O infante D Henrique e o comércio de escravos

Por acidente, descobriu-se mais um pedaço da história marítima portuguesa. Em Lagos, o tráfico negreiro quatrocentista tornou-se palpável.

 

Texto Paulo Rolão Fotografia Miguel Almeida/Dryas

 

 

Produzida quatro séculos depois do início do tráfico negreiro, esta gravura do século XIX destinava-se a sensibilizar o público para os horrores da escravatura. Gravura: Johan Moritz Rugendas, “Viagem pitoresca ao interior do Brasil”.

Para quem gosta de quebra-cabeças intrincados, com peças de encaixe difícil e cuja solução só se vislumbra após longo trabalho de sapa, esta é a história ideal. Aconteceu em Lagos, na sequência da construção de um novo parque de estacionamento a cargo da empresa Estacionamentos de Lagos, S.A (EL, SA). Entre o início e o fim deste quebra-cabeças distam quase seiscentos anos. No tabuleiro de jogo, o tempo, a erosão e a acção humana distorceram algumas peças, quebraram outras e retiraram o significado imediato de muitas.

No início de 2009, depois de trabalhos de avaliação do impacte arqueológico, foi descoberto um importante conjunto de ossadas humanas, muitas das quais colocadas em posição anormal.Com apoio da EL, SA, uma área da obra foi devidamente delimitada pela Dryas, uma empresa de arqueologia com sede em Coimbra e que presta serviços neste âmbito. Sabia-se que naquele local teria existido no final do século XV uma leprosaria (o próprio termo gafaria ainda persiste na toponímia), o que talvez explicasse os esqueletos, mas, na verdade, a disposição de alguns deles, a descoberta de mulheres com filhos nos braços e os traços negróides de mais de centena e meia de indivíduos lançaram para o ar várias dúvidas. Estavam ali mais do que restos mortais de doentes com lepra, embora a descoberta da gafaria, por si só, fosse inédita no contexto arqueológico português.

Cronologia e as rotas dos principais movimentos de tráfico negreiro. Mapa: NGM-P. Fonte: “An Atlas of the Transatlantic Slave Trade”, de David Eltis e David Richardson. reproduzido com autorização de Yale University Press.

“Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor”, refere o poema “Mar Português”, escrito em 1934 por Fernando Pessoa. Não deixa de ser curiosa esta alusão, exactamente 500 anos após Gil Eanes ter dobrado o também designado cabo Medo. Corria o ano de 1434 quando essa entrada de terra mar adentro, no actual Saara Ocidental, foi por fim vencida e, com esse feito, se inaugurou um novo marco na expansão marítima nacional.

Para trás, já tinham ficado as descobertas das Canárias em 1341, Porto Santo e Madeira respectivamente em 1418 e 1419 e os Açores em 1427, sob o impulso da conquista de Ceuta de 1415, que corresponde à data “oficial” do arranque da Expansão.

Apesar das regalias oferecidas a quem pretendesse colonizar alguns destes territórios encontrados vagos de gente aquando das suas descobertas, cedo se percebeu que os incentivos não sensibilizaram quem tivesse vontade de abandonar a pátria continental e partir um pouco à aventura para terras desconhecidas. Mas, mais do que isso, os primeiros colonos depressa se aperceberam das dificuldades em desbravar aquela terra. Tornava-se premente a necessidade de mão-de-obra.

Mas, mais do que isso, os primeiros colonos depressa se aperceberam das dificuldades em desbravar aquela terra. Tornava-se premente a necessidade de mão-de-obra.

Depois de as caravelas esquadrinharem à bolina o golfo da Guiné e costa da Mina e dobrarem em 1441 o cabo Branco, avistaram-se em 1456, pela primeira vez, as ilhas cabo-verdianas. Na costa ocidental africana, foram iniciados contactos com os habitantes locais, que se poderiam tornar na tal “força de braços” que tanto urgia para aproveitar os territórios já encontrados.

