catástrofe alimentar

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De: <cefeidaspt@sapo.pt>
Date: domingo, 29/05/2022 à(s) 23:57
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28 maio 2022
QUEM TEM CULPA DA CATÁSTROFE ALIMENTAR QUE AMEAÇA O MUNDO?
s alarmes não têm parado de tocar e são terríveis: a fome extrema é já uma ameaça para 200 milhões de pessoas, enquanto outros 800 milhões de seres humanos sofrem com carências alimentares graves. O pior é que estes números, segundo as previsões, vão continuar a crescer, afetando muito mais países, em diversas latitudes, com as consequências a que assistimos todos os dias: revoltas no Sri Lanka, convulsões sociais no Egito, situações desesperadas em muitas nações africanas. Analistas preveem que países como Argentina, Tunísia, Paquistão e Filipinas, altamente dependentes da importação de alimentos e de energia, correm graves riscos de revoltas até ao final do ano. Mas também já existe uma crescente insatisfação nas populações dos países ocidentais, com o aumento do custo de vida a ser aproveitado por todos os populismos e extremismos, para incendiar um tempo já de si explosivo, devido à invasão russa da Ucrânia.

De quem é a culpa da falta de alimentos ou do seu preço subitamente elevado, que os torna proibitivos para tantos? Na atual retórica de guerra, que domina tantas declarações e análises, parece, por vezes, que tudo se poderia resolver, como se, por milagre, as armas se calassem no território ucraniano – um dos maiores celeiros do mundo, a par do seu invasor russo.

Mas será que a guerra na Ucrânia é a única culpada por esta crise que o The Guardian teme que se possa transformar numa “catástrofe global”? Será que a crise alimentar global pode ficar resolvida se Moscovo levantar o bloqueio que mantém no Mar Negro às dezenas de navios carregados com toneladas de cereais? Ou será que, como diz Moscovo, a fome no mundo poderá desaparecer se o Ocidente levantar as sanções económicas que impôs à Rússia?

A resposta, como habitualmente, é bem mais complexa. Mesmo quando os números são avassaladores, conforme a contabilidade feita pelo Financial Times: “Desde o início da guerra na Ucrânia, os preços do trigo e do milho aumentaram 41% e 28% , respetivamente, já que a Rússia e a Ucrânia juntas representam cerca de 30% das exportações globais de trigo.”

Como a crise financeira de 2008?

Por mais que seja inegável que a invasão russa da Ucrânia fez piorar a crise alimentar, é prudente não gastar aí toda a argumentação, e tentar olhar para o problema de uma forma mais interligada e global.

Foi esse o exercício desenvolvido por George Monbiot na sua coluna de opinião no The Guardian. E, logo no primeiro parágrafo (como mandam as regras…) consegue agarrar o leitor, com um autêntico e inquietante murro no estômago: “O sistema alimentar global está a começar a parecer-se com o sistema financeiro global no período anterior à crise de 2008.” Teme-se o pior, portanto…

O colunista do The Guardian tenta, a seguir, desfazer algumas ideias-feitas: “Muitas pessoas assumem que a crise alimentar foi causada pela combinação da pandemia e da invasão da Ucrânia. Embora estes sejam fatores importantes, a verdade é que eles apenas agravaram um problema que já existia. Durante anos, pareceu que se ia conseguir acabar com a fome no mundo. O número de pessoas subnutridas caiu de 811 milhões em 2005 para 607 milhões em 2014. Mas em 2015, a tendência começou a mudar. A fome tem aumentado desde então: para 650 milhões em 2019 e de regresso aos 811 milhões em 2020. Este ano provavelmente será muito pior.”

Nesta perspetiva, fica bem saliente como o problema era já anterior à invasão russa da Ucrânia. Como sublinha Monbiot, a inversão na tendência ocorreu num momento de abundância, após décadas de aumento da produção global de alimentos. “Surpreendentemente, o número de pessoas subnutridas começou a aumentar quando os preços mundiais dos alimentos começaram a cair”, avisa.

