7 anos de saudade pelo amigo AMADEU FERREIRA

AMADEU FERREIRA, Passam hoje 7 anos desde que nos deixaste.
Aqui fica a última conversa que o Leonel Brito e eu tivemos contigo. Lembras-te?
Teresa Martins Marques:
Amadeu, tu vais ter uma neta. Soubemos ontem que era uma menina e eu gostava de te perguntar que conselhos, sugestões, pontos de vista, gostarias de lhe dar, se ela hoje estivesse aqui ao pé de nós e tivesse 18 anos, ou seja a idade para compreender aquilo que tu terias para lhe dizer.
Amadeu Ferreira : É uma pergunta difícil de responder, muito difícil porque, acho que a vida que cada um tem de viver, é a sua vida. E isto é fundamental. O caminho que cada um tem de seguir para viver a sua vida, é um caminho que ele próprio tem de encontrar e não seguir caminhos alheiros. Pode haver sugestões. Pode haver dicas, pode haver tudo isso, mas cada um tem de encontrar o seu caminho. E se o não quiser fazer, ou não o conseguir fazer, fica perdido. Isto é a primeira ideia que eu quero deixar, portanto, uma ideia de confiança na pessoa, uma ideia de autoconfiança em si própria, para encontrar o seu caminho, porque de facto enquanto vivermos, nós nunca chegamos ao fim do caminho. O caminho não tem fim. É uma procura constante. E não há respostas prévias, não há respostas dadas e não há soluções, que as pessoas tenham, e por isso, cada resposta vamos encontrando a cada momento, vamo-la adaptado, vamo-la ajustando porque essa ideia que há sistemas filosóficos e morais que nos dão resposta para tudo, com grandes sistemas, isso é uma ilusão. Esses sistemas fechados são uma ilusão. Todo o pensamento é sistemático, na medida em que deve ser guiado por dois princípios, e eu sinceramente não consigo ver mais que dois ou três princípios, daqueles que vale a pena e eu diria que para mim, ao longo da experiencia de vida que tenho, que é alguma, há três princípios, eu diria assim, que são fundamentais. Primeiro, um principio de liberdade, sem o qual nós não temos dignidade, sem o qual nós nãos nos autonomizamos, sem o qual nós não somos nada, somos algo que não temos respeito por nós próprios, um principio de liberdade que é o fundamento da dignidade humana, eu diria, ser livre. Livre significa pensares pela tua cabeça, significa encontrares esse próprio caminho, mas de acordo com a tua experiencia, com a experiencia que tens em cada momento, em cada momento.
Depois um segundo principio que eu acho um princípio fundamental, é um princípio de humanidade. O importante são as pessoas. Nós temos de viver com as pessoas. Temos de respeitar as pessoas, compreender as pessoas, orientarmo-nos para as pessoas, mesmo quando nos desiludem, as pessoas são mais importante que há no mundo. Portanto, esse principio de humanidade, é absolutamente essencial. Como eu costumo dizer: elas são o único monumento que existe à face da terra.
E há um terceiro principio que eu defendo que me parece também essencial que é um principio que eu não sei muito bem que nome lhe ei-de dar, mas que eu costumo chamar, um principio de positividade, isto é, vale a pena fazer coisas. O mundo pode ser transformado. Temos de ter ideias no sentido de transformar o mundo, o mundo não está feito, não está acabado, nós temos a capacidade de intervir nele e portanto, essa minha neta pode intervir nesse mundo e pode ajudar a transformá-lo porque desde o momento que nós nascemos, o mundo já não é o mesmo. Só pelo simples facto de ter-mos nascido. E isso traz-nos uma responsabilidade muito grande. E essa ideia de dizer: Não adianta. Não há nada a fazer. Vai sempre tudo bater ao mesmo. Não é verdade. Nós de acordo com esse principio de positividade, de acordo com esse principio de que vale a pena interagir como cidadãos de corpo inteiro, é algo que é absolutamente essencial, inquestionável. E portanto, este princípios de liberdade, de humanidade e de positividade, são princípios absolutamente irrenunciáveis, princípios absolutamente essenciais e sem os quais, a vida não faz sentido. E sem os quais a dignidade humana não tem fundamento. Eu faço derivar todo o comportamento humano a partir destes princípios. Incluído o meu. Se falha algum deles, nós ficamos mancos. Desorientamo-nos. Perdemo-nos. Agora, são princípios que apontam para um caminho que não é linear. É um caminho difícil. E é um caminho em que, em relação a cada um