Não surpreende, então, que nos inícios da década de 1440 diversos navios lançassem âncora em algumas cidades portuárias de Portugal com o intuito de desembarcar indivíduos de raça negra provenientes da costa ocidental africana, com a finalidade de serem vendidos como escravos após licitação em praça pública. É aqui que o “mistério” de Lagos entronca.

Embora se soubesse que havia comercialização de escravos, escasseava informação no registo arqueológico – existiam só alguns documentos, um dos quais escrito por Gomes Eanes de Zurara.

No capítulo XXIV da sua “Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné” (1451), este cronista escreve sobre o dia 8 de Agosto de 1444: “Chegaram as caravelas a Lagos (…) Pelo qual me parece que será bem que de manhã os mandeis tirar das caravelas, e levar àquele campo que está além da porta da vila, e farão deles cinco partes, segundo o costume (…) O Infante disse que lhe prazia; e no outro dia muito cedo mandou Lançarote, aos mestres das caravelas, que os tirassem fora e que os levassem àquele campo, onde fizessem suas repartições (…)”

A descoberta de esqueletos com indícios de manietamento e sem a orientação tradicional de sepultamento foi a primeira prova de que o conjunto de esqueletos de Lagos incluiria escravos.

Voltamos a olhar para o Vale da Gafaria. Aquele campo para lá da porta da vila a que se refere o cronista ajusta-se ao local da construção do parque de estacionamento, fora das muralhas citadinas. Lagos era então a base das navegações, sendo legítimo que, ao atracarem no seu porto, as caravelas descarregassem os escravos. A substanciá-lo, volta a estar a crónica de Zurara, que refere o sofrimento dos cativos. “Uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus (…) outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando–se estendidos em meio do chão”, escreveu. cena seguinte deste quebra-cabeças passa-se na privacidade de um laboratório. Mais de um ano depois de terminarem as escavações de emergência, a equipa da Dryas prossegue a investigação associada aos elementos recolhidos no Vale da Gafaria. Apesar dos indícios que suportam a hipótese de que se trata de um local de sepultamentos, falta a prova dos nove, ou melhor, a “prova dos quatrocentos”: será que a datação por radiocarbono dos vestígios osteológicos comprova que estes indivíduos terão vivido no século XV?

Numa lixeira perto da muralha de Lagos, foram encontrados os restos de 155 indivíduos africanos. Os trabalhos científicos permitiram concluir que estes terão sido dos primeiros escravos a aportar à cidade algarvia no século XV.

Apoiados pelo Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, os arqueólogos retiraram fragmentos de costela de um dos primeiros indivíduos inumados no contexto arqueológico – o esqueleto conhecido por “indivíduo 169” – e enviaram-nos para datação. No contexto da arqueologia, as disputas sobre datação costumam ter um árbitro inatacável. A datação por radiocarbono é como o algodão: não engana.

Após algumas semanas de espera, o resultado comprovou as expectativas. O indivíduo em causa terá morrido entre os anos 1420 e 1480 d.C. – os primeiros momentos da história portuguesa (e de Lagos) associados ao tráfico de escravos de África para a Europa. “Parece que temos mesmo algumas das primeiras vítimas deste comércio inaugurado no tempo do infante Dom Henrique”, sintetiza Maria João Neves, arqueóloga da Dryas.

Não subsistem dúvidas, portanto, de que os esqueletos encontrados em Lagos são referentes a escravos – exceptuando os da gafaria, evidentemente.

Não subsistem dúvidas, portanto, de que os esqueletos encontrados em Lagos são referentes a escravos – exceptuando os da gafaria, evidentemente. A juntar a estes elementos, foram descobertos ainda utensílios tipicamente africanos associados a duas sepulturas. A configuração craniana não caucasóide valida igualmente esta dedução. Mas havia mais um elemento desagradável à espera dos arqueólogos: muitos dos esqueletos apresentavam-se com as mãos juntas como se ainda estivessem amarrados segundo técnicas de imobilização características da época. “Há um desrespeito claro pelas regras de enterramento canónico, o que indicia uma desvalorização dos indivíduos falecidos”, diz Miguel Almeida, o arqueólogo que coordenou os trabalhos. O agrilhoamento foi posto de parte, uma vez que não se encontraram grilhetas ou outros vestígios arqueológicos. Teriam sido, ao invés, manietados com cordas ou outros materiais perecíveis.

