sábado entrevista ramos horta

José Ramos-Horta
8 hrs ·
Entrevista para a Revista Sábado desta semana.

por Joana Carvalho Fernandes e Raquel Wise (fotos).
“Não fiz rigorosamente nada na Guiné Equatorial”
Aos 66 anos, o Nobel da Paz mantém uma agenda preenchida – até mais do que quando era Presidente da República de Timor-Leste.
A pedido de Ban Ki-Moon visitou 30 países em seis meses, para melhorar as operações de paz da ONU.
Ativista, político e “ex muita coisa” – incluindo chefe de Estado e rosto da resistência timorense à ocupação indonésia -, José Ramos Horta passa a maior parte do tempo a viajar: colabora com várias organizações internacionais. Mas continua a fazer caminhadas e ginástica, e a ter cuidado com a dieta. Está “em forma”. O Nobel da Paz falou com a Sábado em Beja, à margem do III Fórum da União de Exportadores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), depois de ter convidado o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa a visitar Timor, e enquanto recuperava de uma gripe, que apanhou num voo entre Banguecoque e Viena. “Um mastodonte tossiu e espirrou para cima de mim o caminho todo”, conta. Ramos-Horta diz que só não o matou porque “ele era um tipo enorme”.


Deixou a presidência em 2012. O que mudou a sua vida?
Queria ser embaixador no Vaticano. O meu plano era mudar-me para Roma, ir à missa às quartas-feiras, receber a bênção do Papa, e, no resto da semana, passear por Itália, que adoro, e escrever um livro, falei com o Xanana Gusmão (primeiro-ministro entre 2007 e 2015). Ele não achou graça nenhuma.

A agenda ficou mais carregada?
Sim. O secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, pediu-me para ser seu representante na Guiné Bissau (no âmbito do Gabinete Integrado da ONU para a Consolidação da Paz). Consultei o Xanana e o Taur Matan Ruak (Presidente de Timo- Leste desde 2012). Foi a nossa contribuição para a CPLP e para a União Africana. Timor entrou com cerca de 15 milhões de dólares (13,4 milhões de euros), em dinheiro e equipamento, para a realização do recenseamento eleitoral eletrónico, e 20 técnicos, que treinaram 400 guineenses.

Saiu da Guiné-Bissau em Junho de 2014.
E com gratas recordações. Milhares de cidadãos guineenses, sobretudo as vendedoras, chamadas bideras, organizaram-me uma festa de despedida. Logo a seguir, Ban Ki-Moon convidou-me para presidir ao Painel Independente de Alto Nível sobre Operações de Paz. Foi o trabalho de um ano, para propor reformas e melhoramentos. Continuo ligado a isso, para sensibilizar os candidatos a secretário-geral e os países para a implementação.

Viaja muito?
Passo muito tempo fora. No trabalho sobre as missões de paz, em seis meses visitei 30 países. Ouvi governantes, académicos e sociedade civil. Faço parte do Clube de Madrid, do Conselho Asiático para a Paz e Reconciliação, e sou co-presidente da Comissão Independente sobre o Multilaterismo, um projeto do International Peace Institute, um think tank ao serviço do secretário-geral da ONU.

Foi nomeado pela CPLP para apoiar o processo de integração da Guiné Equatorial. O que fez?
Não fiz rigorosamente nada. Ai aceito uma classificação de 4 – entre 1 e 20. Chumbei. Houve algumas complicações nos formalismos da CPLP. Esperei, esperei e não houve uma clarificação. Fiz esforços para ir à Guiné Equatorial, só que não havia compatibilidade de agenda. Entretanto, Ban Ki-Moon convidou-me para presidir ao Painel sobre Operações de Paz, um trabalho a mais que tempo inteiro.

Como olha para a situação do país no quadro da CPLP?
Não falo pela CPLP, portanto, ilibo os dirigentes de qualquer responsabilidade. Falo enquanto Ramos-Horta, “ex” muita coisa, e com o coração nas mãos. Sem rodeios: não pode haver pena de morte, é preciso eliminar a prática de tortura e promover a verdadeira abertura política do país, convidar todos os interessados para um diálogo nacional. O Presidente deve saber que nenhum regime, nenhum ditador, é eterno. Mas também não concordo que de atire o poder à rua.

Pondera ser candidato às presidenciais de 2017 em Timor Leste?
Não descarto essa possibilidade.

O cargo de secretário-geral da ONU já não é ambição?
Nunca foi. O meu nome foi falado, mas conheço as minhas limitações.

Que balanço faz da última década em Timor?
Díli era uma cidade-fantasma, destruída. Se se sobrevoasse a capital, não se via nenhum teto. Hoje é uma cidade mais moderna, vibrante, com iluminação pública, estradas, muitos carros, engarrafamentos, hotéis, casas. A educação melhorou – mais de 90% de crianças escolarizadas, milhares de jovens em Universidades, em Timor Leste e no exterior. A Malária, uma das pragas, quase desapareceu. A esperança média de vida subiu 10 anos.

