datado de 12 de Abril de 1538 (e não 2, como diz Jean Aubin).

Por volta de Maio ou Junho, encontrou com surpresa Johannes Magnus em Vincenza; o Bispo estava envelhecido e doente.

Antes do final do ano, Góis volta para os Países Baixos.

Antes de deixarmos a Itália, temos de referir alguns encontros importantes que Damião de Góis teve naquele País. O primeiro foi com Fr. Roque de Almeida que, por volta de 1536, lhe apareceu em Pádua a pedir guarida. Disse Góis no processo que ele apenas lá ficou alguns dias e que depois partiu para Veneza, onde se fez alquimista.

Outro encontro azarento foi como Jesuíta Simão Rodrigues que mais tarde o denunciaria na Inquisição por duas vezes em 1545 e 1550. Deverão ter discutido forte e feio e o Padre Simão terá ficado com uma péssima impressão dele, tanto assim que foi referir o caso ao seu Superior, Inácio de Loiola. Góis disse no processo que Inácio veio de Veneza a Pádua pedir desculpa das atitudes de Fr. Simão, albergando-se em sua casa, com alguns Irmãos da sua regra.

Outro conhecimento dele foi Giambattista Ramusio (1485 – 1557), grande viajante, que publicou o livro Delle Navigationi et Viaggi. Góis deu-lhe o manuscrito de Francisco Álvares, que ele traduziu para italiano e ali inseriu parcialmente.

Antes do final de 1538, partiu pois Góis para os Países Baixos. Joachim Polites compôs um poema de despedida que começa “Inclita, quæ magnum volitant tua scripta per orbem” (Aliquot Opuscula, 1544).

Em data difícil de determinar, no final de 1538 ou princípios de 1539, casou em Haia ainda antes do final do ano com Joana de Hargen, filha de Andrew van Hargen, de uma família de aristocratas rigorosamente católicos. Certamente, o casamento foi arranjado pelo irmão da noiva, Splinter van Hargen, com quem vivia há mais de dois anos em Pádua. A noiva deveria ser muito nova, pois teve um filho em 1565, dois anos antes de falecer, o que aponta para menos de 18 anos à data do casamento.

Para solenizar o casamento, o professor de Latim e Grego, Alard d’Amsterdam ou Alardus Aemstelredamus (1490 – 1544), escreveu um poema a que chamou Epithalamion Damiani a Goes Eqvitis lvsitani, et Joannae ab Hargen Hagensis, que deve ter sido impresso na altura e depois inserido num livrinho do autor chamado Theophilacti Epistola, Lovaina, 1541. O poema tem sido elogiado pelos autores, mas a verdade é que é quase inteiramente plagiado dos clássicos latinos. O autor deveria ter uma erudição muito grande e não deveria encontrar na altura quem o batesse nesse campo de modo a descobrir a cópia. Por outro lado, era de bom tom, na época, fazer citações dos clássicos, deles copiando pequenas frases; mas ele abusa. “Guglando” cada frase do poema, saltam à vista os sítios donde foi feita a cópia [Anexo 2]. Nem admira que Elizabeth Feist Hirsch diga que é “a poem full of amazingly pagan eroticism and mythology”!…

Dos seus amigos, recebeu Damião de Góis muitas felicitações pelo casamento: Pietro Bembo (carta B-LXI, Veneza, 5-4-1539); Lazzaro Buonamico (carta B-LXII, Pádua, 17-4-1539); Sigismundus Gelenius (carta B-LXV, Basileia, 23 de Junho de 1539); Cardeal Cristoforo Madruzzi (carta B-LXVIII, Trento, 5-11-1539); Glareanus (carta B-LXIX, Friburgo, 6-11-1539) e Tidemannus Gisius (carta B-LXX, Löbau, 16-11-1539).

Damião de Góis matriculou-se na Universidade de Lovaina em 4 de Junho de 1539. Em 1540, nasceu-lhe o primeiro filho, a que chamou Manuel. Pedro Nanninck ou Nannius (1500-1557), professor de Latim no Colégio Buslidiano em substituição de Gocklenius que falecera em 25-1-1539, compôs um Genethliacon para o recém-nascido (Aliquot opuscula).

Neste período, Góis publicou vários textos:

Commentarii rerum gestarum in India, em Setembro de 1539, dedicado ao Cardeal Pietro Bembo (carta A-XXI), que termina com uma elegia de Pedro Nannius;

  • Fides, religio, moresque Æthiopum sub Imperio Preciosi Joaniis, em Setembro de 1540, dedicado ao Papa Paulo III (carta A-XXIII). O livro termina com a Deploratio Lappianæ Gentis, em forma de carta dirigida também a Paulo III (carta A-XXIV). Pede depois ao Cardeal Pietro Bembo que o entregue pessoalmente ao Papa (carta A-XXVI). Assim fez o Cardeal, como comunicou a Góis (carta LXXIX, Roma, 11-1-1541).
  • Hispania, em Dezembro de 1541, com um prólogo de Pedro Nannius (carta B-LXXXVIII), pedido por carta de Damião de Góis (carta A-XXVIII).

  • Epistola Damiani a Goes ad Jo. Jacobum Fuggerum, pro defensione Hiapaniæ (carta A-XXIX, de 11 de Abril de 1542)

  • Jo. Jacobus Fuggerus ad Damiano a Goes Equiti Lusitano (carta B–XCI, de 8 de Maio de 1542). Estas duas cartas só aparecem de novo nos Opuscula publicados em Coimbra em 1791.

Entretanto, a família ia aumentando: nascia outro filho a Damião de Góis, que foi chamado Ambrósio, antes de 4 de Abril de 1541 (carta n.º LXXXIV, do Cardeal Cristoforo Mandruzzi, de 21 de Maio de 1541).

