ANTÓNIO BULCÃO O questionário do Costa

O questionário do Costa
O ser humano é estranho. Todos sabemos disso. Mas das reações mais inesperadas, uma das que deveras me impressiona é a necessidade de escrever o próprio nome em sítios inusitados.
Ao longo da vida, vi nomes escritos em cascas de árvores, em bancos de jardim, em carteiras de escolas e, até, nas paredes e nas portas de casas de banho públicas.
Entender-se-ão as inscrições nas árvores e em bancos de jardim. São lugares ao ar livre e as paixões acesas reclamarão a eternidade. Pelo menos até à morte da árvore ou à substituição do macerado banco, fica ali aquele coração, trespassado pela seta, com nomes lá dentro e cupidos a esvoaçarem. O que equivale à eternidade, na cabeça dos apaixonados…
Vamos desculpar, igualmente, os nomes saídos de canivetes para os tampos de cadeiras ou mesas de trabalho nas escolas. São impulsos de mentes em formação, embora comecem mal, nesta parte. Ainda por cima quando um assento de uma cadeira se destina a suportar uma das partes menos nobres do corpo, amassados os amores confessados ou, mesmo, sujeitos a irreprimíveis fonas silenciosas.
Mas… numa casa de banho pública? Geralmente na parte interior das portas dos compartimentos das sanitas?
Gravar ou escrever o próprio nome é, sem dúvida, um exercício de afirmação. Os seus autores querem dizer “eu existo”, ou, muito mais claramente, “eu existo e estive aqui”. O ser humano precisa de expressar a sua individualidade. Por isso, embora constituam agressões à Natureza ou ao património público, ainda entendo o “eu amei aqui”, no caso dos jardins, ou “eu estudei aqui”, tratando-se de uma escola. Mas… “eu defequei aqui”? Que tipo de individualidade se pretende exacerbar com tal escatológica afirmação?
Claro que há outras formas de alguém se afirmar. As mais conhecidas são através do dinheiro e do poder. Ultimamente, em Portugal, parece que vários seres humanos descobriram a melhor forma de obter os dois ao mesmo tempo: a política.
Não quer dizer que antes não houvesse gente na política a gostar do poder e de dinheiro. As cadeias albergam bastantes dessas personalidades e outras aguardam julgamento. Mas este último governo, talvez porque suportado por uma maioria absoluta, bate todos os recordes. São demissões atrás de demissões, sendo que pelo menos uma destas surgiu um dia depois de uma Secretária de Estado ter feito o solene juramento de, por sua honra, ir cumprir fielmente as funções em que estava a ser investida.
A maneira que António Costa arranjou para travar tão grande enxurrada de gente pouco séria que se quer afirmar através da política é um questionário, com 36 perguntas. Sobre se declarou todos os rendimentos, onde e para quem trabalhou, se tem algum impedimento ou conflito de interesse, se algum familiar se meteu em sarilhos, quanto dinheiro tem em contas ou em gavetas, se deve alguma coisa às Finanças e se tem ou já teve chatices com a Justiça.
A ideia, segundo o Governo, é fazer o candidato a membro passar num teste que será aceite pelo 1º Ministro e depois entregue ao Presidente da República e, ainda, possibilitar que a própria pessoa que toma posse avalie se tem ou não condições para aceitar o cargo.
É a isto que chegámos, senhores e senhoras, quase com meio século passado sobre o 25 de Abril. Para vergonha de todo um Povo. Para vergonha de Portugal face ao Mundo. Admitirmos, como País, que estas perguntas não eram feitas no passado a quem nos governa e que quem nos governa não tem consciência de que nunca deveria aceitar governar a coisa pública sem um percurso de vida limpo.
Talvez 36 perguntas sejam poucas. Talvez se devesse perguntar aos ministros em funções sobre o seu passado. Mas pelo menos uma pergunta mais sugiro que seja incluída no teste de avaliação: “Alguma vez na sua vida escreveu o seu nome na porta de uma casa de banho de bares ou discotecas, enquanto estava sentado na sanita?”.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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