LEMBRAR O ARQUITETO MANUEL VICENTE, UM AMIGO

Manuel Vicente, considerado por muitos como o “arquitecto de Macau”, morreu há 10 anos.
A 9 de Março de 2013, vítima de doença prolongada, morreu o “arquitecto de Macau”.
Manuel Vicente despedia-se da vida aos 78 anos, deixando para trás um legado com visão para frente.
Autor de obras icónicas de Macau como o edifício do World TradeCenter, a sede da Teledifusão de Macau, o fecho da Baía da Praia Grande ou o complexo de habitação social do Fai Chi Kei, entre muitas outras, Manuel Vicente foi também o co-projectista da remodelação da Casa dos Bicos que hoje alberga a Fundação José Saramago.
A sua passagem por Macau não deixou ninguém indiferente, não só pela obra feita, mas também pelo testemunho dado às diversas gerações de arquitectos e residentes que o conheceram, uns mais profundamente que outros, mas todos assumem que o legado foi profícuo.
Ao PONTO FINAL, cinco arquitectos locais falaram sobre o mestre.
Francisco Vizeu Pinheiro considera Manuel Vicente “muito importante”.
“As suas obras são monumentais, mas com um carácter muito prático.
Ele gostava de usar formas geométricas com especial enfoque nos triângulos”, começou por dizer o arquitecto português radicado em Macau há diversos anos.
Para o também professor na Universidade de São José (USJ), a obra de Manuel Vicente “tem uma força plástica muito grande, com um certo dinamismo”.
“Podemos ver isso nos seus edifícios mais icónicos em Macau, como o World Trade Center ou a sede da TDM.
Infelizmente, já não podemos ver, mas o complexo de habitação social do Fai Chi Kei também era exemplo disso.
Aliás, a demolição dessa obra foi um erro.
É exactamente a mesma coisa do que demolir as habitações chinesas do Porto Interior, em diversos pátios, com mais de 100 anos.
Foi uma pena”, lamentou.
Vizeu Pinheiro deixa um repto às autoridades ou a quem o possa fazer.
“Seria interessante o Governo ou alguém tornar público e divulgar os planos dessas obras.
O Fai Chi Kei, as Torres da Barra, entre outros, porque a sua obra não é ‘fast-food’.
Eram projectos pensados, com princípios e com muitos estudos”.
O professor lembrou ainda que Vicente “era um homem de diálogo, mesmo sendo, por vezes, controverso”.
“É bastante conhecido em Macau e em Portugal, onde também deixou obra.
Confesso que algumas das suas obras deveriam ser registadas como património.
Não era, de todo, o tipo de arquitecto típico, se assim posso dizer”, rematou.
MARCAS INDELÉVEIS NO URBANISMO DE MACAU
Francisco Ricarte fala em “marcas indeléveis na configuração da imagem e forma urbana da cidade”.
O arquitecto-fotógrafo destaca “o plano do fecho da Praia Grande, bem assim como em inúmeros edifícios habitacionais, de serviços e industriais, alguns, infelizmente, já demolidos”.
A obra de Manuel Vicente, aponta Ricarte, “deixou um legado relevante no panorama da arquitectura contemporânea portuguesa da segunda metade do século XX, quer em Portugal, quer sobretudo em Macau, cidade onde desenvolveu a sua actividade profissional em dois períodos distintos – anos de 1960 e anos 1980 a 2000”.
Ao mesmo tempo, acrescenta o arquitecto, Manuel Vicente “foi um pedagogo incansável, mobilizando colaboradores, alguns ainda com prática profissional na RAEM, que desenvolveram, em parceria, os seus projectos segundo linguagens sempre inovadoras, questionando a essência do programa, a sua forma edificada e contexto urbano em causa”.
“Procurou sempre criar soluções de grande valor urbano – os lagos Nam Van e Sai Van enquanto parte integrante da cidade de Macau são um excelente exemplo – bem como desenvolver projectos arquitectónicos de grande personalidade, sabendo, contudo, lidar com o ‘vulgar’, o ‘híbrido’, ou o ‘vernacular’, segundo as características da sociedade, da economia e da dinâmica urbana de Macau”, enfatizou.