Damião de Góis agora sentia-se bem na vida. Entrara numa família holandesa prestigiada, certamente sem problemas de dinheiro e podia dedicar-se à vontade ao estudo e ao convívio com os amigos.

Apareceu uma pequena sombra a estragar-lhe a tranquilidade. Foi o caso que a Santa Inquisição decidiu proibir a venda do Fides, religio, moresque Æthiopum sub Imperio Preciosi Joaniis, pelo facto de Mateus defender o catolicismo dos Etíopes, apesar de descrever cerimónias que bastante se pareciam com as judaicas. Foi o próprio Infante D. Henrique que isso comunicou a Góis por carta de 27 de Julho de 1541, redigida por Jorge Coelho, secretário dele. Góis respondeu com duas cartas que não chegaram até nós, mas certamente bastante duras. O Cardeal defende o seu ponto de vista em carta mais extensa, de 13 de Dezembro de 1541. Ambas as cartas foram parar ao processo (n.º 17170) onde se encontram nas imagens 68, 70 e 71 da versão online. Maximiano Lemos benevolamente defende o Cardeal, afirmando que ele revela sentimentos de simpatia para com Damião de Góis, enquanto Lopes de Mendonça acha que é tudo hipocrisia que esconde a perfídia.

Por esta altura, um médico de Haia, Josse Welsens ou Justus Velsius (1505-1581) dedicou-lhe a sua versão do livro de Hipócrates De insomniis (carta B-LXXVIII, de 1-1-1541), o que se costuma considerar sinal de estima e consideração, como acima disse. Por mim, isso significou apenas uma despesa para Góis.

Sentindo-se bem na Holanda e na Flandres, Damião de Góis não teria a mínima intenção de voltar a Portugal. Ele mesmo o diz a Beatus Rhenanus no final da carta que lhe escreveu de Lovaina em 1 de Junho de 1542 (carta A-XXX). “Finalmente quero que saibas o que, segundo vejo, ignoráveis: ter eu fixado, por causa do ócio literário, residência em Lovaina, onde resolvi viver, se Deus quiser.” Mas o destino iria trocar-lhe as voltas.

Em Julho de 1542, ia Damião de Góis com a família a caminho da Holanda, quando, em Antuérpia, recebeu a notícia de que um exército francês, comandado por Martin van Rossem ameaçava Lovaina. Regressou a toda a pressa à cidade e foi escolhido para comandar um grupo de estudantes que se tinham alistado para defender a cidade.

Rossen propôs aos habitantes que levantaria o cerco se lhe dessem vitualhas, a artilharia mais pesada e 75 000 florins em dinheiro. Os da cidade não quiseram aceitar e contrapuseram 50 000 florins, alguns mantimentos e vinho. Entretanto Góis tinha saído da cidade com dois camaradas para conferenciar com os invasores. Parece que estes teriam aceite as condições oferecidas e retiraram, levando consigo Damião de Góis e os seus camaradas.

Damião de Góis esteve preso 9 meses na Normandia e depois remetido para Fontainebleau. Pediam 6 300 escudos de oiro pela sua libertação.

Não há dúvidas que a libertação de Damião de Góis só foi conseguida mediante a intervenção do Rei D. João III. É o que diz claramente Splinter van Hargen na carta de 3-3-1543 (carta B-XCVI, em que diz que Góis já está em liberdade) dirigida a Cristoforo Madruzzi. Foi-lhe atribuído um resgate elevadíssimo de 9 000 ducados, concedendo-se no entanto ao Rei Português a restituição de 8 000, se se provasse que a captura se fizera sob direito de guerra.

Depois da intervenção do Rei, Damião de Góis não tinha argumentos para se recusar a partir para Portugal. Adivinha-se que sua esposa era contra. Ele usa o nome dela para justificar o atraso na partida, na carta ao Rei, de 11 de Julho de 1544: ”estando de todo prestes pera me ir nesta armada me soçede o inconveniente de maa desposiçam de minha mulher, e de sorte que nem com honra nem bom grado de Deos nem do mundo a poderya pello presente deyxar, assy sõr que poys nesta detremynaçam nã sayo agora cõ efeyto, será se a Deos praz e mo a morte não estrovar o mays cedo q posyvel me for, poys vosa alteza disto tem vontade e gosto.” Depois fala do brasão das armas concedido por Carlos V e acrescenta:”Beyjarey as mãos de Vossa Alteza me querer fazer a mercê de mas confirmar, que será ocasyam de minha molher tomar mor ânimo de se ir a esses reynos e a seus parentes de a deixarem ir”.

No fim de 1544, saía da oficina de Rutgerus Rescius, a colecção das suas obras designada por “Aliquot Opuscula”.

REGRESSO A PORTUGAL

Voltou para Portugal em 1545, sabendo-se que lhe estava destinado o cargo de mestre e guarda-roupa do príncipe D. João, pai de D. Sebastião. Partiu para Portugal com a família repartida: os filhos e as mobílias por mar, a mulher por jornadas e ele pela posta.

Chegou Góis a Évora em meados de Agosto de 1545 e logo no mês seguinte a 5 e 7 de Setembro, o Padre Simão Rodrigues (designado por Mestre Simão) fez na Inquisição de Évora um longo depoimento acusando Damião de Góis de, nove anos antes, em Itália, em conversas com ele durante o período de dois meses, ter manifestado simpatias pelas doutrinas luteranas. É um depoimento cheio de maldade pois acusa de tudo sem nada provar. Não são narrados factos mas opiniões. Não seria aceite num tribunal que funcionasse correctamente. Os únicos factos concretos que refere são que Góis falava francês e italiano e, segundo lhe parece, também flamengo e alemão. As palavras concretas proferidas por Góis nunca são referidas.

