Manuel da Silva Mendes – um intelectual português em Macau | JTM

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MANUEL DA SILVA MENDES – UM INTELECTUAL PORTUGUÊS EM MACAU

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António Aresta *

António Aresta *

O homem que mais demoradamente pensou a filosofia taoista chinesa e sobre ela escreveu páginas cintilantes, que estudou com minúcia a estética e as religiões chinesas, permanece, e utilizo as palavras insuspeitas de Henrique de Senna Fernandes, “injusta e inteiramente desconhecido pelos portugueses de Portugal, mas que está no coração e na admiração dos macaenses, muito mais e a grande distância, do que Wenceslau de Morais ou Camilo Pessanha”.

De facto, é um mistério que este erudito sinólogo seja desconhecido para muita da investigação que por aí se faz ou que a sua obra não tenha conhecido uma reedição completa, sequer uma antologia, isto é, uma muito maior difusão. Este apagamento e esta desatenção, parece uma conspiração de silêncio e não é fácil de explicar. Coloco a questão de outro modo e de outro ângulo de perspectiva.

As grandes figuras do pensamento e da cultura, nascidas ou radicadas em Macau e de raiz portuguesa, quem as conhece e quem as estuda? Falo de José Miranda e Lima, de Lourenço Pereira Marques, de Leôncio Alfredo Ferreira, de Pedro Nolasco da Silva, de José Gomes da Silva, a título de exemplo. Excepções, apenas o poeta Camilo Pessanha e o Wenceslau de Morais no exílio nipónico.

Afinal, teremos de concluir que o apagamento não é um exclusivo de Manuel da Silva Mendes. O que não temos tido são historiadores do pensamento e da cultura atentos à realidade de Macau e às suas máximas figuras. O que é lamentável.

Entretanto, observemos o seu trajecto em Macau, território ultramarino onde aportou em 1901, contratado para o Liceu. Governava o Território, pela segunda vez, José Maria de Horta e Costa.

De Vila Nova de Famalicão para Macau, uma pequenina cidade perdida na imensidão meridional da China, tal foi o itinerário de Manuel da Silva Mendes. Estudando e analisando os primeiros trinta anos da história contemporânea de Macau, em pleno século XX, agiganta-se a figura de Manuel da Silva Mendes mercê da sua porfiada intervenção cívica e política na imprensa, da sua vera adesão à metafísica da perplexidade superiormente modelada na poética do taoísmo e da apurada sensibilidade com que estudou as características nucleares da arte chinesa. Para completar o retrato desta voz solitária, há ainda as magnas tarefas educativas em que se viu envolvido como professor, professor de português, de latim e mais tarde de alemão, reitor do liceu durante anos, os cargos políticos que desempenhou e as actividades estritamente forenses, decorrentes da sua situação de advogado.

A sua enorme e valiosa colecção de arte, apaixonadamente reunida, foi adquirida pelo governo português de Macau para enriquecer o espólio do Museu, essa mesma instituição que ele tantas vezes criticou por não ter um acervo digno da velha história dessa cidade unida por duas culturas.

Não estava sozinho, evidentemente. Amigo de bonzos, de mandarins e de piratas, Manuel da Silva Mendes dizia, com sentido de humor, “também me honro de ser mandarinete nesta sínica terra macaense”.

Cito apenas outras três grandes figuras portuguesas, cuja estima era recíproca, e que cruzaram as mesmas ruas, o mesmo liceu, os mesmos locais públicos e frequentaram as mesmas viagens: O doutor José Gomes da Silva, coronel médico, director dos Serviços de Saúde, primeiro reitor do Liceu e ensaísta de fôlego e representante da epistemologia positivista, é outra figura injustamente esquecida; o padre José da Costa Nunes, mais tarde bispo e cardeal foi um grande amigo de Manuel da Silva Mendes, como ficou exemplarmente registado no jornal ‘A Pátria’, onde se conta o episódio pitoresco de como o bispo ofereceu uma valiosa chávena a troco de artigos para ‘A Pátria’; Camilo Pessanha, colega no liceu e no fôro, poeta e sinólogo. Foram amigos, viajaram ambos para a China diversas vezes, mas Silva Mendes não o considerava um coleccionador de arte chinesa, sequer um bom poeta simbolista. Este pormenor tem alimentado equívocos e mal-entendidos entre as opiniões dos seus contemporâneos, sobretudo por causa de um artigo póstumo dedicado a Pessanha.

E poderia lembrar dois chefes de piratas, que salvou da forca em Cantão, cada qual com um impressivo currículo. Mas voltemos um pouco atrás para agarrarmos o fio da meada.

