LEMBRAR BALIBÓ SEMPRE

A CRÓNICA XXI DE 1989
in crónicas austrais https://www.lusofonias.net/images/pdf/CRONICAS%20AUSTRAIS%201978-1998%204%20edicao%202015.pdf

CRÓNICA XXI – TIMORENSES – PARTE 3
27.1. BALIBÓ REVISITADO
7 de dezembro de 1975 – Forças do exército regular indonésio invadem Timor-Leste.

A invasão, anexação e a morte de, pelo menos, cem mil timorenses criaram tempestades diplomáticas que ainda não estão extintas mais de dez anos volvidos. Cinco colegas, jornalistas australianos, morreram na pequena vila fronteiriça de Balibó. A sua morte às mãos dos invasores indonésios ainda hoje é negada. Tony Maniaty da cadeia nacional de televisão, ABC, estava lá e escreveu recentemente uma novela “As crianças têm de dançar” com base nos seus diários da época….pelas suas palavras aqui revisitámos Balibó.

Eu tinha então uns 26 anos dos quais oito passados como jornalista em Londres e na Austrália na cobertura de assuntos de política internacional. Uma atividade muito gira mas sem perigo, sem ação e muito sem guerra. De repente, em 24 horas, sou enviado para Dili com uma equipa de filmagem, caixas de quinino contra a malária, umas garrafas de uísque, máquinas de filmar e de fotografar.

O meu inestimável canivete suíço (que haveria de sobreviver), um livro para matar o tempo (que não sobreviveu) e alguns blocos de notas para um diário que iria ser escrito, custasse o que custasse.

Já tanto acontecera e eu sentia um vazio dentro de mim. Como viver e suportar – não a guerra, não Timor – mas o pequeno relvado do Hotel Turismo e a saudade das noites de Sidney?

Dili repousa, nada se passa. Três pequenos pontos no céu provaram ser apenas nuvens e (ainda) não a invasão indonésia de que todos falam. Depois veio a chuvada tropical que rapidamente passou e deu lugar ao sol quente e húmido, comigo a ver a sondas repousarem languidamente nas areias brancas da praia, junto às palmeiras. Recordações até agora eram poucas: algumas bebidas, sopas, bifes de búfalo e um estilo de vida do hotel herdado dos Portugueses. Mas onde está a guerra, a revolução, ou será que tudo isto não passa de um sonho?

Demos uma volta pela pequena cidade, semelhante a um filme barato. Um homem a passear um búfalo, as pequenas instalações do aeroporto – chamado internacional – e meia dúzia de casas para esquecer, das quais apenas uma tinha mais de dois andares de altura. Os Portugueses estiveram aqui mais de quatrocentos anos e parece que nada fizeram. Uns quilómetros de estrada asfaltada, um porto com instalações rudimentares, alguns edifícios para recordar (eras os da administração colonial). Tudo isto lembrava as colónias de África transplantadas.

A UDT (União Democrática Timorense) e a FRETILIN (Frente Revolucionária para a total independência e libertação de Timor-Leste) haviam terminado a sua guerra pela conquista do poder e com a ajuda das tropas portuguesas a FRETILIN controlava a situação. Dili tinha bastantes marcas do conflito, desde os slogans pintados nas paredes às marcas de balas e restos de morteiros.

A Repartição de Agricultura tinha um centro de estudos agronómicos onde, aparentemente, a UDT havia aprisionado os locais e depois de os condenar à fome lançou-os aos porcos bravos. A FRETILIN não limpara ainda as instalações – ao que se dizia, propositadamente – e via-se um crânio ressequido no chão, dentes esbranquiçados no meio da poeira, ossos espalhados pela relva sob o sol quente da Maliana. O modelo de agricultura que aqui se praticava havia decerto falhado, disse para mim mesmo. Isto não era o Vietname nem Hiroxima, os ossos não sangravam e os crânios sorriam para nós. Voltamos ao camião, subitamente sóbrios.

Três dias depois da nossa chegada comecei a sentir aquela excitação mesclada de medo, que tantas vezes é fatal para os correspondentes de guerra. Estávamos a caminho do interior e parecíamos crianças. Alex, o cameraman, gozava dizendo “Está um dia maravilhoso para uma emboscada”. Rimos nervosamente. Ele tinha estado em Chipre quando a guerra começou.