A própria Inquisição deve ter dado conta disso, porque em 24 de Setembro de 1550, a Inquisição de Lisboa lhe pediu novo depoimento, que pouco ou nada acrescenta.

O Padre Simão Rodrigues era mestre de doutrina do Príncipe D. João, pai de D. Sebastião e era voz corrente que queria ser também mestre de letras, lugar para que fora convidado Damião de Góis. Não o conseguiu, mas conseguiu afastar Damião de Góis daquele cargo, que foi dado a António Pinheiro, depois Bispo de Miranda.

As denúncias não tiveram seguimento na altura e parece também não terem abalado o prestígio de Góis junto do Rei.

Góis foi para Alenquer e continuou a preocupar-se com as letras. Em 1546 publicou o relato do cerco de Lovaina sob a forma de carta dirigida ao Imperador Carlos V, com o título Urbis lovaniensis obsidio. Remeteu-a ao Rei D. João III, acompanhada de uma carta (PT-TT-CC/1/78/37).

O alvará de 3 de Junho de 1548 nomeia Damião de Góis para guarda-mor da Torre do Tombo a título provisório, “enquanto Fernão de Pina não for livre dos casos por que ora é preso e acusado.” Assim começou ele a desempenhar um cargo que lhe deu mais trabalho do que visibilidade e prestígio.

Em 1549, publicou o livro Damiani Goes equitis lusitani de bello cambaico ultimo commentarii tres, dedicado ao Infante D. Luis (carta A-XXXIII). O livro tem privilégio do Imperador e foi impresso em Lovaina por Servatium Sassenum, de Diest. Constata-se que Góis manteve muitas relações com o centro da Europa, que ainda estão por estudar.

Desde a sua nomeação para a Torre do Tombo, Damião de Góis residia em Lisboa, na freguesia de Santa Cruz do Castelo, conhecendo nós nos livros da paróquia o registo do baptismo de quatro dos seus filhos mais novos e do falecimento de sua esposa. Levava uma vida discreta agarrado ao trabalho e à leitura, com relativamente poucos amigos. Entre estes destaca-se João de Barros, que a 18 de Setembro de 1552, foi padrinho de baptismo de seu filho Fructus.

Publicou depois a Urbis Olisiponis Descriptio, impressa em Évora em Outubro de 1554, dedicada ao Cardeal Infante D. Henrique (carta A-XXXIV).

Na ordem dos trabalhos dele, segue-se a redacção da Crónica do Príncipe D. João, em que se ocupou durante dois ou três anos. Terminou a obra em 1557, mas só foi publicada dez anos depois. Narra os primeiros vinte e seis anos da vida de D. João II, nascido em Lisboa a 5 de Maio de 1455.

Entretanto, ainda em 1554, decidiu mandar para a Flandres os seus dois filhos mais velhos Manuel e Ambrósio, para junto de seu cunhado Splinter van Hargen, a fim de se matricularem na Universidade de Lovaina (carta A-XXXVI, de 2-3-1555, para o Cardeal Cristoforo Madruzzi). O mais velho constituiu lá família, mas Ambrósio regressou mais tarde a Portugal.

Por volta de 1558, o Cardeal Infante D. Henrique confiou-lhe a tarefa de escrever a Crónica de seu pai, D. Manuel I, que já tinha estado a cargo de Rui de Pina, de seu filho Fernão de Pina, do Bispo António Pinheiro e de João de Barros, sem que nenhum deles levasse o barco a bom porto.

Pôs-se Damião de Góis ao trabalho e gastou seis anos a escrever a obra. Ao ser publicado em 1566 e 1567, foi aprovado pela Inquisição, mas recebeu do público uma tempestade de críticas. Os acontecimentos descritos eram demasiado recentes para que os familiares já os tivessem esquecido. Muitos fidalgos sentiram-se melindrados e escreveram a Damião de Góis nesse sentido. Góis deu muitas vezes a mão à palmatória e fez as emendas que lhe pediam, quando pensava que eram justas.

Estas críticas têm impressionado os biógrafos de Góis, de tal modo que muitos dizem que terão sido as famílias fidalgas ofendidas que manobraram para o irem fazer parar à Inquisição. Não concordo. Lendo a edição da “Crítica” de Edgar Prestage, constata-se que ali não há jogo escondido, tudo foi feito às claras. Os fidalgos criticaram, Góis emendou o que lhe parecia que devia emendar e explicou os seus pontos de vista, eles replicaram e ainda responderam às emendas da Crónica. Quem escreve o que pensa não vai depois agredir à sorrelfa.

Já é um pouco diferente a revisão que a Corte impôs dos capítulos 23.º e 27.º da parte III da Crónica, caso que já foi levantado logo em 1839, por dois artigos publicados num jornal chamado O Museu Portuense. É sobretudo a pessoa do Cardeal que está em causa, já que ele e o seu séquito não encontravam na redacção de Góis adjectivos suficientes.

Damião de Góis não viu o perigo aproximar-se. D. João III faleceu em 11 de Junho de 1557 e a Regência ficou a cargo primeiro de D. Catarina, de pois do Cardeal D. Henrique; nem um nem outro tinham por ele a mesma consideração que o próprio Rei D. João III.

A Crónica de D. Manuel I é avaliada diferentemente pelos historiadores, muito louvada por uns, desvalorizada por outros. Há uma pessoa que a avaliou muito positivamente, porque dela se serviu: foi Jerónimo Osório (1506 – 1580) que a partir da obra de Góis redigiu a De Rebus Emmanuelis Lusitaniæ Regis, que é a Crónica do Rei em Latim e que é um dos livros escritos em Portugal mais difundidos na época. Aliás ele reconhece claramente no prólogo (dedicatória ao Cardeal D. Henrique) a sua dívida para com Góis (carta B-CX): “Entretanto, para maior facilidade, valeu-me Damião de Góis que com grande trabalho, pesquisa e canseira, tais factos recolheu de numerosas cartas e comentos, trazendo-nos à memória, através dos seus livros aquilo que eu de modo algum haveria logrado, sem vagar sumo, descobrir.