Debaixo daquela prazenteira fluência em que nos narra, com muito humor, as circunstâncias que antecederam a sua partida para Macau, está uma vivência política assumida com paixão e uns interesses intelectuais que se integravam na vanguarda do seu tempo. Incluindo a publicação da obra “Socialismo Libertário ou Anarquismo”, em 1896, que procura ser uma história geral do movimento das ideias socialistas e anarquistas. Silva Mendes era um anarquista em espírito, como bom hegeliano, aproveitando, como dirá Croce em 1907, a parte viva da filosofia de Hegel, a ciência do espírito objectivo, mas não ousando nunca assumir-se mediante uma praxis consequente. E este aspecto é bastante importante porque essa noção de anarquismo individualista, o anarquismo ‘lui même’, é remetido para Lao Tse, cujo espírito irracionalista escapa aos contextos da filosofia que ‘fala’ grego.

Manuel da Silva Mendes, como é sabido, apreciava a poética do taoísmo, sobretudo as virtualidades intrínsecas a essa metafísica da perplexidade. Quando desembarca em Macau, em 1901, traz consigo a cicatriz de um exílio interior que parte da verificação de que ainda não é o momento preciso para o socialismo libertário ou anarquismo dispor de uma razão aberta, onde o racional deveria obedecer ao real. E os anos de Macau mostrarão um Silva Mendes com outras preocupações espirituais e intelectuais, subsistindo, no entanto, algumas ideias primaciais do socialismo libertário.

E que Território vai encontrar?

Vai encontrar uma colónia em franca desnacionalização, sem opinião pública com tradições interventivas e com graves problemas de infra-estruturas. Pela palavra escrita, pelo exemplo e pela acção, irá tentar inverter algumas situações, contribuindo ao mesmo tempo para a formação das mentalidades dos seus coevos e para o prestígio social do exercício construtivo da crítica. E isto não era trabalho de somenos, ontem como hoje.

Encontramos a sua colaboração regular na ‘Revista Oriente’ (1915), no jornal ‘O Progresso’ (1915), no jornal ‘O Macaense’ (1919,1920,1921), na ‘Pátria’ (1924, 1925,1926,1927), na ‘Ideia Nova’ (1929) e no ‘Jornal de Macau’ (1929). Esta massa imensa de artigos e de estudos será republicada por Luís Gonzaga Gomes, seu antigo aluno no Liceu, no jornal ’Notícias de Macau’, nas décadas de quarenta e de sessenta, em folhetins, tal era a popularidade do autor. Tudo isso foi reunido em vários volumes, por Luís Gonzaga Gomes, e que aguardam um reedição cuidadosa, acrescida de materiais inéditos.

Manuel da Silva Mendes encarna o protótipo do cidadão que vive a sua cidade, que ama a sua cidade, uma verdadeira ‘polis’ no seu sentido mais primordial. O seu modo de ser, a sua postura moral e cívica, reflectem-se na combatividade e na veemência com que ousa, publicamente, assumir-se numa pequena cidade provinciana cindida por duas culturas singulares, a portuguesa e a chinesa.

Defensor activo e intransigente da identidade portuguesa de Macau e das marcas contrastivas da identidade chinesa, afirmava em 1909, que “os estudos orientais que há poucos anos ainda constituíam apenas temas para divagações de espíritos curiosos, estão já hoje, mercê da aproximação do Oriente com o Ocidente em suas relações principalmente comerciais e políticas, adentro do âmbito da cultura geral”. Preocupava-se com aquilo que chamava de “citadina desnacionalização”.

E puxa pela sua memória: “Quando, há perto de trinta anos, eu desembarquei pela primeira vez em Macau, a cidade não tinha o aspecto que hoje tem […] Eu bem sei que Macau nunca foi uma Florença nem, em beleza arquitectónica como Pekim ou Hangchao. Todavia muito de bem português e de bem chinês, muito mais de nacional do que os outros europeus na China têm, Macau teve. E tudo, quase tudo, tem sido destruído por nós… coveiros de nós mesmos! Eu me recordo bem de ser toda a Praia Grande, a Rua do Campo, as ruas do Hospital e de S. Domingos, o Leal Senado, a Sé e o mais que em linha até á Barra vai, tudo português. E hoje o que é isso?… Um mistifórdio arquitectónico, incaracterístico, reles. Residências chinesas, levantadas por antigos tai-pans, de linhas puras, de sumptuosa e por vezes, mui artística decoração, havia muitas: havia-as como não as há em Hong Kong, nem em Xangai. Wong Pu decorou algumas delas. Restam hoje poucas, afogadas sobre a sombra de circunjacente casario informe. Deste ruimento vandálico da história, da estética, do bom senso, salvaram-se os templos budistas”.