Da Maliana víamos todas as montanhas circundantes e um campo de treino de FRETILIN, onde jovens – cerca de uma centena – estavam equipados com sapatilhas, capacetes e toda uma estranha coleção de equipamento bélico. Não me admirei ao ouvir contar quantos acidentes tinham ocorrido aos jovens tropas. Também eu andara na Escola de Cadetes… Eles estavam cheios de entusiasmo, rindo ao mesmo tempo que brandiam as suas espingardas e metralhadoras, subitamente demasiado grandes para o tamanho de que as empunhava.

O nosso condutor, de nome Bonaparte, ostentava uma T-shirt com o enigmático dístico “Duncan has his first disaster”. Ele era membro da FRETILIN e embora não sendo um verdadeiro soldado transportava uma espingarda automática e algumas granadas, não fosse o caso de necessitar delas. Bonaparte era mais novo do que eu uns anos, um revolucionário que todas as noites lia histórias aos quadradinhos (ficção científica) à luz do petromax.

Na primeira noite a caminho de Balibó, dormimos na casa de um padre que em semirruínas desfrutava de vista sobre o que parecia ser todo o território de Timor. Miríades de estrelas enchiam o céu, enquanto na terra pequenos círculos alaranjados de fogo marcavam o local de futuras frentes de batalha. A FRETILIN alegava dominar aquelas povoações, mas nós não tínhamos a certeza.

O padre local preparou-nos uma receção católica condigna: porco assado e uma boa dose de brandi depois da refeição. O silencioso jovem da FRETILIN sorria na cadeira de verga, acariciando a sua pistola, ansioso por provar que sabia utilizá-la. Outro coçava a sua barba rala e continuamente pedia a sua quota-parte de cigarros. No pequeno recetor ouvia-se a Rádio Austrália em onda curta.

Dois dias depois de sairmos de Dili ainda nada havia a reportar.

Depois do pequeno-almoço atravessamos a Ribeira de Nunura, uma das entradas fronteiriças. Todos os pinos de segurança das armas haviam sido retirados. A FRETILIN estava decerto preocupada com atiradores isolados ou furtivos. Era o fatalismo paradoxal de uma guerra invisível. Corre-se um risco ou dois e já é demasiado tarde para voltar para trás. As montanhas deram, de súbito, lugar a Balibó. Uma terrinha simpática e pequena onde nada parecia fazer prever o que ali viria a acontecer e a marcar o seu lugar na História. Balibó tinha até um nome sonoro e fácil de pronunciar. Algumas casas e um enorme forte com canhões reminiscentes dos tempos dos piratas do mar da Mancha era assim que víamos Balibó.

A FRETILIN dizia “vamos assaltar a praia de Batugadé antes do almoço”. As horas foram passando e além do ocasional fumo nada mais soubemos. Batugade, ao longo na noite. Horas de jantar em Balibó. Uma sopa levemente rançosa, milho e arroz empapado. Esta era a nossa dieta, baladeiros sem música para dançar. Frustrante por não nos podermos aproximar mais dos centros de atividade. Claro que se a FRETILIN combatia as forças da APODETI (pró-indonésias) e da UDT e estas haviam recapturado Batugadé, era lógico que não nos deixassem filmar.

Tal como noutras situações de guerra apenas queríamos filmar um pouco e sair da frente de batalha tão depressa quanto possível.

Nessa noite vimos uma luz flamejar ao largo da costa, uma luz branca por cima da linha negra das praias e bem longe destas. Todos calados, apercebemo-nos que se tratava de navios de guerra – provavelmente indonésios, pensamos. Os Portugueses decerto não iam voltar, os Australianos não tinham planos de contingência para tal, teriam de ser Indonésios).

A noite passou depressa, dormimos mal e agitados, pressentíamos que algo estava para acontecer.

E de facto aconteceu. Acordámos como alvo do tiroteio assobiando por cima de nós. A primeira carga de morteiro explodiu a poucos metros. Decidimos empacotar e em menos de um minuto estávamos dentro da Toyota passando pelo forte, rumo ao centro de Balibó, quando nova explosão se dá mesmo em frente.

O noticiário da ABC diretamente da frente de batalha. Saímos em busca de abrigo e ouvimos um helicóptero indonésio mesmo por cima mas não o vemos. Escondemo-nos na vegetação com as caras coladas ao chão, sentindo os corações galopando no solo. O héli sobe e desce junto das montanhas, como quem faz uma inspeção a Balibó e não consegue descobrir sob a camuflagem os arsenais da FRETILIN. Ao fim de alguns, longos, minutos erguemo-nos e tentamos acalmar. Não se ouviram mais tiros nesse dia.