deles, nós nos enganamos, temos de andar para trás e para a frente, para ajustar agulhas, em relação aos quais nós muitas vezes não sabemos que caminho seguir. Temos que o procurar, nessa procura constante. Na certeza porém que não temos certezas feitas ninguém as dá, temos de as procurar e na certeza que todos esses princípios comportam riscos elevadíssimos. Aliás, viver, é uma coisa maravilhosa, mas é um risco. Onde não há risco não há ganho. E por isso nós, falando no princípio da humanidade e nas pessoas, nós vamos encontrar pessoas que apesar de tudo são uns croques que nos fazem mal, mas nós não podemos desistir da humanidade. Não podemos que se nós perdermos a nossa própria humanidade, desumanizamo-nos, nós tornamo-nos coisas, coisificamo-nos e portanto, perdemos também essa dignidade. Portanto vamos encontrar uma terra mal, pessoas maldosas, pessoas que nos fazem mal, inclusivamente, pessoas que nos querem mal, vamos encontrar guerras, desde o início da humanidade, vamos encontrar holocaustos. Vamos encontrar todo um conjunto de coisas, mas aplicar o princípio da positividade à humanidade, é possível que ela possa ser transformada. E nós já fomos selvagens. Já fomos canibais. Houve alturas em que nós saiamos de umas guerras para as outras. Só vivíamos de sangue, em que a profissão mais nobre era a profissão de guerreiro. Em que a profissão,digamos assim, dos nobres era a profissão da guerra. Nós já vivemos esse tempo. Hoje não é assim. Mas nós temos o que vemos pelo mundo fora de gente a morrer, de gente a matar-se uns aos outros, de gente que não quer saber uns dos outros. Apesar de tudo, este princípio da humanidade tem de ser inquestionável e não desistir. O principio da não desistência nunca perante a capacidade que nós temos de melhorar as coisas nem que seja um grãozinho. E não temos de ter a pretensão de ver, o que melhoramos. Não vemos muitas vezes. Por vezes a nossa passagem é como uma mancha de água. Não se vê, mas está lá. E quando se trata de um momento como nas notas, de mancha de água, de ver, de distinguir o verdadeiro do falso, isso ajuda. Olhamos para a vida, para a terra, vemos todos os grãozinhos de poeira que estão deitados? Não vê-mos, mas estão lá. Fazem montanhas quando se multiplicam por milhões. E os actos humanos também são assim. Quando se multiplicam por milhões, os actos bons, eles produzem resultados. Às vezes há regressos porque a história não caminha sempre para a frente e nós temos de ter capacidade para aguentar esses recuos. Mas esse principio de facto positivo, de capacidade de transformação, de confiança em nós, é absolutamente essencial. Eu dir-lhe-ia que perante este princípio, não há lugar a desistência, não há lugar a fugas porque às vezes, apetece-nos fugir. Mas sim enfrentar. E depois, este princípio da humanidade conjugado com a nossa liberdade, a nossa liberdade que é o fundamento da nossa dignidade como disse e que nos ajuda a encontrar o nosso caminho. Não o caminho dos outros. Nós devemos estudar o caminho dos outros, respeitar, ouvi-lo, tê-lo em conta, mas não o seguir. E temos de procurar o nosso. Podemos adota-lo, mas procurar o nosso caminho porque os nossos passos, são os nossos passos e qualquer solução feita, é uma solução passada, é uma solução de outros, é uma solução que pode não servir integralmente para nós. É muito difícil, procurar esse caminho, mas não há outra maneira de o fazer. E portanto, eu diria que sê tu mesma dentro deste caminho. Livre com intervenção de cidadã, com intervenção positiva, no sentido de que o mundo é transformável, o mundo onde nasceste não está totalmente feito, sobrou um bocadinho para tu fazeres. E é isso que eu acho que por esses princípios podes fazer. E acho que se todos nos orientarmos por este caminho, não andamos aqui para ver andar os outros. Não fazemos parte apenas do rebanho, como diria o Nietzsche e outros, mas temos um papel próprio. Não nos preocupemos que seja um papel muito importante no sentido a sua visibilidade, ele é sempre um papel importante. Mas pode ser um papel de que nós não conseguimos dar visibilidade de que os outros não têm de ver porque eu acho que só há uma pessoa a quem ela tem de prestar contas: é a si própria e não aos outros. Porque os outros vão exigir contas de acordo com critérios que não são os seus. E os critérios seus, os de