relembrar 16º colóquio Sta Mª DANIEL DE SÁ ESCRITOR MICAELENSE, ESCRITOR AÇORIANO, HOMENAGEADO E CONVIDADO ESPECIAL

  1. DANIEL DE SÁ ESCRITOR MICAELENSE, ESCRITOR AÇORIANO, HOMENAGEADO E CONVIDADO ESPECIAL EM SANTA MARIA

DANIEL AUGUSTO RAPOSO DE SÁ nasceu a 02/03/1944. e reside na Maia, S. Miguel, Açores,
Aos dois anos deixa a Maia (S. Miguel, Açores) para, com a mãe e a irmã, ir juntar-se ao pai, que no ano anterior fora trabalhar no aeroporto de Santa Maria. Frequentou três meses a escola de São Pedro, onde nada lhe foi ensinado por, devido à idade, não estar matriculado. Em janeiro de 1951 a família mudou-se para Santana, tendo sido matriculado na escola desse lugar, substituindo nas estatísticas outro aluno de seis anos também. Frequentou o Externato de Santa Maria até ao quarto ano, tendo feito o quinto ano no Externato da Ribeira Grande. Fez o curso do Magistério Primário antes de ser professor nos Fenais da Ajuda por quatro anos. Começou a escrever para o jornal de Cícero de Medeiros, com o pseudónimo Augusto de Vera Cruz. Cumpriu depois o serviço militar (recruta e especialidade) nas Caldas da Rainha e Tavira, passando ao B. I. I. 18, dos Arrifes, até ser desmobilizado. Depois de mais um ano como professor, desta vez na Maia, entrou para a congregação missionária dos Combonianos, esteve quase três anos em Valência (onde fez o curso de Filosofia e o primeiro ano de Teologia) e alguns meses em Granada, onde frequentou a Faculdade de Teologia. Pai de três filhos, foi membro Junta Regional dos Açores, o governo nomeado que preparou as primeiras eleições para a Assembleia Regional. Considera-se, culturalmente, apátrida, no mais permanecendo ilhéu e português. Tem várias obras publicadas e contribuiu para inúmeras revistas e jornais.
OBRAS:
Sá, Daniel. (1982) Génese (novela), D. R. A. C. da Secretaria Regional de Educação e Cultura, Angra do Heroísmo.
Sá, Daniel. (1985) Sobre a Verdade das Coisas (crónicas-contos), edição da Junta de Freguesia da Maia.
Sá, Daniel. (1987) O Espólio (novela), Signo, Ponta Delgada.
Sá, Daniel. (1987) A Longa Espera (contos), ed. Signo, Ponta Delgada, 1987
Sá, Daniel. (1988) Bartolomeu (teatro), edição da D.R.A.C. da Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo, 1988:
Sá, Daniel. (1990) Um Deus à Beira da Loucura (novela), edição da D.R.A.C. da Secretaria Regional da Educação e Cultura, Angra do Heroísmo.
Sá, Daniel. (1992) Ilha Grande Fechada (romance), ed. Salamandra, Lisboa, 1992, 2ª ed. Ponta Delgada Ver Açor 2010
Sá, Daniel (1993) A Criação do Tempo, do Bem e do Mal (ensaio), ed. Salamandra, Lisboa
Sá, Daniel. (1995) Crónica do Despovoamento das Ilhas (e Outras Cartas de El-Rei) (crónicas históricas), edição Salamandra, Lisboa, 1995:
Sá, Daniel (1997) E Deus Teve Medo de Ser Homem (novela), edição Salamandra, Lisboa, 1997:
Sá, Daniel (1999) As Duas Cruzes do Império – Memórias da Inquisição (romance), edição Salamandra, Lisboa, 1999:
Sá, Daniel (2003) A Terra Permitida (romance), ed. Salamandra, Lisboa, 2003;
Sá, Daniel, (2003) Açores – Colección Monumental y Turística – edição Everest, León, Espanha;
Sá, Daniel, (2007) O Pastor das Casas Mortas (novela), edição Ver Açor.
Sá, Daniel, 2007 Santa Maria a Ilha-Mãe ed. Ver Açor
Sá, Daniel, 2009 S. Miguel a ilha esculpida, ed. Ver Açor
Sá, Daniel, 2009 Peregrinos do Senhor Santo Cristo dos Milagres (ensaio histórico), ed Paulus Editora, Lisboa
Sá, Daniel, 2010, Terceira Terra de Bravos ed. Ver Açor
Velhas Energias para um Mundo Novo, ensaio, EDA, 2010.
Sá, Daniel, 2011, As Rosas de Granada (poesia), edição familiar não comercializável, conceção gráfica Ver Açor/ Hélder Segadães.