Um acontecimento importante na vida social de Lisboa foi a chegada em 13 de Maio de 1565, de uma armada comandada pelo Conde Carlos de Mansfelt, que vinha buscar a Princesa D. Maria (1538-1577), filha do Infante D. Duarte, neta de D. Manuel I, para a Bélgica, que se ia casar com o Príncipe de Parma e Piacenza, Alessandro Farnese (1545 – 1592). O Conde trazia um séquito de perto de cento e vinte pessoas. Também Damião de Góis ofereceu um banquete aos visitantes, competindo assim com as pessoas mais chegadas ao trono (Maximiano Lemos).

A 25 de Setembro de 1567, faleceu Joana de Hargen, a esposa dedicada compelida a abandonar a sua terra para seguir o marido e que, ainda dois anos antes, tinha dado à luz o último filho, António. Sabemos que, depois da sua morte, passou a governanta da casa de Góis uma filha ilegítima, de nome, Maria.

Em 20 de Janeiro de 1568, D. Sebastião atingiu a maioridade (!) para reinar que se considerava ser aos 14 anos. Foi coroado nessa data no Paço dos Estaus. Naturalmente, durante um largo período, com um Rei menino, não se saberia muito bem quem mandava no Paço Real, entre sua avó, D. Catarina, seu tio, o Cardeal D. Henrique, o secretário Miguel de Moura… Damião de Góis continuava a desempenhar as funções de Guarda-Mor da Torre do Tombo e as exigências de todos esses mandantes não eram poucas. Pensamos que valeria a pena estudar com profundidade este período até à prisão de Góis para ver se não haverá sinais que nos digam quem tomou a iniciativa de fazer ressuscitar na Inquisição as denúncias de Simão Rodrigues. De facto, é muito provável que, velho e doente, Damião de Góis não tivesse já nem paciência nem capacidade para responder rapidamente a todas as solicitações que lhe faziam da Corte, suscitando a má vontade de todos ou de alguns.

Vou citar as doze cartas dirigidas a Damião de Góis que estão disponíveis neste período, transcrevendo duas de Miguel de Moura, que suponho ainda não foram publicadas (as referências são da D.G. de Arquivos):

PT-TT-CC/1/108/129

27-4-1569 – Carta do rei D. Sebastião para Damião de Góis, guarda-mor da Torre do Tombo, despejar logo o quarto que ocupava nos Paços de Alcáçova, por determinar habitar o dito Paço e que escrevia a Lourenço de Sousa para lhe mandar dar outras.

Sousa Viterbo – Damião de Goes e D. António Pinheiro, pag. 441

Online: http://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/UCBG-A-24-37a41_v042/UCBG-A-24-37a41_v042_item1/P697.html

PT-TT-CC/1/108/134

26-7-1569 – Carta do rei para Damião de Góis, guarda-mor da Torre do Tombo, passar os papéis que lhe entregara o secretário Pêro de Alcáçova Carneiro visto a Torre estar cheia, para a câmara do rei D. Fernando no paço da Alcáçova, para se depositarem as cerca de sessenta caixas de documentos.

Sousa Viterbo – Damião de Goes e D. António Pinheiro, pag. 441

Online: http://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/UCBG-A-24-37a41_v042/UCBG-A-24-37a41_v042_item1/P697.html

4-8-1569 – Carta de Estácio da Fonseca para Damião de Gois, pedindo uma carta de El-Rei que lhe era endereçada

Baião, Episódios dramáticos, I, pag. 42

S.or

Não me vou ver com Vosa Merçe por aver oito dias que tenho minha molher muito doente de febres que he a fruita desta terra e por a falta que nella ha de fizeco e botica cõ que se lhe não acudiu tão depreça como era neçeçareo lhe creseo a doemça de maneira que esta muito fraqua pello quall me lleve Vosa Merçe em comta não ser o portador. João de Castilho me escreveo por via dum criado da Rainha que Vossa Merçe tinha huma carta de el-rei pera mj pera o agazalhar pella quall tãobem me mãodava dar dinheiro pera se pagar humas fereas que se ficarão devendo das obras e asim sobre hum rendeiro de Samtarem de que eide fazer huma delligencia. Vosa Merçe ma fará mui grande mãodarma que por esta a ei por recebida porque corre risquo na tardamça por respeito deste rendeiro e mãodeme em que o sirva porque outra cousa não desejo.

Nosso Sõr acresemte a vida e estado de V. M.

Dalhandra oje quimta feira beijo as mãos de V. M.

Estacio da fonsequa

(á margem) 4 de agosto.

(Sob) Ao sõr Demião de Gois, meu sõr.

Nota do punho de Góes:

Recebida em bj de agosto e loguo no mesmo dia e hora entregei ha carta delrey nosso sõr a ho creado de Estaçio dafonsequa que me trouxe esta carta

Gaveta XX- maço 10 – n.º 14

21-8-1569 – Carta de D. Sebastião para o seu vedor da Fazenda por causa de Góes.

Baião, Episódios dramáticos, I, pag. 42

Dõ Martinho amiguo

Eu elrej vos envio muito saudar. Eu mandej a Damião de Guoes que se mudasse pera os paços d’alcaçova como sabeis e escrevj a Estevão da Fonseca almoxarife delles que lhe desse o guasalhado em que o dito Damião de Guoes esteve os anos passados o qual me escreveo aguora que não tinha o almoxarife ainda satisfeito a jsso e que estava fora da cidade e tinha as casas pejadas cõ pessoas e fato que nellas metera pello que vos encomendo que lhe mãodeis recado que faça logo despejar as casas do aposento em que Damião do Guoes sohia a estar e lho entregue conforme a carta que lhe escrevi e não satisfazendo a jsso provereis njsso como uos bem parecer.