Uma hora depois do tiroteio e bombardeamento estávamos na estrada da Maliana. Vimos uma viatura a subir a encosta em direção a nós. Como não era da FRETILIN saltámos da nossa Toyota para nos abrigarmos no matagal. Era um Land-Rover prateado com a equipa do Canal-7 (Shackleton, Cunningham e Stewart).

Depois de nos identificarmos contamos-lhe o que se tinha passado connosco e avisamo-los do que se estava a passar. Eles disseram que tinham conseguido um condutor para os levar a Balibó e à fronteira e seguiram viagem. Nessa altura, era óbvio que (nós e eles) sabíamos que em caso de cadente não podíamos esperar que nos viessem buscar de helicóptero e levar para um hospital ou que nos evacuassem.

Sentimos que eles tinham ficado excitados com a hipótese de ainda filmarem bombardeamentos como aquele que quase nos vitimara, e pediram-nos para transportamos algumas bobinas de filme para Dili e dali as enviarmos para Darwin.

Jamais pensámos então que seria a primeira e a última vez que os víamos. Era sábado e tinham-se passado já duas noites em que quase não dormíramos. Bonaparte, o condutor, aproveitou uma das poucas boas retas da estrada e começou a abrir…de repente a Toyota desviou para a esquerda.

O choque. Rick Collins da AAP (Associated Press of Australia) vê-o primeiro e grita: “Camião!” saltando logo a seguir. Nós vemos apenas uma enorme massa vermelha envolver-nos e subitamente ouvimos o som amplificado de um milhão de tachos e panelas reverberando à nossa volta. Saltei sem saber como.

Bonaparte todo ensanguentado balbuciava palavras que não entendíamos e pró fim, em inglês diz “que m…..! que m….!” levem-me depressa para Dili, Cruz Vermelha, faz favor.

Rick está em estado de choque. Bonaparte levanta-se, move-se em círculos e parte em busca de auxílio.

A viagem de regresso a Dili demorou cerca de doze horas, quase toda a noite. O medo era a componente pior da viagem. Os dois cameramen estavam gravemente feridos e Bonaparte extinguia-se lentamente ao volante. Para trás ficaram as expressões paradas dos ocupantes do camião.

Eram quatro da manhã, nascia o sol quando chegamos a Dili. Bonaparte foi para o hospital onde haveria de recuperar, antes de morrer mais tarde num recontro com forças indonésias.

Os membros da minha equipa de filmagem tinham derrames internos e voaram para Darwin na manhã seguinte. Dormi mal nessa noite. Eram quatro da manhã quando me levantei para escrever o guião do material filmado na véspera em Balibó e aproveitar para o enviar também para Darwin. No avião de regresso vinha um pacote para mim, remetido por Alex, cameraman, uma garrafa de Haig e um volume de cigarros, dos autênticos.

No mesmo dia chegou uma equipa do Canal-9 com Malcolm Rennie e Brian Peters a quem sugeri, tendo em vista os incidentes das últimas 48 horas – que atrasassem a sua partida para o interior. Mas tal era impossível, sabendo eles que o Canal-7 já lá estava. Partiram depois do almoço. É assim a feroz competição entre os canais comerciais.

Depois de chegarem a Balibó ficaram com Shackleton e restantes, à espera de um exclusivo em primeira mão. Ainda hoje penso o que teria acontecido se eu lá tivesse ficado com eles.

Passaram-se duas semanas desde a minha chegada, e felizmente, os indonésios ainda não chegaram. Posso continuar a tomar o meu bom pequeno-almoço ao ar livre na esplanada do Hotel Turismo. Nas águas, a marinha da FRETILIN, uma vetusta lancha com uma igualmente antiga arma montada no seu topo. Estranha visão de uma canhoneira. Sugiro uma fotografia para o “Janes Fighting Ships of the World” com o título FRETILIN entre França e Grã-Bretanha.

Na quinta-feira seguinte, um dos líderes da FRETILIN veio visitar-me ao hotel. Sentado, aos pés da cama, antes de começar a falar as lágrimas inundam-lhe as faces. Algo de terrivelmente errado se passara, pressenti que era Balibó. Caíra numa ofensiva contra a FRETILIN e nada se sabia dos cinco jornalistas dos Canais 7 e 9.

Não me parecia então possível que tivessem sobrevivido. Eu estivera lá com a mesma preparação que eles tinham e não me sentia capaz de me considerar conhecedor do terreno como os Portugueses e os timorenses, ou mesmo os indonésios.