Qual a razão para isso? Monbiot tem a sua teoria, assente num ponto principal: o sistema alimentar tornou-se tão interligado que se algo começar a correr mal tem a capacidade de criar choques em cadeia que vão aumentando ao longo de toda a rede. Ao mesmo tempo, no comércio internacional reduziram-se, ao máximo, os armazenamentos, confiando-se que os fluxos iriam permitir abastecer sempre todos a tempo. “A estratégia just-in-time funciona”, reconhece Monbiot. “Mas se as cadeias de entregas forem interrompidas ou houver um rápido aumento na procura, as prateleiras podem esvaziar repentinamente.”

Na sua opinião, há duas razões principais para o aumento da fome no mundo: os choques sistémicos nas cadeias de produção e de distribuição, e a especulação financeira, num mundo em que, como ele afirma, “quatro corporações controlam 90% do comércio global de cereais” e em que grande parte desse comércio passa “por pontos de estrangulamento vulneráveis , como os estreitos turcos (agora obstruídos pela invasão da Ucrânia pela Rússia), os canais de Suez e do Panamá e os estreitos de Ormuz, Bab-el-Mandeb e Malaca.”

Guerra na Ucrânia e as outras

“A invasão da Ucrânia pela Rússia acelerou a crise”, nota um editorial da Bloomberg, publicado no Japan Times. “Antes da guerra, os dois países representavam quase 30% do trigo comercializado globalmente. A Ucrânia forneceu cerca de metade das exportações mundiais de óleo de girassol e a Rússia um oitavo de suas exportações de fertilizantes. As sanções à Rússia inflacionaram ainda mais os preços da energia, tornando os fertilizantes ainda mais caros.”

Mas há mais guerras no mundo para além daquela que tem ocupado, desde 24 de fevereiro, a quase totalidade do espaço mediático. E para se ir procurar os “culpados” desta crise alimentar global é preciso olhar também, segundo o mesmo editorial, para “as incursões dos jihadistas islâmicos no Mali, Nigéria e sul das Filipinas, bem como para os conflitos no Iémen e na Líbia.”

Para ilustrar a importância da guerra como impulsionador das situações de fome, o The Guardian dá o exemplo da Síria: “Um país relativamente próspero que foi reduzido, no espaço de uma década, a algo próximo de um caso perdido. Cerca de 12,4 milhões de pessoas – 60% da população – sofrem de insegurança alimentar, número que mais que duplicou desde 2019.”

Mas não é um caso único: “A desastrosa guerra da Etiópia em Tigray , que foi invadida por tropas do governo em 2019, é outro caso de fome após a loucura guerreira. A ONU estimou em janeiro que 2 milhões de pessoas sofriam de falta extrema de alimentos e dependiam de ajuda numa província que antes era autossuficiente.”

Os números são, uma vez mais, terríveis, conforme escreveu o catalão La Vanguardia, que lamenta que o mundo não tenha aprendido as lições do passado: “A lenta resposta à crise de 2011 no Corno de África custou 260 mil vidas na Somália. Onze anos depois, uma série de fatores, incluindo a seca, um aumento do custo dos alimentos inédito devido à guerra na Ucrânia, os conflitos endémicos e a crise económica provocada pela pandemia, condenam entre 600 a 1800 pessoas a morrerem de fome todos os dias no Quénia, Etiópia e Somália.”

EUA culpam a Rússia

Para o editorial board do Washington Post, há um culpado por isto tudo: Vladimir Putin. “Além de ter nas mãos o sangue dos ucranianos de sua guerra completamente injustificada, o líder russo também é responsável pela crescente fome em todo o mundo. A Ucrânia é o celeiro de grande parte do Médio Oriente e do Norte da África. Neste momento, Putin está a impedir que os grãos ucranianos deixem o porto de Odessa e ao longo de outras rotas importantes do Mar Negro. O resultado é terrível: os preços globais dos alimentos estão em alta e 276 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar – mais do que o dobro de 2019”, lê-se no editorial.

“O Sri Lanka é o exemplo mais recente de quão devastadora está a ficar a crise alimentar global de Putin”, sublinha o Washington Post. “A nação insular quase ficou sem comida e sem combustíveis. As pessoas fazem filas durante dias pelo pouco que ainda está disponível. Como um pai desesperado disse à Reuters: ‘Sem comida, vamos morrer’. Como os preços dos alimentos dispararam desde a invasão da Ucrânia por Putin, os cingaleses não conseguiram suportar os custos mais altos, e o governo não tem dinheiro suficiente para os ajudar. O país acabou de entrar em ‘default’ pela primeira vez na sua história.”