Escripta em Alcobaça a xxj (21) dagosto de 1569.

Rey

Pera Dõ Martinho

Sobs.:Por ElRej

A Dom Martinho Pereira do seu cõselho e vedor de sua fazenda.

Gaveta XXII, m. 3, n. 4.

PT-TT-CC/1/108/138

17-10-1569 – Carta do rei D. Sebastião para Damião de Góis, guarda-mor da Torre do Tombo, ordenando-lhe que tendo já achado entre os papéis, que lhe entregara Pêro de Alcáçova Carneiro, o livro do estilo das cartas que o mesmo senhor escrevia aos reis, príncipes, pessoas de titulo e outros, lho remeter logo com o traslado dos regimentos das alçadas que se passaram quando o infante D. Luís foi à comarca do Alentejo e dos que levou Jorge da Silveira, que o rei D. Manuel mandou com outra alçada.

Sousa Viterbo – Damião de Goes e D. António Pinheiro, pag. 442

Online: http://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/UCBG-A-24-37a41_v042/UCBG-A-24-37a41_v042_item1/P698.html

PT-TT-CC/1/108/140

22-11-1569 – Carta do rei D. Sebastião havendo em serviço a Damião de Góis, guarda-mor da Torre do Tombo, o cuidado que tinha no exame dos papéis que lhe entregara Pêro de Alcáçova Carneiro esperando do seu zelo o continuasse com tanta diligência, que brevemente se acabasse este negócio conforme o que lhe ordenara.

Sousa Viterbo – Damião de Goes e D. António Pinheiro, pag. 442

Online: http://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/UCBG-A-24-37a41_v042/UCBG-A-24-37a41_v042_item1/P698.html

Gaveta XXII, m. 3. n. 6

14-4-1570 – Carta de El-Rei D. Sebastião a Damião de Góis, recomendando-lhe que ultimasse o inventário dos papéis de Pero d’Alcáçova

Sousa Viterbo, Estudos sobre Damião de Goes, pag. 436

Online: http://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/UCBG-A-24-37a41_v047/UCBG-A-24-37a41_v047_item1/P260.html

Gaveta XXII, m. 3. n. 5

21-7-1570 –Carta d’El-Rei a Damião de Gois, pedindo cópia de todas as Bulas relativas à Capela Real

Sousa Viterbo, Estudos sobre Damião de Goes, pag. 436

Online:http://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/UCBG-A-24-37a41_v047/UCBG-A-24-37a41_v047_item1/P260.html

PT-TT-CC/2/248/4

30-8-1570 – Carta do Cardeal Infante D. Henrique – Escrita em Sintra, ordena a Damião de Góis que entregue os papéis a D. António Pinheiro, de que ele precisa para escrever a crónica que lhe fora pedida.

Sousa Viterbo – Damião de Goes e D. António Pinheiro, pag. 449

Online: http://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/UCBG-A-24-37a41_v042/UCBG-A-24-37a41_v042_item1/P709.html

PT-TT-CC/1/109/31

28-11-1570 – Carta de Miguel de Moura para Damião de Góis, guarda-mor da Torre do Tombo, lhe mandar o traslado das cartas do escrivão da puridade passadas a D. António, conde de Linhares, também ao bispo de Viseu D. Miguel da Silva para Sua Majestade ver.

querendo EllRey nosso S.or mandar omtẽ pelas crónicas que V.M. lá tem pera a sua guardaroupa, me disse que escrevesse prymeiro a V.M. se tinha lá outros treslados delas pera ficarẽ na torre do tombo, e que não os tendo que V.M. os fizesse loguo tresladar de muito boa lletra porque quer Sua Alteza hũas destas crónicas na sua guardaroupa continuamente e que outras fiquẽ nessa torre do tombo. E quer também que aja nisto muyta brevidade, e que me responda V.M. loguo por este homem. Também manda Sua Alt.ª, que mande V. M. por este homẽ o Regimento do officio de escrivão da puridade se o achou já ou tamto que o achar mo mande. E ao menos que tragua este bom treslado da carta do dito officio que foi passada a dom antonio conde de llinhares e ao bispo de Viseu Dom miguell da Sylva. E os registos destas cartas se acharão nos llivros do registo da chr.ª do avô dEllRey dom manoell e dEllRey que ds (Deus) tem. E a resposta disto me mãde V.M. por este com muyta brevidade. A Rainha nossa S.ra mandou dizer a ElRey nosso S.or estando em Coymbra como mandava os papeis para a crónica delRey que ds (Deus) tem ao bispo de Miranda. De que Sua Alt.ª recebeo muito comtemtam.to assy da diligencia que V.M. nisso pôs. Quanto aos negócios de V.M. folguaria desaber setenho eu quá mais que o das crónicas esc. Tem V. M. já despachado o dinheiro que pedia porque como era negocio que corria na fazenda e ella se fez este tempo em llix.ª. Se necessário saber isto primeiro de V.M. E também que me mande dizer quaes são os requerymentos que agora tem em poder de manoell coresma para lhe fazer lembrança deles por servir V.M.

Beyjo as mãos de V.M. dalmeyrim a XX bIII (28) de nov.º de 1570

PT-TT-CC/1/109/32

2-12-1570 – Carta de Miguel de Moura para Damião de Gois, guarda-mor da Torre do Tombo, mandar trasladar os contratos das demarcações deste reino concertadas com o de Castela para se entregarem ao Meirinho-mor.