O agrilhoamento foi posto de parte, uma vez que não se encontraram grilhetas ou outros vestígios arqueológicos.

Também na mesma linha de importância, realce-se o local onde estes foram encontrados – além da casa da leprosaria, aquele terreno fora das muralhas serviu até ao século XVII como lixeira. Maria João Neves fundamenta a ideia: “Juntamente com os escravos, foram encontrados inúmeros desperdícios e vestígios, e não se deve esquecer que, à época, os escravos também eram encarados como ‘lixo’”. No entanto, ressalve-se que existem dois tipos de enterramentos: “Alguns foram simplesmente atirados para o aterro, mas outros denotam preocupação de enterro, com alguma dignidade, digamos assim, talvez porque fossem escravos de segunda ou terceira geração, já nascidos em Lagos, talvez por terem morrido já depois de terem sido comprados ou até por diferenças de crenças entre quem os sepultou. No fundo, eram marginais à sociedade de então, daí terem sido depositados na lixeira.”

Lagos foi o primeiro porto continental português utilizado como entreposto do tráfico negreiro. Aqui chegaram milhares de escravos durante o século XV.

Não se pense, contudo, que o comércio esclavagista se circunscrevia a Lagos ou ao Algarve. Com efeito, as caravelas podiam parar em Lagos, mas seguiam a sua rota, na maior parte dos casos na direcção de Lisboa. Aqui, obviamente, eram também licitados e podiam seguir para diversos destinos – a capital, outros pontos de Portugal e, inclusive, outras paragens europeias e até para as Américas. Basta lembrar que na toponímia de Lisboa, Elvas ou Rio de Janeiro, há travessas do Poço dos Negros e a tradição oral de Lagos ainda recorda um Mercado dos Escravos. O que realmente distingue o caso de Lagos em relação aos restantes em Portugal é que nunca, como ali, foram encontrados tantos vestígios de comercialização de escravos deste período.

O trabalho não acabou com a recolha dos 155 indivíduos – dos quais 99 adultos – entre homens, mulheres e crianças.

O trabalho não acabou com a recolha dos 155 indivíduos – dos quais 99 adultos – entre homens, mulheres e crianças. Apesar de as escavações terem sido dadas como concluídas há sete anos, os dados ainda estão a ser estudados e analisados pela equipa da Dryas. Maria João Neves assegura que “ainda só estamos no início. É um trabalho minucioso, paciente, mas feito com muita paixão. E porque se trata realmente de uma situação extraordinária em termos mundiais, temos imensa força de vontade de que, um dia, se conte a verdadeira história deste caso de Lagos”.

Mesmo com toda a experiência arqueológica, uma escavação que envolva esqueletos humanos é sempre especial para os investigadores e para os transeuntes. Muitos dos trabalhadores que construíram o parque de estacionamento eram portugueses, mas havia igualmente brasileiros e africanos.

Crânio com evidentes modificações dentárias, uma prática tradicional na costa ocidental africana.

“Depois de saberem a história, os brasileiros comoviam-se por pena, como que imaginando o que alguns deles poderiam ter penado se tivessem ido para as terras de Vera Cruz e que poderiam por lá ter disseminado o seu sangue”, conta Maria João Neves. “Da parte dos africanos, senti respeito, como se estivessem a lidar directamente com os seus ascendentes. Uma imagem que me fica na memória é vê-los a observarem silenciosamente os esqueletos que recolhíamos…”

Por ora, esta é uma história incompleta, pois a investigação vai continuar. Há uma questão que ainda atormenta Miguel Almeida e Maria João Neves. De onde vinham estes escravos? Com as tecnologias modernas, cruzando informação morfológica, registos etnográficos sobre práticas de modificação dentária (abundantes nos esqueletos de Lagos) e informação documental sobre as rotas de escravos mais comuns nos séculos XV e XVI, talvez seja possível determinar a origem geográfica daqueles seres humanos que, involuntariamente, escreveram uma página dos Descobrimentos.