Apresentou o tema
De São Pedro a Santana, pela Ribeira do Engenho

Basta às vezes um pequeno nada para que se sinta que a nossa vida vai valendo a pena. Há algumas semanas, aconteceu-me uma dessas revelações que nos iluminam os dias. Uma cunhada minha contou-me uma conversa casual que tivera com um senhor de nome Braga, de Santo Espírito. Quando ele soube da nossa relação familiar, pediu para a minha cunhada me transmitir um desejo seu – que eu nunca deixasse de ser mariense.
Ninguém pode deixar de ser aquilo que é. Até o Chrys Chrystello me define como o micaelense mais mariense. O certo é que me coube a boa sorte de, como ilhéu, ter pai, são Miguel, e mãe, Santa Maria.
Das minhas memórias não ficou nenhuma dos meus primeiros dois anos, vividos na Maia onde nasci. Meu pai, que era carroceiro, percebeu que em breve aquela profissão deixaria de ser um modo de vida. E por isso tentou melhor sorte na ilha que se transformara, de um ano para o outro, numa pequena imitação da América para onde tinham emigrado tantos dos seus homens. De tal maneira que, nesse tempo, as mulheres eram muito mais de metade da população de Santa Maria. Estava-se no ano de 1945, e, no seguinte, minha mãe, minha irmã e eu fomos juntar-nos a ele. Não me lembro da viagem nem das primeiras semanas, passadas numa casa à entrada da Ribeira do Engenho, juntamente com os proprietários. Depois fomos para a casa de veraneio de São Pedro da família do Sr. Armando Monteiro, onde estivemos mais de três anos. Dali haveríamos de voltar à Ribeira do Engenho, para uma casinha com o telhado à altura da estrada. Creio que esta e a primeira se conservam com poucas alterações, mas a que pertenceu à família Monteiro infelizmente não.
As minhas recordações não chegam, pois, ao tempo de antes da casa de São Pedro. É ali que começo a existir na minha memória. Recordo vagamente, por exemplo, da visita a bordo a um tio meu que seguia para Lisboa, a caminho de Angola, e que, como se aquela fosse uma terra estrangeira, não pôde sair do navio. Ou outra visita, a da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima, que juntou meia ilha em Vila do Porto. E ainda me lembro de como ficava maravilhado ao ver que a água que a minha mãe vazava da chaleira se transformava em café na cafeteira. Não me apercebera ainda de que na chaleira já estava o pó de cevada torrada. Ou de um dia estar a brincar com um vizinho no corredor, fazendo nós, por turnos, de cavalo e cavaleiro. A certa altura, sendo ele o cavaleiro, começou a dar-me ordens contraditórias. Sem saber o que fazer, pensei em como seria difícil os cavalos perceberem o que pretendiam os donos. E tive pena deles. Esse foi com certeza um momento decisivo para que eu tenha passado a vida a respeitar os animais e a tratá-los quase como se fossem pessoas.
Cresci com algumas incapacidades. Há as que me terão feito falta de vez em quando, mas há outra, que contraria a psicologia e é de certo modo estranha numa criança, cuja origem não sei explicar. Por mais que me pusessem à prova, eu era incapaz de mentir. Se da mais inocente mentira minha dependesse a salvação do Mundo, o Mundo não se salvaria. Talvez por essa e outras caraterísticas pouco comuns, embora não melhores nem piores do que as das crianças da minha idade, é que o Sr. Armando Monteiro, cuja família passava as férias estivais naquela casa, como sempre fizera, predizia para mim um futuro a que gostaria de assistir. Espero não o ter desiludido muito.
Eu ainda não sabia ler, e já, por um mistério qualquer que tão-pouco consigo explicar, se me perguntassem o que eu queria ser quando fosse grande eu responderia que gostaria de escrever romances e ser “chofer”. Pela condução nunca me entusiasmei muito, mas os romances e outras prosas estavam, afinal, no meu destino.
Quando morava já na casinha da Ribeira do Engenho que tem as telhas à altura do caminho, passei a frequentar a escola. Despedia-me de minha mãe a chorar, e ia por ali abaixo com a alma muito encolhida, com o coração muito apertado. A realidade deu razão a todos os meus medos do primeiro dia. O professor transformara aquela casa, a poucos metros da igreja, numa verdadeira casa de horrores. Eu ficava transido de pavor sentado na beira da carteira, e assim foi sempre até às férias do Natal, sem que alguém ouvisse ao menos um suspiro meu ou o mais ligeiro ruído do corpo a mover-se fosse para o que fosse. Como eu não estava matriculado, o professor nunca me dirigiu uma palavra sequer.