coerência, os critérios de dignidade, são os seus, portanto, a pessoa por que ela tem de responder é perante ela mesma, perante si própria, perante os seus objetivos e isto faz-se sem grandes tensões. Sem grandes preocupações. Sem a preocupação de responder a certos clichês que a sociedade tem: é um grande homem, é uma grande mulher, é o não sei quê…isso não existe. Não há: fez grandes coisas, grandes feitos, isso não existe. Todas as coisas que nós fazemos, são pequenas coisas. E as únicas grandes coisas que há são as pequenas coisas. Um sorriso, um amigo que se faz, uma mão que se dá e nunca em circunstância alguma, fazermos aquilo que nos envergonha a nós próprios. E nos obrigue a olhar para o chão, temos de olhar para cima. Espinha direita, etc. E isto é a coisa mais simples que existe e mais complicada ao mesmo tempo, que existe, digamos assim. Eu faria derivar todo o potencial destes princípios e desta postura. Foi uma resposta espontânea porque fui apanhado um bocado de surpresa, para dar, digamos assim, mas que tem a ver com a maneira que eu tenho de estar no mundo. Com a maneira que eu tenho de enfrentar as coisas, de olhar para as coisas e eu acho que não há outra maneira coerente de o fazer, parece-me a mim. Esta resposta até pode parecer muito elaborada, pode até transformar-se num sistema filosófico ou moral, mas esses sistemas, são sempre perigosos. Eu gosto do pensamento assistemático, não sistemático, aquele pensamento aberto, deixa abertura e fico sempre muito preocupado, quando me dizem que fulano é que está certo, aquilo é que é o correto, porque a vida me ensinou que isso não é assim. Eu já andei pela s religiões verdadeiras, pelas falsas, estudei os sistemas filosóficos todos, mas cada vez que eu chegava a essas conclusões dessa gente, eu sentia que o meu próprio caminho ainda estava por procurar. Tinha que procurar o meu próprio caminho. E por isso, a procura é um objetivo ele próprio. Nunca podemos estende-lo e nunca podemos ter a ideia que chegamos ao fim da linha. Não. Nunca chegamos ao fim da linha. Chegar ao fim da linha, é chegar ao fim da vida. Enquanto vivermos, nós temos obrigação de vivermos até ao último instante. Esse ultimo instante é absolutamente essencial, como todos os outros porque a vida é uma conquista. Tudo o que nós temos na vida é uma conquista. Cada dia é uma conquista, cada instante é uma conquista e insto conduz-nos a um principio de humildade. Humildade no sentido que eu dizia há pouco, de liberdade, de variação, de não chegar a conclusões. De positividade. De transformabilidade das coisas. E portanto, já me estou a repetir, mas eu diria, eu diria algo deste género espontaneamente. Se claro se tivesse tempo para pensar um bocadinho, elaborava melhor as coisas, mas não andaria fora disto porque dentro deste caminho, a minha neta, estou convencido, que encontrará o seu caminho. Irá encontrado o seu caminho. (17:19) E será uma pessoa de quem eu orgulharei, seguramente e uma pessoa que terá princípios como estes ou outros parecidos com estes na base da sua dignidade, da sua vida e da sua felicidade. Porque felicidade em geral não existe. Não há. Isso não existe. O que há são momentos felizes que nós construímos. A felicidade é uma construção nossa e nós construímos esses momentos de felicidade, fruto do momento que vivemos. Felicidade que não é nada mais nada menos que equilíbrio com nós próprios, nada mais. Não é mais que isso. Não é uma coisa do outro mundo, não é o céu na terra, isso do céu é uma chatice. Fora disso, o que é que eu poderia querer dizer? Mais nada. Isto dar-lhe-á alegria, que é uma coisa fantástica, permitir-lhe á encontrar o sorriso certo e mais bonito em cada momento, que é a coisa que mais nos pode fazer bem. E permitir-lhe há encontrar respostas para os problemas que for tendo e ser uma mulher de corpo inteiro, siga o seu caminho, sem problemas, ainda que isso possa ser doloroso, possa ser difícil, o importante é que ela encontre o seu caminho. E eu estou convencido que isso vai acontecer. Não tenho dúvidas nenhumas. Que isso vai acontecer. Pronto, é isto, é esta resposta um bocado circular mas que é efetivamente isto que eu penso sobre essas coisas.
Teresa M.Marques:
Grande plano da gata que também merece.
Amadeu:
E que se chama Chara, que significa esteva.
Leonel Brito : É o simbolo da Estremadura.