Hũ criado de V.M. me deu amtomtẽ duas cartas suas feitas de algũs dias e antes disso lhe tinha escrito outra peronde V.M. terá visto não me serẽ até então dadas estas suas que agora vierão. Quanto aos seus neguocios que (repassado de tinta) na fazenda o portador dará relação delles, eu cõ mynhas preocupações não pude ir à faz.da mas mandei fazer lembrança disso ao S.or dom Martinho. Cõ esta mando a V.M. uma carta de S. A. para Joam carvalho sobre o seu aposento. V.M. lhe faça aguora lla seu oficio. Tambẽ vai hũa carta dElRey nosso S.or pera V.M. pella qoall verá o comtemtamento que Sua allteza recebeo cõ os papéis que se acharam. E estimaba que acercqua disso V.M. faça. E cumpre a V.M. despachar loguo António guallvão como Sua Allteza lhe escrevia. Também há Sua Allteza por seu ser.ço que V.M. faça loguo tresladar os contratos das demarcações cõcertos e concórdias dantre estes Reynos e os de Castella. E ysto em hũ caderno encadernado e de boa letra pera se dar ao meyrinho mor e elle ter emformação destes negócios quando por p.te de S.A. e de seu ser.ço ouver de requerer algũas cousas que se devam provar cõ os ditos contratos, cõcertos e capitulações. E aqui pode entrar também aq.la patente da Sr.ª Dona Ysabell Dequeme. V.M. deu o treslado e que (repassado de tinta) outras cousas desta callidade.

Se caso for António gallvão não estiver na cidade poderá V.M. mandar cá os papeis que Sua Alteza escreve que envye allgũa pessoa de recado e comfiança como o escryvão da torre podendose escusar ou outra pessoa semelhante que a V.M. parecer.

Depois de nesta carta ter escryto que a levava o cryado de V.M. o mandei chamar pera lha dar e disserãome que era já partido. E por ysso será necessário mandar hũ homẽ cõ estas cartas e respondame V.M. a outra que hũ dia destes lhe escrevy se o já não tyver feito.

Beyjo as mãos de V.M. dalmeyrim, a 2 de Dezembro de 1570

Armário 26 do Interior da Casa da Coroa, maço 1, n. 205

9-12-1570 – Carta de Miguel de Moura a Damião de Góis para lhe remeter os traslados dos papéis mencionados na dita carta.

Sousa Viterbo, Estudos sobre Damião de Goes, pag. 437

Online: http://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/UCBG-A-24-37a41_v047/UCBG-A-24-37a41_v047_item1/P261.html

PROCESSO NA INQUISIÇÃO E MORTE

No dia 4 de Abril de 1571, na sequência de mandado do mesmo dia, foi preso Damião de Góis, sendo-lhe instaurado na Inquisição o processo que hoje tem o n.º 17170. Um outro processo com o n.º 13311 está junto e encadernado com o primeiro; possivelmente referir-se-ia às denúncias do Padre Simão Rodrigues.

Não vale a pena demorar-nos muito a discorrer sobre o processo. Damião de Góis entrou para o cárcere já condenado e os Inquisidores apenas tiveram de se preocupar em encontrar o maior número possível de testemunhas que o denunciassem. Damião de Góis, por seu lado, defendeu-se como pôde e possivelmente juntou uma ou outra invenção que não pudesse ser verificada e lhe servisse de ajuda, como vimos ao sumariar a sua biografia. Infelizmente para ele, houve acusadores da sua própria casa, pois os Inquisidores, certamente bem informados de problemas entre ambos, convocaram para depor seu genro Luis de Castro que, sem referir factos concretos, disse que seu sogro tinha simpatia pela seita dos luteranos. Sua esposa, Catarina, tinha na altura, 21 anos, e foi interrogada de factos ocorridos quando tinha 8 ou 9 anos.

A Inquisição tinha por missão uma tarefa que é uma autêntica impossibilidade: fazer prova da crença das pessoas. Ora, o pensamento é livre por natureza, embora na altura se dissesse que o pensamento não era livre em matéria de religião. Era uma instituição perversa por natureza.

Em 16 de Dezembro de 1572, deu Damião de Góis entrada no Mosteiro da Batalha para cumprir a sua pena – prisão perpétua. É possível que, passado não muito tempo, a pena lhe tenha sido perdoada, porque ele acabou por falecer na sua casa em Alenquer em 30 de Janeiro de 1574, ignorando-se a causa da morte. Com alguma plausibilidade, teria tido uma apoplexia que o vitimou numa noite quando se aquecia ao lume, tendo aparecido parcialmente queimado na manhã seguinte.

FAMÍLIA

Quando veio da Flandres para Portugal, Damião de Góis tinha três filhos legítimos:

1- Manuel – casou na Flandres com Francisca Duval

2- Ambrósio – foi para Lovaina estudar, mas regressou a Portugal, tendo morrido duma queda de cavalo.

3- António – professou em S. Bernardo de Alcobaça, passando a chamar-se Fr. Clemente

Em Alenquer, antes de vir para Lisboa, teve dois filhos:

4 – Rui, que foi morto no cerco de Chaul

5 – André, que foi religioso capucho

Em Lisboa, teve mais quatro filhos, baptizados na Igreja Paroquial de Santa Cruz do Castelo:

6 – Catarina, baptizada a 25 de Junho de 1548. Certamente por engano, o padre chama-lhe Joana no registo de baptismo, possivelmente escreveu o nome da criança ao ouvir o nome da mãe. Casou em Évora com Luis de Castro.

7 – Fructus, baptizado em 28 de Setembro de 1552. Faleceu na batalha de Alcácer – Quibir em 1578.

8 – Isabel, baptizada em 15 de Agosto de 1558. Casou com Diogo Lopes de Sousa

9 – António, baptizado em 24 de Março de 1565.