É com alguma incontida amargura que Manuel da Silva Mendes desabafa em 1919: “A própria história de Macau ignorámo-la quase completamente. Em língua portuguesa nunca foi escrita. Documentos, sobre que ela deveria fazer-se, tem desaparecido quase todos. Pelo desleixo, pela acção não impedida do tempo e dos insectos foram na maior parte destruídos. Vários aspectos da história de Macau há que não foram sequer ainda bosquejados. Nunca se procedeu a trabalhos de colecção; nunca se arquivou sistematicamente cousa alguma; nunca houve cuidado em conservar o que casualmente ficou. E assim chegamos ao século vinte sem história escrita da grande empresa social da Europa na Ásia, nós que fomos os primeiros a iniciá-la. Tal desleixo, se inconcebível não é, coloca-nos, sem dúvida, perante estrangeiros, numa deprimente inferioridade. Mais do que eles devíamos nós possuir dados, elementos, documentos para a história da acção da Europa na China”.

Pode falar-se realmente num novo discurso sobre a cidade, uma nova linguagem sobre o social e sobre a estética da estrutura urbana, em simultâneo como uma transformação dos monumentos em documentos, no sentido da epistemologia de Michel Foucault. Esta forma crítica de estar em Macau, que adoptou como segunda pátria, leva-o a interessar-se, com profundidade e com um invulgar espírito de erudição, pelos factores essenciais da cultura chinesa, nomeadamente a arte, a religião e a filosofia.

Na filosofia taoista, adverte-nos Manuel da Silva Mendes que “há expressões e formas de dizer consagradas, que todos os escritores empregam, de significado preciso e por isso de emprego por assim dizer obrigatório; e em grave risco de estabelecer confusão ou de se mostrar pretensioso incorrerá quem ousar substitui-las”.

Retomando as suas preocupações metodológicas diz-nos que “quem escrever sobre o taoísmo, tem de tomar um destes dois caminhos: ou apresenta-lo seco, como um osso esburgado à maneira de Lao Tse, subtil até á incompreensão como fez Chuang Tse – em ambos os casos com a certeza de que raríssimas serão as pessoas que, começando a leitura, a levem até ao fim; ou então expô-lo amenizadamente, em forma mais compreensível do que se lê nestes dois autores. Preferi este segundo processo”.

Chega então à conclusão de que a “forma em verso pareceu-me, porém, mais própria para incitamento da leitura”. Manuel da Silva Mendes vai interpretar, utilizando a expressão poética, o pensamento taoista, sobretudo os paradoxos existenciais. Não tenho a certeza se a poesia filosófica de Manuel da Silva Mendes não deverá integrar o magistral delta literário de Macau, de José Carlos Seabra Pereira.

Silva Mendes poetisa a crítica dessa construção, com sobriedade e erudição, apontando a crença no imaterial e na força da tradição pelo que é um pioneiro dentro da filosofia comparada, no universo da língua portuguesa.

Os problemas globais interessam-lhe sobremaneira. Dizia ele: “Temos tido em Macau ultimamente uma série de anos financeiramente prósperos. Viu algum que se houvesse aproveitado esta prosperidade para o progresso intelectual da colónia? Nem um avo se aplicou nisso”. Por estas e por outras era um homem cuja opinião era temida e incómoda. Veja-se esta referência de 1920: “Se Macau, portanto, é uma fortaleza com homenagem, é-o só para quem assim o quere. É fortaleza para a ignorância, para a preguiça; e muita gente há, de resto, que até a fortaleza mal conhece e a homenagem, para essa, é favor que não merece”.

Manuel da Silva Mendes antecipou muito bem o espírito da “Seara Nova” em Macau: combatividade cívica, alheamento dos partidos políticos mas não da política, defensor intransigente da democracia, da governação justa e ética. Ninguém o igualou nesse registo de indagar a complexidade luso-chinesa e sino-portuguesa geradora de sentido. Quantas questões antropológicas contemporâneas em torno da construção pessoal do cidadão de Macau, não apresentou na imprensa do Território?

A reflexão perseverante de Manuel da Silva Mendes em torno dos valores subjacentes à utopia em Macau, descentrada da China e descentrada de Portugal, permanece em aberto porque a sua ressonância não se apagou.

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