Jazidas fósseis de Santa Maria

Jazidas fósseis de Santa Maria contam história dos Açores “congelada” no tempo

A mais antiga ilha dos Açores é a única do arquipélago com fósseis marinhos que dão dicas sobre o impacto do aquecimento global nas espécies de há 130 mil anos. Durante três dias, o PÚBLICO acompanhou paleontólogos, geólogos e biólogos que embarcaram numa verdadeira viagem no tempo.

Ajoelhado à entrada da gruta escavada na falésia, Alfred Uchman parece estar nas suas sete quintas. Tem nas mãos uma espécie de plasticina que vai enfiando em buracos minúsculos, pequenos túneis escavados no chão, para lhes adivinhar a forma. A plasticina há-de solidificar, permitindo ao investigador polaco descobrir que bivalves terão deixado aqueles rastos (aos quais se dá o nome de icnofósseis), quando e em que condições. Mas esta é apenas uma pequena peça no puzzle que conta a história dos Açores.

Aterrar em Santa Maria é como entrar numa máquina do tempo instalada no meio do oceano Atlântico. Das nove ilhas do arquipélago, esta é a mais antiga, com sete a oito milhões de anos, e a que está há mais tempo (mais de dois milhões de anos) sem actividade vulcânica. É por isso a única com fósseis marinhos, o que a torna um verdadeiro paraíso na Terra para paleontólogos, biólogos e geólogos. Em toda a ilha, estão identificadas cerca de 20 jazidas com algas calcárias, moluscos, crustáceos, ouriços-do-mar, corais e cetáceos – incluindo baleias –, entre outros organismos marinhos, fossilizados há milhares de anos.

O PÚBLICO acompanhou durante três dias o 11.º Workshop Internacional “Paleontologia em Ilhas Atlânticas”, que se realizou de 19 a 28 de Junho. Nesta expedição, participaram cerca de 20 investigadores portugueses e estrangeiros de diversas áreas de estudo mas com um objectivo comum: identificar, catalogar e datar os fósseis e caracterizar os sedimentos onde estes se encontram.

“Quando olhamos para a fauna fóssil do último estádio interglaciar [entre 120 a 130 mil anos atrás], é como se estivéssemos a abrir uma janela para o passado”, explica Sérgio Ávila, biólogo e paleontólogo da Universidade dos Açores (UA), coordenador científico da expedição. Naquele período, o mar estava seis metros acima do nível actual e a temperatura da água e do ar era mais alta. “Conseguimos entender o que aconteceu com estas ilhas numa altura em que o aquecimento global aconteceu de forma natural”, sem intervenção do Homem, afirma.

O estudo dos fósseis de Santa Maria dá também pistas sobre a forma como a ilha, isolada no meio do Altântico, foi sendo colonizada pelas espécies marinhas. “O isolamento levanta novas questões sobre a migração das espécies para locais tão remotos”, observa o polaco Alfred Uchman.

“Estas ilhas são ‘degraus’ importantes para a distribuição das espécies. Antes de surgir o arquipélago, não havia nada entre a Europa e a América do Norte. Com o surgimento dos Açores, as espécies que não conseguiam atravessar o Atlântico ficaram aqui”, completa o alemão Bjorn Berning. Para este especialista em briozoários, pequenos organismos invertebrados que vivem em colónias, só assim se explica que em Santa Maria existam fósseis de espécies que existem no continente.

Espécies extintas nos Açores
Desde que começaram a estudar os fósseis de Santa Maria, há pouco mais de uma década, os cientistas encontraram 140 espécies de bivalves, moluscos, equinodermes, corais, cetáceos e algas fossilizadas, muitas actualmente extintas no arquipélago. Só nos primeiros três dias desta expedição, descobriram mais quatro. “Não são espécies novas para a ciência, mas sim novas nos Açores”, sublinha Sérgio Ávila, que “trata por tu” quase todas as espécies “congeladas” nas arribas.

Mal desembarca na jazida fóssil da Pedra-que-pica, na costa sul da ilha, Sérgio Ávila aponta para o chão, onde se encontram milhões de conchas (algumas com mais de 20 centímetros de diâmetro) e ouriços-do-mar como que enterrados na rocha. “Isto é uma craca. Chama-se Zullobalanus santamariensis e foi descrita por nós”, afirma, referindo-se ao grupo de trabalho de paleobiogeografia marinha, que coordena na UA.

A Pedra-que-pica, com cerca de cinco milhões de anos, é uma das jazidas fósseis mais antigas de Santa Maria. Tem sete metros de altura a partir do fundo marinho e cerca de 2000 metros quadrados. A área tem diminuído devido à acção do mar, que abriu enormes fendas na jazida e erodiu as zonas mais expostas à força das ondas. Quando a maré baixa, uma parte fica fora de água, parecendo uma língua de areia mesclada ao longe.

Na arriba, o mar foi deixando as suas pegadas ao longo do tempo, perfeitamente visíveis: há 130 mil anos, estava cinco ou seis metros acima do nível actual. “Sabemos isso porque conseguimos ver o ângulo de costa e percebemos onde é que a praia terminava e começava a arriba”, explica o geólogo Ricardo Ramalho, da Universidade Columbia, de Nova Iorque (EUA), apontando para as diferentes camadas de sedimentos.

‹ Anterior