Amadeu:
Ai é? Não sabia….. Eu diria que isso tem várias leituras. Eu diria que isso tem várias leituras e eu gostava de as fazer, aliás é um tema relativamente ao qual eu tenho de vez em quando refletido e fragmentariamente, estilo farrapos, já tenho até escrito algumas coisas. Quer em termos genéricos quer em termos particulares. Vamos lá ver, em termos particulares, falando da minha mãe e do meu pai, não há duvida nenhuma que, a minha mãe foi sempre e teve sempre uma postura muito mais proactiva, de muito mais iniciativa, que o meu pai e isso vê-se não apenas nessas referências que o Leonel fez, de facto, é quase ela que o pede em casamento depois de inicialmente desdinhar, é ela: queres ou não queres, acabou. É ela que o manda para França, apesar de querer ir, nunca foi. É ela que o obriga a pôr os filhos a estudar. É ela que no meio dos mais incontáveis sacrifícios, nunca desiste, nomeadamente quando ele fica com o AVC, o acompanha e o consegue recuperar completamente e mesmo na sua infância, é curioso que ela de facto não pede autorização à mãe para casar, espera pela idade, mas é curioso de que quando o pai morre, tem oito anos, anda por aí, segundo ela diz e ela nunca aceita coisas que a mãe lhe quer dar. Por exemplo, o meu pai vive um pouco revoltado o pai dele o ter posto a servir, a minha mãe nunca aceitou esse tipo de situações. Ela inclusivamente ainda com 10 anos, toma a iniciativa de ir junto de um comerciante lá da aldeia que era o Tio Luciano, encomendar uma caixa de sardinhas para ir vender a caixa de sardinhas e a minha avó não queria. Ela toma a iniciativa, é uma mulher de iniciativa. E portanto, não tenho a mínima duvida que o cliché medievalista do casal, aqui não se aplica. Não se aplica e que digamos, a essência do que aconteceu ali naquela casa, parte dela. O meu pai édigamos assim, um homem sereno, trabalhador, fartou-se de trabalhar, foi o sustentáculo económico daquela casa, em boa medida, mas é um homem inteligente. É um homem bom. Mas digamos assim que (….) e dizia eu que de facto, há ali uma postura muito diferenciada, sendo que o lado proactivo é fundamentalmente da minha mãe, nos aspetos que eu referi. O que é curioso no meio disto tudo, é que isto não dá origem a grandes conflitos. Pelo contrario, há da parte do meu pai, um entendimento relativo aesta matéria e uma aceitação, quanto a este aspetos, um papel importante, em que, ele muitas vezes, em que ele não concorda, às vezes por más razões, resiste. Mas acaba por ceder. E portanto, digamos que, ela, por bons caminhos, sem ser arrogante, consegue, nós diríamos “dar-lhe a volta”, mas eu não diria isso, diria, chegar a um entendimento, chegar a uma saída, chegar a uma solução e portanto, desse ponto de vista, eles completam-se muito. Completaram-se muito ao longo da vida. Eu estou convencido que depois destes anos todos, eles não conseguiriam viver um sem o outro. E estou convencido que hoje o meu pai está convencido que deve a vida dele à minha mãe. Não tenho dúvidas sobre isto. Ele está convencido que as decisões que ela tomou ao longo da vida quanto aspetos essenciais, foram as decisões certas. E mais, ele tinha consciência deste jugo e sempre se procurou libertar dele. Não é por acaso que ele nunca quis que ela fosse para França. Quis ficar longe e portanto, e não ter, digamos assim, que a aturar. Mas ele sempre reconheceu o papel essencial que ela teve nesta matéria. E por isso, eu diria que quanto aos aspetosessências, eu acho que eles foram um casal que se entendeu razoavelmente bem, ela mais expansiva, ele mais calado. Ele queixa-se, ela queixa-se, é natural, que nos casais assim aconteça. Estou convencido que a doença do meu pai, os aproximou bastante. E nesse aspeto, a minha mãe acabou por fazer um milagre. O meu pai estava morto, esteve em coma vários meses, ninguém dava cinco tostões por ele e ela conseguir praticamente sem meios, recupera-lo completamente ou quase completamente. E fazer chegar um e outro até á idade que chegaram para cima dos 90 anos. Ela fez 90 anos ontem e ele vai fazer 93 em setembro. E portanto, eu acho que houve ali uma conjugação, em que os filhos também terão um papel, a certa altura. Mas não um papel essencial. Isso é algo deles. É um caminho que eles próprios encontraram e é estranho porque passaram dificuldades enormes, ao longo da vida. Não apenas na sua juventude e quando eram novos, mas velhos, passo a expressão, passaram por muitas e grandes dificuldades, até porque nós próprios, os filhos, nunca tivemos grandes condições de os ajudar, a não ser na fase final da nossa vida, digamos assim. Numa altura em que eles já não precisavam. Acho que eles, pelo menos para mim, transformaram-se numa espécie de modelo, numa