TAL COMO A GASTRONOMIA MACAENSE
Manuel Vicente era um profundo conhecedor de Macau e da cultura de Macau.
Disso André Ritchie não tem quaisquer dúvidas.
“Conseguiu criar uma linguagem muito própria, não seguindo tendências existentes na altura”, começou por dizer ao nosso jornal.
E fez uma analogia bastante interessante, consideramos nós.
“Comparo a obra dele com a gastronomia macaense.
Ele pegou nos materiais existentes em Macau, pegou na mão-de-obra e tecnologia locais e criou um prato muito próprio, tal como se faz com a comida macaense.
Soube viver com as limitações”.
André Ritchie ressalta que há elementos na obra de Manuel Vicente “que são muito típicos daquilo que se vê em Macau, nomeadamente no que diz respeito às cores, texturas e materiais” e deixa outra curiosidade da sua leitura.
“Tenho para mim que ele tinha um gosto peculiar pelo clandestino e, por exemplo, pelas estruturas ilegais.
Quando olho para os seus edifícios vejo elementos clandestinos e ele brinca muito com isso”.
O macaense referiu ainda que, “sem sombra de dúvidas”, “a linguagem de Manuel Vicente na arquitectura era muito genuína e muito de Macau”, e lamenta hoje em dia não se fazer um pouco daquilo que foi o seu legado.
“Sem querer estar a ferir susceptibilidades e a tecer considerações negativas sobre o trabalho dos arquitectos, parece que tudo é feito por catálogo”, concluiu.
TÃO FUNCIONAL QUANTO PLÁSTICO
“Lembrar Manuel Vicente é lembrar a tradição de pensamento arquitectónico fundado em escrutínios críticos que tanto são funcionais como são plásticos”, referiu Mário Duque ao nosso jornal, notando ainda que “lembrar Manuel Vicente é lembrar moldes que conferem sentido ao espaço físico”.
O arquitecto sugere assim que dessa escola “resultou que nenhuma obra é igual a outra obra, como nenhuma é estranha de outra, porque tudo é consequência do que antecedeu”.
“E nada é definitivo porque tudo é para ser de novo escrutinado e interpretado”, acrescentou.
Para Mário Duque, no trabalho de Manuel Vicente, “nenhuma realização é gratuita ou ocasional” porque, na verdade, “tudo tem necessariamente estória, ou interpretação, em qualquer momento, escala ou implicação do desenho”.
E da mesma tradição, considera Duque, “faz parte a importância do lugar onde tudo começa, dele tirando partido e a ele regressando depois de reinventado”.
“O melhor exemplo disso é o Plano do Fecho da Baía da Praia Grande que, mesmo depois de abandonado, não é possível deixar de existir.
Aí nada prosseguiu antes de ser certo ser aquele o desenho urbano a seguir, e nisso foi muito ao contrário dos planos de aterros que sucederam”, apontou o arquitecto, acrescentando que “faz parte dos refúgios felizes da arquitectura, de onde fazem consequentemente parte melhores e piores realizações”.
A OMNIPRESENÇA DO ARQUITECTO
João Palla Martins considera Manuel Vicente “omnipresente” no seu quotidiano em Macau.
“Não só nas conversas de amigos e outros ex-colaboradores de Manuel Vicente, como nos lugares que habitamos ou percorremos.
É claro que o seu modo de fazer arquitectura nos moldou e as suas histórias, fruto do seu forte carisma, se tornaram inesquecíveis”, referiu ao PONTO FINAL o arquitecto, também ele fotógrafo.
Mas o que fica é a cidade e os seus edifícios, sublinhou Palla Martins.
“Macau seria com certeza diferente se não fossemos confrontados com um arco de compasso que prolonga A Baía e nos oferece a distância espelhada da cidade, um gesto de consagração da doce e bucólica Praia Grande, mas simultaneamente um acto de fazer cidade a partir de compromissos (viários, sociais, políticos e técnicos)”, afirmou
O arquitecto constata que “talvez A Baía seja o projecto mais visível”, contudo o seu papel na habitação social em Macau “foi enorme”.