Com o Ano Novo de 1951 chegou a libertação. Fomos viver para Santana, e passei a frequentar a escola daquele lugar onde haveria de definir-se, para sempre, a minha personalidade. Por isso como pessoa sou e serei sempre mariense e “santaneiro”. Era assim que chamavam a quem vivia na mais antiga povoação do arquipélago. O termo era pejorativo, mas evoco-o como um elogio.
A casa para onde fomos viver nunca tinha sido chamada casa antes de lá morarmos. Mas o aumento da população da ilha, por causa das obras e outros serviços relacionados com o Aeroporto, foi de vários milhares nos anos que se seguiram a 1944. Por isso qualquer espaço que abrigasse da chuva era usado como moradia.
Mas a mudança de escola mudou também a minha vida. Para sempre e penso que para melhor. A professora era uma regente escolar, bonita, dócil e competente. Chamava-se Eduarda, e era tia de duas futuras amigas e colegas de profissão, a Clara e a Zélia. Eu não tinha ideia ao menos do que era uma conta de somar, mas a D. Eduarda percebeu que podia fazer de mim qualquer coisa. Arranjou um subterfúgio para me matricular, e passei para a 2ª classe logo nesse ano, tendo aprendido a tabuada num só dia. Depois de eu ter começado a confundir tudo a partir da tabuada dos quatro, a D. Eduarda disse-me, a brincar, que eu tinha de decorá-la inteira no feriado de 28 de maio. Ela viria a ficar muito preocupada quando percebeu que eu a levara a sério, o que me custou o dia fechado em casa de manhã à noite. Mas nunca mais esqueci que duas vezes dois são quatro e nove vezes nove oitenta e um, mais o que vem pelo meio.
Na segunda classe tive outra regente, a D. Doroteia, do Pico. Tão mansa que, em vez de régua, usava as próprias mãos para dar “bolos”. Acabava o dia, naturalmente, com elas muito mais doridas do que as dos alunos supostamente castigados.
Na terceira classe foi ainda uma regente que tive como professora. A D. Úrsula, irmã do Dr. Jorge. Com ela os menos respeitadores, que chegaram a fazer até que a D. Doroteia chorasse por não ser capaz de impor disciplina, passaram a comportar-se como anjinhos. Mas, comparada com a de São Pedro, a escola de Santana, frequentada também pelas crianças dos Anjos e do Paul, continuou a ser um paraíso.
Na minha 4ª classe estreou-se como professora a D. Francisca, vinda do Faial, uma jovem só dez anos mais velha do que eu. Foi ela que completou o milagre das três regentes que a haviam precedido, e que tinham de ensinar as quatro classes, a mais de trinta rapazes e raparigas, com idades entre os seis e os catorze anos. Numa pequena casa que fingia de escola, com um quadro preto, giz e dois ou três mapas. Mas foi ali que começaram todas as minhas crónicas, todos os meus contos de Natal, todos os meus livros. E esta comunicação também. Com que cumpro a minha presença num colóquio que em boa parte me é dedicado, coisa que não sei se mereço, mas que, reconhecidamente, agradeço.
Sei que Santa Maria não me esqueceu. E eu a ela muito menos. Foi, para mim, uma terra de dificuldades, mas foi-o também de facilidades. As dificuldades tornaram-me rijas as raízes para a vida; as facilidades permitiram que, dos nascidos em 1944, eu fosse o único rapaz da Maia a ter ido além da 4ª classe.
Feliz de mim, a quem tal ilha-mãe foi dada.

O Santaneiro
Eu já não tenho o gado p’ra tratar,
Nem livros que me esperam para estudo;
Nem tenho de mentir, para ir brincar,
Dizendo que já sei, que já fiz tudo.

Mas chego a crer que um dia, se eu voltar,
A linda ilha dir-me-á quanto me iludo:
Que é pequena p’ra ver, grande p’ra amar,
Que a vida é sempre igual e eu é que mudo!…

Quem voltasse a tirar (inda o desejo)
Às cabras leite, às crias o barbilho,
Sorvendo, de manhã, o sol num beijo.

E gostar de comer, com pão de milho,
Peixe assado e beber chá de poejo,
Ser criança, ter Pai e ser bom filho.


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