Levantei-me, fui à Marconi, no edifício dos Correios mesmo ao lado do Palácio das Repartições. Depois de tremendas dificuldades consegui obter ligação com a redação em Sidney, através da Marconi via Lisboa. Relatei a notícia sem dizer que não havia esperança alguma de que estivessem ainda vivos.

Chorei ao regressar ao hotel. Dias mais tarde estava confirmado que eles não tinham sobrevivido. De Sidney pediram que fosse ao quarto deles recolher as suas coisas. Foi uma experiencia chocante. A única que conseguiu tirar a grave crise constitucional australiana das primeiras páginas dos jornais.

Trabalhei desenfreadamente quinze horas em cada um dos dias seguintes, mas apercebi-me de que a minha capacidade de relatar os acontecimentos estava marcada pela morte daqueles cinco colegas de trabalho e mal me aventurei para fora do perímetro urbano de Dili.

A Rádio Cupão (Kupang) mencionava-me no noticiário da noite como um dos únicos jornalistas comunistas ainda em Timor. Sabia que não poderia escapar à invasão indonésia. Os médicos e enfermeiros, talvez, eu não. Duas semanas depois marquei lugar num voo para Darwin. Era 7 de dezembro de 1975.

Nessa data os indonésios iniciaram o esperado assalto a Timor com um forte bombardeamento naval de Dili e um desembarque maciço de paraquedistas. Nesse bombardeamento pereceu outro jornalista australiano, Roger East. Malcolm Rennie, Brian Peters, Greg Shackleton, Gary Cunningham e Tony Stewart não foram os primeiros jornalistas australianos a morrer numa zona de combate, nem serão os últimos.

Recentemente, Neil Davis morreu num abortado golpe de Estado na Tailândia (setembro 1985). Mas a morte daqueles cinco criou alegações e rumores que mais de dez anos passados ainda se mantêm.

A Indonésia continua a negar responsabilidade nas suas mortes alegando que foram vítimas de confrontos entre as forças da FRETILIN e as da UDT/APODETI. Testemunhas, refugiados e documentação da “inteligência [secreta]” dos EUA atestam que foram mortos às mãos de tropas do exército regular indonésio. Os cinco estavam numa casa que ostentava na fachada a bandeira desenhada e a palavra Austrália.

Greg shackleton pinta a bandeira da austrália na parede da casa em Balibó

Greg shackleton ROGER EAST, O 6º JORNALISTA ESQUECIDO

RAMOS HORTA EM DILI ANTES DE 7/12/1975

Greg shackleton

Greg shackleton

Durante o ataque das tropas indonésias tentaram render-se mas foram abatidos a rajada de metralhadora. Durante os últimos dez anos houve vários pedidos de inquérito australiano às suas mortes por membros do parlamento em Camberra, pela AJA (Associação Australiana de Jornalistas) e por familiares das vítimas, mas sem resultado.

Para muitos, é óbvio que a morte deles não foi ocasional, mas premeditada para evitar que pudessem narrar os detalhes da invasão indonésia e da mortandade que se seguiu. Para outros porém, os australianos foram vítimas deles mesmos e da sua simpatia pela FRETILIN.

Claro que se podem colocar sempre algumas questões:
o Estavam eles suficientemente documentados sobre a zona antes de se dirigirem a Balibó?
o Estavam conscientes da existência maciça de tropas indonésias aquarteladas em Timor Ocidental (indonésio)?
o Deveriam os canais de televisão comerciais ter enviado os seus jornalistas para uma zona como Balibó?

Gerald Stone era nessa data Diretor de informação do Canal-9 e ainda hoje garante estar convencido de que estavam todos bem informados sobre os acontecimentos e que nada mais poderia ter sido feito. Mas, por outro lado, a presença da equipa do Canal-7 pode ter estimulado demasiado a competitividade dos jornalistas, que acabariam por permanecer em Balibó mais tempo do que deviam para poderem ter a cobertura exclusiva da invasão à medida que esta se desenrolava.

Outra questão que se Poe é se a amizade e abertura dos timorenses os não teria porventura levado a tentar obter da UDT o mesmo acolhimento que a FRETILIN lhes concedia…

Para Shirley Shackleton, viúva de Greg, a culpa reside ultimamente no silêncio conluiados das autoridades indonésias e australianas que garantiam ao mundo que aquilo a que os cinco assistiam antes da sua morte não estava – de facto – a acontecer.

Os filmes, parte dos quais chegou à Austrália foram o testemunho da ficção que permitiu à Indonésia tomar conta de Timor-Leste sem a intervenção da ONU.