China desconfia de Washington

A história, como quase sempre, é vista de maneira diferente do lado da China, como reflete um editorial no Global Times, que procura virar as atenções para a responsabilidade de Washington: “Os EUA são o maior exportador de cereais do mundo, respondendo por cerca de 10% das exportações globais de alimentos em 2021, mas alguns dos seus movimentos recentes podem sugerir que o governo de Biden pode estar mais preocupado em usar a crise para reforçar a sua hegemonia alimentar em vez de tentar a evitar uma crise alimentar global.”

A desconfiança de Pequim face a Washington é grande: “Os EUA e os seus aliados estão atualmente a tentar obter cerca de 20 milhões de toneladas de trigo e de milho ucranianos armazenados fora do país, segundo relatos da comunicação social. Se esses esforços forem realmente destinados a resolver os problemas de abastecimento de alimentos para o mundo em desenvolvimento, a medida é certamente louvável. Mas sabendo que os EUA sempre procuraram tirar benefício de todas as crises alimentares passadas, é duvidoso que a detenção das reservas de cereais ucranianas pelos EUA seja para o bem do mundo”.

O jornal chinês também aproveita para culpar as sanções impostas a Moscovo como um dos fatores de bloqueio das cadeias de distribuição: “Os EUA e os seus aliados impuseram muitas sanções económicas à Rússia para bloquear as suas exportações, e agora os EUA ficam com a oportunidade de substituir o lugar da Rússia no mercado global de alimentos. Se as sanções eventualmente levarem à catástrofe alimentar, o Ocidente irá tornar-se no maior violador dos direitos humanos e será responsabilizado por isso, em termos históricos. Com os países em desenvolvimento a rejeitar estar amarrados ao comboio ocidental, uma nova onda de sentimento antiocidental pode ser esperada em todo o mundo.”

Governos e mercados

Curiosamente, um editorial da Bloomberg acaba por concordar com algumas dúvidas e preocupações manifestadas pela China, lançando um aviso sério: “Os preços dos alimentos subiram para níveis recordes em todo o mundo, alimentando a pobreza, a fome e a instabilidade política. Embora não haja soluções rápidas para a crise, os países em melhor situação devem, pelo menos esforçar-se, para não a agravar.”

Ainda para mais num contexto em que todos os fatores parecem contribuir para o desastre: inflação, alterações climáticas, instabilidade política, aumento da desconfiança no mundo, risco elevado de revoltas e uma situação pandémica que tarda em ficar resolvida.

“Os governos estão a agravar o problema com as medidas protecionistas que têm estado a tomar”, acusa a Bloomberg. “Desde a invasão da Ucrânia, pelo menos 20 países impuseram restrições às exportações de alimentos, cobrindo cerca de 17% das calorias comercializadas globalmente, incluindo a decisão da Indonésia de bloquear as saídas de óleo de palma. Essas restrições correm o risco de desencadear um efeito em cascata e fazer elevar os preços para todos: estima-se que tenham sido responsáveis por um aumento de 13% nos preços globais dos alimentos durante a crise alimentar de 2008-2011.”

Nesse sentido, a Bloomberg advoga que a solução tem de passar por uma resposta coordenada a nível mundial. “Os governos devem comprometer-se a não adicionar novas restrições ao comércio e a suspender as já impostas, o mais rápido possível.”

Mas não só: ” Os governos devem deixar os mercados funcionarem. As primeiras indicações sugerem que os agricultores americanos e europeus estão a responder aos preços mais altos plantando mais. As autoridades podem encorajar melhor essas escolhas saindo do caminho. Numa crise com esta complexidade, o primeiro princípio deve ser o de não causar danos.”

O problema, no entanto, como alerta George Monbiot no The Guardian, é que na origem disto tudo esteve exatamente um sistema cada vez mais baseado no mercado e que se tornou menos resiliente. Agora, escreve, é preciso mudá-lo. “Precisamos urgentemente de diversificar a produção global de alimentos, a nível geográfico, mas também em termos de culturas e de técnicas agrícolas. Precisamos de quebrar a cadeia de controlo das grandes corporações e dos especuladores financeiros. Precisamos de criar sistemas alternativos, produzindo alimentos por meios totalmente diferentes. Precisamos de mudar o sistema”. Ainda a tempo de evitar a catástrofe?