Corresponde ao que imaginava?
Gostaria que não houvesse corrupção, que rouba ao povo dezenas de milhões de dólares que podiam ser aplicados em educação, saúde e a eliminar a pobreza. Os nossos hospitais ainda funcionam mediocremente, embora tenham melhorado: em 1975, último ano da presença portuguesa, havia um único médico timorense, um dentista, que vivia em Portugal e nunca tinha trabalhado em Timor-Leste. Em 1999, último ano da presença indonésia, havia 19 médicos, entre os quais o atual primeiro-ministro (Rui Araújo). Hoje temos 1.000 médicos, 95 por cento de Clínica Geral.

E quanto à língua portuguesa?
Já há mais gente a falar português do que no último ano da presença colonial em 1975. Eram uns 10 por cento. Em 2010 – estatísticas oficias -, 23 por cento falavam e escreviam a língua, quando, depois de 24 anos de ocupação indonésia de Timor-Leste, essa percentagem não chegava a meio por cento sequer. Está-se a acelerar. Se circular pelas ruas de Díli, nos cartazes com anúncios (de eventos) em cada dúzia de palaras há uma ou duas em tétum. E isso é importante. O português e o tétum são, com a religião católica, pilares da identidade timorense. São extremamente importantes para se segurar a casa timorense.

Portugal faz o suficiente?
O Estado timorense é que tem de investir mais na educação. Eu celebraria um acordo com a Igreja Católica, para que se assumisse maior responsabilidade na gestão e na educação escolar, sobretudo em jardins infantis e escolas primárias. Portugal, como estado-membro da União Europeia, pode recorrer à ajuda comunitária para melhorar as salas de aula e as condições de trabalho e de vida dos professores portugueses em Timor, e aumentar o número de docentes.

Que empresas portuguesas gostava de ver em Timor?
Timor-Leste devia ser mais agressivo na busca de parcerias com empresas portuguesas para o fornecimento de bens de consumo, de equipamentos, para informatização dos serviços, e construção de escolas, hospitais, infraestruturas. Certas empresas da Ásia – filipinas, indonésias e chinesas – muito privilegiadas pelos nossos governos, constroem estradas que a cada seis meses têm de ser reparadas, edifícios com ruturas. Há má gestão, corrupção e negligência. Timor-Leste também precisa de indústria de construção e manutenção naval, onde Portugal tem larga experiência. Porque é que não se transfere para Timor-Leste equipamento, Know-how e recursos humanos? Basta que os primeiros-ministros, além dos abraços fraternos e dos afectos, falem destas coisas concretas, que têm benefícios mútuo. Porque é que Timor-Leste, ponte para o Sudoeste Asiático, não pode ser um armazém de produtos portugueses, como as conservas?

O que pode a CPLP fazer pela língua portuguesa?
Continuamos a não ter uma televisão da CPLP – que podia ser a RTP – para fazer programas de ensino em língua portuguesa. Com investimento do Estado português e do timorense poderia haver programas direcionados para Timor-Leste, em tétum e em português. E também de cultura geral, sobre Portugal-Timor, e os países da CPLP. Em minha casa, a única pessoa que vê a RTP é a minha mãe, de 87 anos. Felizmente, adormece dois ou três minutos depois. E então mudamos para a BBC ou Al Jazeera. Só os velhinhos em Timor é que vêm a RTP. Estamos, formalmente, via sistema de ensino, a reintroduzir o português, mas em casa, no dia-a-dia, isso não está a ser feito.

O que muda entre Portugal e Timor com o novo Presidente da República portuguesa?
Não houve nenhum Presidente português que não tratasse Timor-Leste com carinho. O professor Marcelo Rebelo de Sousa é uma estrela. Poderá ser um agente de marketing de Portugal na nossa região, e de Timor-Leste na Europa.

Cavaco Silva disse que era impossível a Portugal vetar a adesão da Guiné Equatorial porque Timor-Leste se empenhou no processo. Considerou isso uma “falsidade”. Falaram entretanto?
Sim, mas não tocámos no assunto nem houve animosidade. Discordámos nesse detalhe, como às vezes há detalhes na interpretação da Bíblia em relação aos quais discordamos da sua Santidade. Obviamente que Portugal era sensível à posição de Timor-Leste enquanto detentor da presidência da CPLP, mas o apoio forte à adesão da Guiné Equatorial veio de longa data e de países mais fortes do que Timor Leste – Angola e Brasil.

Em Fevereiro não estava muito otimista quanto à candidatura de António Guterres a secretário-geral da ONU. E agora?
Ele tem dois problemas: nacionalidade – a Rússia diz que é a vez da Europa de Leste; e o género – há estados que defendem que agora tem de ser eleita uma mulher. Mas um secretário-geral, como o Papa, não tem um exército à disposição. A sua força é a sua mensagem. Quanto melhor souber comunica-la, mais poder tem. Também tem de inspirar o mundo – os Estados e o povo -, ter compaixão, sinceridade. E António Guterres tem todas essas qualidades.