Teve Damião de Góis três filhos ilegítimos:

1 – Manuel, frade Loyo, depois frade Bernardo, chamou-se Fr. Filipe de Syon, grande pregador-mor, Abade de S. João de Tarouca

2 – Isabel

3 – Maria, Governante da casa de Góis, depois da morte da esposa.

Se é verdade, como diz Henry de Vocht que uma filha de Damião de Góis casou com um filho de seu cunhado Splinter van Hargen, Andrew van Hargen, seria ela porventura a ilegítima Isabel? Estranho, porque ele era nobre, Lord de Oosterwyck. Esse Andrew morreu também na batalha de Alcácer Quibir.

A VEXATA QUAESTIO DO LATIM DE DAMIÃO DE GÓIS

Ao estudar e escrever nos anos trinta do século passado sobre Damião de Góis, Marcel Bataillon, sublinhou que o latim de Góis é muito pobre, que todos os seus livros foram revistos por amigos e, mesmo aceitando que melhorou depois dos estudos em Pádua, Góis “comete erros que fariam rir um menino de treze anos”. Estas afirmações deixaram muita gente furiosa e também serviram a outros para as repetirem como suas sem conhecimento de causa.

Bataillon não está sozinho. Anotando a carta de Damião de Gois 2826 (A-IV), os tradutores belgas das cartas de Erasmo escreveram “Il est vrai que son latin n’est pas excellent” e na carta 3132 (A-XIV-3132): “L’ortographe de Damien de Goes – qui écrit e.a. Ormatia au lieu de Wormatia – laisse beaucoup à désirer tout comme par-ci par-là sa connaissance du latin. La ville ne peut être que Worms. »

Também Elizabeth Feist Hirsch diz: “Since his Latin was neither fluent nor free from errors, Gois cannot share with any of his peers the distinction of being called “a second Cicero”.

Damião de Góis não teve muito tempo para estudar Latim. Sem dúvida, os conhecimentos que levou de Portugal eram rudimentares. E se começou a estudar a sério com Grapheus em 1529, o estudo teve muitas interrupções. Sem dúvida, também o estudou em Pádua – as traduções de Cato Maior e do Ecclesiastes são a prova disso. Mas andou muito tempo no passeio, como vimos.

Aliás, há um argumento para dizer que o seu Latim deveria ser pouco mais que rudimentar: é que, se ele tivesse um conhecimento completo da língua, teria escrito poesia como o seu amigo (amigo até certa altura) André de Resende ou mesmo, Jorge Coelho. É que, naquela altura, toda a gente que sabia bem Latim estudava a métrica e escrevia poesia.

Damião de Góis sabia o latim suficiente para escrever cartas aos seus amigos e entabular conversas simples com os alemães que não sabiam francês (duvido que ele falasse alemão, embora certamente tenha aprendido flamengo).

A PERSONALIDADE DE GÓIS

O carácter de Damião de Góis tem sido objecto das apreciações mais díspares. Camilo Castelo Branco escreveu: “Não era boa pessoa. Tinha talento, fazia chronicas de reis, escrevia em variados assumptos; mas era mordacíssimo, deslinguado, e desluzia as gerações dos seus inimigos com a injustiça própria da sua malquerença.”

Um autor verrinoso contra Damião de Góis foi Mário Sampayo Ribeiro que não poupou adjectivos: Góis tinha “assomos de prosápia, de vaidade e de egolatria”; era “arteiro e oportunista”; “em seus escritos, nunca deixa escapar ensejo de se enaltecer e, sempre que fala de si ou de seus actos, fá-lo com manifesto desvanecimento. Esta auto-admiração era tão do imo da alma que ainda hoje lateja.”

Tanto um autor como o outro são manifestamente injustos. Damião de Góis era um homem ambicioso de notoriedade, nisso não há dúvida. E conseguiu-a estabelecendo uma relação sui generis com o intelectual mais célebre do seu tempo: Erasmo. Não lhe chamaria amizade, até porque a atenção de Erasmo também era interessada. Era a complacência de um idoso (à época) de 67 anos para com um jovem de 31. E hoje todos os biógrafos de Erasmo têm de referir Damião de Góis, pelas nove cartas que este lhe escreveu (e chegaram até nós) e também pelas quatro de Góis (deve ter-se perdido perto de uma dezena).

Atrás de Erasmo, conheceu muita gente célebre naquela época em altos cargos da Igreja e da Universidade. A correspondência aí está a documentar as relações com eles.

Era por vezes impertinente, mas por isso mesmo, longe de ser oportunista. Era atrevido, como quando escreve a D. João III sobre a emissão de moeda (Gavetas XXII-4-2 – Baião, pag. 33, não nos indica a data).

Damião de Góis não era mordaz e, quando escrevia em latim, não o podia ser, porque não tinha vocabulário para isso.

Como referi acima, penso que temos de desvalorizar a polémica com os fidalgos sobre a Crónica de D. Manuel, porque, afinal, tudo foi feito às claras, com excepção dos textos que lhe enviaram redigidos na Corte que essa foi uma manobra bem “escura” (capítulos 23 e 27 da 3.ª parte).

Teve o grande azar de ser obrigado a vir viver para Portugal, quando já tinha decidido viver na Flandres e nos Países Baixos. Foi o cerco de Lovaina que o perdeu.

Continuaaqui

 

Pico um murro na mesa

Acabo de receber o jornal Ilha Maior de 26 de outubro. (os CTT são tão lestos a levar a carta a garcia, que chega quatro dias depois!) e leio, na última página, este artigo de Pedro Damasceno que reclama dos políticos do Pico e de São Jorge, um murro na mesa, para se ouvir no Palácio de SANTANA. Serão precisos aparelhos auditivos?