“Esteve, com a arquitecta Natália Gomes, na origem dos programas de desenvolvimento de habitação social em Macau ou realojamento, como se chamava.
Depois da experiência do SAAL em Lisboa e das visitas de estudo ao que se fazia em Hong Kong pelo Housing Authority, chegaram a uma solução pioneira desenhada à medida social de Macau.
Foi um percurso de longos anos de experiência com inúmeros blocos de habitação social, a culminar no premiado Bairro do Fai Chi Kei ou talvez a criação de uma comunidade”, notou João Palla Martins,
que revelou ao nosso jornal que colaborou na segunda fase do Fai Chi Kei, “que desenvolvia novas preocupações espaciais e formais, continha um centro de dia, escola primária entre outros, mas infelizmente não foi construído”.
CULTURA É UMA COISA, ERUDIÇÃO É OUTRA
Numa entrevista ao Público, Manuel Vicente afirmou que não confundia cultura com erudição.
“Há a informação, há a erudição, mas a cultura tem a ver com aquilo que a gente sabe, sem saber que sabe.
E é isso que se transmite.
Acho que a cultura portuguesa é mais reconhecida pela comida do que pela língua.
Se for a Macau ou à Índia, nas mercearias encontra sempre azeite ou bacalhau.
Esta é a memória que a gente deixou que se transmitisse.
Esta história da comida é mais essencial do que a herança da língua e isto é que é cultura.
É uma experiência mais total”.
Nascido em 1934 em Lisboa, Manuel Vicente foi o autor, com José Santa-Rita, do projecto de recuperação da Casa dos Bicos, que acolhe actualmente a Fundação José Saramago.
Estudou arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa, curso que concluiu em 1962, e era mestre em arquitetura pela Universidade da Pensilvânia, onde conheceu Louis Khan, um dos grandes nomes da arquitectura mundial, nascido na Estónia, mas radicado nos Estados Unidos da América.
O arquitecto teve ainda cunho profundo no projecto do pavilhão da Realidade Virtual da Expo-98 e deixou uma obra ímpar em Macau, incluindo o Fecho da Baía da Praia Grande, o edifício do WorldTrade Center, a sede da TDM-Teledifusão de Macau,o Posto de Bombeiros do Bairro da Areia Preta, o conjunto habitacional do Fai Chi Kei – já demolido – ou as Torres de Barra, entre muitos outros projectos.
Viveu em Macau em dois períodos.
No primeiro, nos anos de 1960, esteve à frente do Gabinete de Urbanização.
Manuel Vicente também foi professor, tendo formado um conjunto de gerações de arquitectos, com que tinha uma enorme capacidade de diálogo e ligação.
Antes havia ensinado na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa.
Ao longo da sua carreira trabalhou com nomes conhecidos da arquitectura portuguesa como Manuel Graça Dias, Nuno Teotónio Pereira, Conceição Silva, Chorão Ramalho ou Fernando Távora, entre outros.
Nos últimos anos de vida leccionava na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL).
Participou em diversas exposições de onde se destacam as no Centro Pompidou, nos anos de 1980, e na Bienal de Veneza.
Em 1987 recebeu o Prémio AICA/MC (Associação Internacional de Críticos de Arte/Ministério da Cultura), que todos os anos distingue um nome consagrado na área das Artes Visuais e outro na área da Arquitectura.
Em 1994, recebeu o Prémio da Associação de Arquitectos de Macau.
Quatro anos depois, em 1998, foi agraciado com o grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito pelo então Presidente da República de Portugal, Jorge Sampaio.
Em 2005 recebeu pela segunda vez a Medalha de Ouro da Arcásia, o Conselho Regional dos Arquitectos da Ásia, na categoria de melhor espaço público.
Manuel Vicente foi membro da comissão instaladora da Associação de Arquitectos Portugueses (1975-1977) e vice-presidente da Ordem dos Arquitectos (2002-2007).
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