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A estupidificação digital.
Os números são inquietantes.
Uma criança de 3 anos está cerca de três horas diárias em frente a um ecrã; aos 8 anos, está cinco horas; na adolescência, sete.
Entre a infância e os 18 anos, os miúdos de hoje, pequenos “junkies” eletrónicos, passam o equivalente a 32 anos letivos em frente do ecrã.
As contas são do neurocientista francês Michel Desmurget, que estuda o fenómeno há quase duas décadas e que põe as coisas de forma crua mas clarividente:
os ecrãs são uma “fábrica de cretinos digitais”.
No livro que escreveu com este nome, explica as inúmeras razões pelas quais os nativos digitais – ou seja, as nossas crianças – serão os primeiros a ter um QI inferior ao dos pais, e documenta-o bem:
apresenta 45 páginas de bibliografia em que cita centenas de estudos científicos que atestam porque esta tendência é preocupante.
Se este livro foi lido em São Bento e no Ministério da Educação, terá sido depois posto de lado.
É caso para dizer que valores mais altos se levantam.
O Governo está apostado numa rápida digitalização da educação, que pode ter os resultados inversos ao que se propõe, que é melhorar o ensino.
Este caminho vem dar seguimento a um processo que se acelerou, por força das circunstâncias, na pandemia, e que é estimulado agora pelo objetivo do aproveitamento das verbas do PRR, com uma forte componente obrigatória de digital.
É preciso separar as águas.
Há, claro, uma parte deste percurso que faz sentido, como a entrega de computadores a alunos e professores, a instalação nas escolas de laboratórios de educação digital para robótica e multimédia e a distribuição de painéis interativos para sala de aula.
Tudo isto permite um acesso a ferramentas de trabalho complementares, importantes no século XXI.
O problema está em fazer do digital o principal recurso de ensino, com a prevista digitalização dos manuais escolares e dos testes de avaliação, o que inevitavelmente leva a que as crianças passem a estar ainda mais horas em frente a ecrãs do que aquelas que já passam fora da escola.
Nesta semana, o tema impõe-se, porque as provas de aferição do 2º, 5º e 8º anos, sob protesto de pais e professores, começaram a decorrer digitalmente.
Estamos a falar de crianças que fazem testes eletrónicos mal sabendo reconhecer as teclas.
O Governo quer que, em 2025, todas as provas e exames nacionais sejam neste suporte.
O que se ganha na redução da burocracia perde-se na apreciação efetiva.
A questão essencial, quanto a mim, é um ponto de partida errado.
Está longe de estar provado que uma desmaterialização integral dos recursos educativos traga vantagens inequívocas para as crianças no longo prazo, e muitos estudos dizem precisamente o contrário.
Um cérebro digital tende a ser mais disperso e impaciente e, por isso, tem mais dificuldade em acionar os circuitos de leitura profunda, que são fundamentais para a inferência, análise crítica e reflexão.
Não é por acaso que muitos cérebros de Silicon Valley recusam dar tecnologia aos filhos pequenos.
Como explica a neurociência, tudo o que não for usado e estimulado perde-se em anos críticos de formação.
O resultado é já notório: as competências linguísticas e a capacidade de concentração estão a diminuir.
Sim, estamos mesmo, como espécie, a ficar mais estúpidos.
Tudo isto acontece numa altura em que se vive uma revolução no mercado de trabalho, quando mentes brilhantes discutem os perigos da Inteligência Artificial (IA), que vem substituir funções até agora exclusivas dos humanos.
Certo é que cada vez teremos mais máquinas a desempenhar mais tarefas diferentes – não se trata apenas dos trabalhos mecânicos ou repetitivos, mas de todos os que possam ser relacionáveis ou programáveis, inclusive através de machine learning.
Sabe-se que 60% dos trabalhadores estão, hoje, em ocupações que não existiam em 1940, mas estima-se que a IA possa vir a substituir 300 milhões de empregos.
Neste mundo digital, as escolas têm de apostar naquilo que nos distingue verdadeiramente das máquinas.
O saber escolástico e os métodos expositivos já não fazem sentido.
É preciso mudar tudo.
O ensino deve estimular a interação humana, a criatividade, a empatia, a experiência.
A sua tarefa principal não pode ser debitar informação – essa está por todo o lado –, mas criar cidadãos que reflitam, que relacionem, que acrescentem, que idealizem, que se mexam.
Tudo o que um ensino feito através de ecrãs não oferece.
P.S.: Há dois anos, partiu-se o tablet lá de casa, que era usado pela minha filha mais nova.
Para seu desespero, optámos por não lhe dar outro.
Hoje, com 9 anos, é ela a primeira a agradecer-nos: devora livros, pinta, pensa e está sempre a inventar coisas para fazer.
Foi a melhor decisão educativa que tomei na vida.
Mafalda Anjos.
Revista Visão, 18 de Maio de 2023.
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Publicado por

CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL

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