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Ainda bem que a geografia não se muda por decreto

Se assim não fosse, já há muito, teria havido um decreto a reduzir a superfície da ilha do Pico para baixo dos 170 km2, a montanha não ultrapassaria os 1000 metros e teria sido deslocalizada para um dos extremos do Triângulo. De preferência para o ocidental.
Limpinho!
Ficaria, desse modo, reduzida à sua insignificância deixando de teimar em invocar números que, obviamente, resultaram de um manifesto equívoco da natureza e que não têm qualquer importância objectiva. Sendo, em adição, reduzida a sua notoriedade e procura para os números modestos de que nunca deveria saído.
Porque realmente a dimensão desta ilha, a sua avassaladora notoriedade e a dinâmica do seu sector empresarial são minudências, que apenas entusiasmam os antigos feitores da fronteira e seus descendentes. No fundo uns parolos convencidos, bairristas e mal-agradecidos.
O que vem por Graça de Deus e por via da cor do sangue tem outro peso, vedado ao comum dos mortais. Tornando em batatas a lógica e a matemática e validando a arruaça e a falta de educação como armas credíveis para a luta política num regime democrático.
Sendo evidente que é de um grande desplante quem se atreve a pôr em causa direitos ‘adquiridos’ que vêm do tempo da outra senhora e que, por essa via, são inamovíveis e inquestionáveis. Seja para um aeroporto, um hospital, ou mesmo, um porto. Ponto final, parágrafo. Sendo, por essa lógica, ‘deploráveis’ afirmações como as que a seguir se transcrevem de um decano de blogues num jornal de São Miguel: “Ficamos também a saber que o Governo e o Partido Socialista querem promover o aumento da pista do Aeroporto da Horta mesmo que isso implique um atentado ambiental com a destruição de dois monumentos naturais e mais um outro atentado económico que é construir mais um ‘Elefante-branco’. É que ainda temos poucos. Depois admiram-se do Pico crescer e o Faial definhar. Enchem a boca com a palavra sustentabilidade ao mesmo tempo que untam as mãos com o cheiro do alcatrão.”
Isso a propósito da inscrição no Plano e Orçamento de 2019 do artigo 59 que diz: “O governo promove os procedimentos necessários para a viabilização da antecipação do aumento da pista do aeroporto da Horta, de modo a garantir a sua certificação enquanto aeroporto internacional, de acordo com as normas da Agência Europeia para a Segurança da Aviação”.
Sem qualquer debate profundo, estudo de viabilidade económica ou impacto ambiental decidiu-se avançar com uma estrutura aeroportuária estratégica para o desenvolvimento do Triângulo, afectando três ilhas e seis municípios num acto de pura leviandade política. Sem considerar alternativas, quer no plano financeiro quer no plano da centralidade/acessibilidades e sem ter ouvido, como seria imperativo, as forças políticas dessas três ilhas. Tornando inteiramente opaca uma decisão que deveria ter sido inteiramente transparente, consensual e pública.
Não tendo ocorrido nada disso é lícito concluir que uma obra de tamanha importância foi tomada por mera pressão política de grupo e à sala fechada, não atendendo ao conjunto dos interesses das três ilhas e, sobretudo, à maneira mais adequada de utilizar dinheiros públicos. Não pondo em causa, como é de elementar bom senso, uma ampliação do Aeroporto da Horta que sempre se defendeu para assegurar a sua operacionalidade e desempenho cabal de gateway.
As palavras são duras e magoadas, mas chegou o tempo de acabar com os paninhos quentes e quem não se sente não é de boa gente. É tempo das enteadas do Triângulo levantarem a voz e darem um murro na mesa que não deixe dúvidas a ninguém que chegou o tempo de os bois deixarem de ser mansos, seja por inconfessáveis fidelidades partidárias ou seja por mera cobardia cívica.
Uma excelente oportunidade, portanto, para os políticos do Pico e de São Jorge fazerem uma inequívoca prova de vida.
Como disse e bem o cronista, não nos podemos dar ao luxo de construir mais elefantes brancos. Falamos do nosso futuro e dos nossos filhos e nada pode justificar a adinamia dos descendentes de que quem da pedra fez terra — numa epopeia de suor, sangue e lágrimas.
PS: Será que o Dr. Feitas Pimentel ressuscitou?
Pedro Damasceno
Subscreva o blog cronicasilhadopico.blogspot.com

património ao abandono nos Açores

Mario Jorge Costa

6 hrs

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  • Liunel Jorge Essa coisa está meio perigosa, pois não tem guarda nem qualquer sinalização, pelo menos é o que parece visto daqui.
  • António C. Rocha Quantos metros de altura tem aproximadamente esse forno?

Forno de Cal

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Liunel Jorge Essa coisa está meio perigosa, pois não tem guarda nem qualquer sinalização, pelo menos é o que parece visto daqui.

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a democracia e os números da rejeição

Lusa Ponte Total de eleitores no segundo turno = 147.302.354 = 100%

Total de abstenções = 31.228.099 eleitores = 21,2%

Total de votos nulos = 10.900.374 eleitores = 7,4%

Total de votos brancos = 3.093.349 eleitores = 2,1%

Total de votos Bolsonaro = 56.348.454 = 38,25

Total de votos Haddad = 45.732.078 = 31,05

Total de eleitores que não votaram no Bolsonaro = 90.953.900 = 61,75%

Total de eleitores que votaram no Bolsonaro = 56.348.454 = 38,25 %

56.348.454 de habitantes, ou seja, 27% da população brasileira elegeu um presidente que não foi escolhido pelos outros 73% dos brasileiros!

O eleito já inicia sua gestão com uma rejeição de 61,75 % dos eleitores!

A Democracia não é perfeita…

 

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