O comércio de escravos um novo negócio(1444)

Agosto,08-A partilha de escravos na vila de Lagos

As viagens portugueses à África Ocidental sofreram uma pequena pausa (ou abrandamento), no último quartel dos anos trinta, mas foram retomadas no princípio da década de quarenta, com resultados que pareciam ter uma importância económica significativa, sobretudo a captura e comércio de escravos, ao ponto de motivarem a iniciativa privada para armar navios e levar a cabo algumas expedições.

A primeira delas tem lugar no ano de 1444, é proposta por um tal Lançarote,”almoxarife de el-Rei naquela vila de Lagos”, e leva como segunda figura e capitão de um dos navios, Gil Eanes, “aquele que escrevemos que primeiramente passara o cabo Bojador” – como diz o cronista.

São seis caravelas que se dirigem à Ilha das Garças, a sul dos Baixos de Arguim, onde Nuno Tristão já tinha estado no ano anterior.

A expedição tinha objectivos essencialmente comerciais, mas isso não era incompatível com a exploração de algumas das ilhas mais a sul, sobre as quais, aliás, já havia informações concretas de que era possível fazer grande número de cativos, como viria a acontecer.

Em Naar e Tider, com relativa facilidade, deram caça aos mouros que andavam desprevenidos em fainas de pesca, ou que viviam perto da costa. A zona não é fácil para a navegação com as caravelas, mas à custa dos batéis e com saídas bruscas obtiveram o maior número de escravos que alguma vez tinha sido feito por qualquer expedição portuguesa.

No dia 8 de Agosto de 1444 – um dia após a sua chegada – teve lugar no terreiro, defronte da porta da vila de Lagos, a macabra partilha duma mercadoria que se viria a tornar habitual.

Esta partilha tem como assistente o Infante D.Henrique e a crónica dos feitos da Guiné de Zurara, relata dum forma impressionante, eis uma passagem ;

Mas qual seria o coração, por duro que ser podesse, ti que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostros lavados com lagrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos ceus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem acorro ao Padre da natureza; outros feriam seu rostro com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quaes, posto que as palavras da linguagem dos nossos não podesse ser entendida, bem correspondia ao grau de sua tristeza.

Outros acontecimentos em Portugal

* Outras incursões pela costa de África neste ano

Gonçalo Sintra descrito por Zurara como tendo sido «moço de estribeyra» e mais tarde escudeiro do Infante D. Henrique, e que, ao seu serviço, juntamente com Dinis Dias, terá descoberto o Cabo Branco e a ilha de Arguim, vindo a falecer, juntamente com a tripulação em 1444 na ilha de Naar ou de Tíder.

Diogo Afonso, criado do Infante D.Henrique, juntamente com Antão Gonçalves e Gomes Pires, terá chegado ao Rio do Ouro, com 3 caravelas.

É ainda em 1444 que um caravela comandada por Nuno Tristão realiza um progresso significativo, a chegada à Terra dos Negros ou Guiné, que garante aos navegantes que haviam chegado a um novo espaço verde e de aparência fértil em contraste com a terra desértica e arenosa que até aí haviam tocado.

Dinis Dias volta outra vez ainda este ano, comandando uma caravela armada em Lagos, avançando até à ilha da Palma no actual Senegal.

* O Papa Eugénio IV eleva D. João Manuel, filho bastardo de D.Duarte, fruto duma ligação a uma nobre castelhana D. Juana Manuel, ao título de bispo de Ceuta, obtendo logo a seguir o título de primaz da África

* Março.29-Nomeação do filho primogénito do regente D. Pedro, D. Pedro já Condestável do Reino, para o mestrado de Avis.

* Maio,23-O infante D. Fernando, jovem irmão do rei, é nomeado pelo regente D. Pedro mestre da Ordem de Santiago (que do infante D. João passara a seu filho D. Diogo).

Matéria original: O comércio de escravos um novo negócio(1444) IN https://www.geledes.org.br/o-comercio-de-escravos-um-novo-negocio1444/