ODE À POESIA MIGUEL TORGA

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Para ouvir o poema de Miguel Torga recitado por João Villaret, há que aceder à página http://nossaradio.blogspot.pt/2014/03/miguel-torga-ode-poesia.html e clicar no “playáudio/vídeo”.

ODE À POESIA

Poema de Miguel Torga (in “Odes”, Coimbra: Coimbra Editora, 1946; “Poesia Completa”, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, 2007)
Recitado por João Villaret (in LP “João Villaret no São Luís”, Parlophone/VC, 1959, reed. Valentim de Carvalho/Som Livre, 2008)

21 Março 2014

Miguel Torga: “Ode à Poesia”

Todos os dias do ano são bons para se ler/ouvir poesia, a pretexto do quer que seja. Apesar de meramente convencional, o dia que lhe foi dedicado no calendário afigura-se pertinente para a celebração da poesia que versa sobre si mesma e a condição do poeta.
Aqui se apresenta a “Ode à Poesia”, de Miguel Torga, na voz de João Villaret.Desde Março de 2013, após um vazio de vários anos, passámos a ter na Antena 2 um apontamento regular de poesia, “A Vida Breve”, restrito a gravações na voz dos autores. Não poderia a Antena 1, em complemento àquele, ter um espaço consagrado à divulgação do nosso rico património fonográfico de poesia dita por reputados recitadores (actores e locutores)?ODE À POESIAPoema de Miguel Torga (in “Odes”, Coimbra: Coimbra Editora, 1946; “Poesia Completa”, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, 2007)
Recitado por João Villaret (in LP “João Villaret no São Luís”, Parlophone/VC, 1959, reed. Valentim de Carvalho/Som Livre, 2008)

Vou de comboio…
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
— E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!

Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas…
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?

Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!

Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?

Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?

Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?

Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse…

Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz…

Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir…
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir…

Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama,
E que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.

Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!

Polímnia, a musa da poesia lírica (estátua romana do séc. II, mármore, Museu Pio-Clementino, Vaticano)

Publicada por Álvaro José Ferreira à(s) 17:40