espécie de referência, numa espécie de caminho a seguir e para os meus irmãos e nesse ponto de vista, creio que nós todos temos uma opinião similar, temos uma opinião idêntica e que valorizamos muito. Isto é o que eu tinha a dizer, um pouco sobre eles os dois. E acho que resulta desta conjugação, o facto deles de terem tido os filhos que tiveram, para o bem e para o mal. Penso que sobre tudo para o bem porque acho que todos eles, são pessoas equilibradas, tirando talvez o mais velho por razões, eu penso que um bocado dramáticas, em alguns aspetos, houve ali desequilíbrios desde o início que eles nunca conseguiram controlar e que digamos, não correram bem, que é uma fonte de mágoa muito grande para eles. Muito grande, sobre tudo para a minha mãe. Ele acabou por morrer cedo, com problemas de alcoolismo que eu penso que vem desde a infância, e que culminaram na guerra colonial e eu escrevo até sobre isso. O Abel era o meu irmão mais velho, em muitos aspetos e até alguma idade, ele foi uma espécie de meu mestre. Com ele aprendei as coisas do campo e depois a partir de uma certa idade separamo-nos e muito fortemente. E também, digamos outros desequilíbrios, por doença, eventualmente por outras razões, que não gostaria de particularizar e que têm a ver com a minha irmã e que para eles também é uma fonte de mágoa. Embora aí e sobretudo a minha mãe, seja um bocadinho mais cega, tenha alguma dificuldade em ver, eu percebo perfeitamente. E portanto, eu diria que eles são um casal que conseguiram dentro destas dificuldades todas, um equilíbrio que eu considero notável. E eu acho que isto não é fácil. Por isso é que eu acho que eles são uma referência. Mas eu não gostava de dar só este apontamento. Gostava de ir mais longe. Eu pessoalmente acho que em boa medida, a sociedade mirandesa, sobretudo a sociedade de sendinense porque é a que eu conheço melhor, é uma sociedade com traços matriarcais muito fortes. Muito, muito fortes. Isto é evidente que se reflete na relação de minha casa, fruto das características da minha mãe, mas não apenas fruto das características da minha mãe. Fruto de um conjunto de características sociológicas, socioeconómicas, muito fortes. Era uma sociedade pobre, uma sociedade que conheceu a emigração, desde sempre, e uma sociedade de fronteira, em que as pessoas quando nãos e conseguem governar deste lado, fogem para o lado de lá, para se governaram. E digamos que a fronteira foi sempre o que esteve em frente, como diz a própria palavra latina: Frontaria é o que está em frente. Eu habituei-me a olhar para o outro lado e não consigo deixar de ser um fronteiriço, deixar de ver o que está do lado de lá. Não está outra terra qualquer, está outro país. Os homens em momentos muito frequentes, passavam o rio para o lado de lá, ficavam lá uns meses no lado de lá, digamos que, podando, ceifado, trabalhando nos campos e asmulheres não iam. Ficavam do lado de cá. Normalmente com muitos filhos. Os homens iam, de mãos nos bolsos, umas alforjinhas às costas, não levavam nada, mas também, não deixavam nada. E as mulheres tinham de alimentar os filhos a partir do zero e portanto ganhavam um protagonismo socioeconómico que era incontornável. E quando passados meses ou passados anos, os homens voltavam, e se incorporavam em casa, como se nada tivesse acontecido, eles percebiam claramente que não tinham feito falta. Que as mulheres não precisavam deles para nada. Normalmente vinham fazer mais uns filhos. Porquê? Porque a mulher mirandesa inventou algo que só existe em Miranda e na áfrica. Eu não conheço nenhum outro sítio onde isso seja uma coisa tão frequente que é que consideram uma espécie de instituição que é o CHIMCHIM, é andar como as pretas andam com os filhos às cavalitas, embrulhados no xaile. Essa foi a forma que elas encontraram que de vez em quando se vê por outros lados, ali não, era de manhã à noite, constantemente. Porque era a única forma que elas tinham de criar os filhos, trabalhando. Elas lavraram, cavavam, lavavam, andavam pelos caminhos, nas hortas, sempre com os filhos às costas. E de facto, eu não conheço que isto exista como instituição propiamente dita, é evidente que as mulheres fazem isso em todo o lado, mas com essa força, só em áfrica é que eu vejo isso, talvez devido ao papel da mulher, que também em africa há. A mulher é que trabalha, é que cultiva, é que produz, essas coisas todas, o homem digamos assim, faz outras coisas, que não são tão essenciais desse ponto de vista. E a emigração para Sevilha, por exemplo, para os grandes campos de Andaluzia, para a grande padaria salmantina, para a terra del bino, terra de campos, naquela zona da meseta espanhola, ela foi de facto sempre um caminho que esteve aberto aos homens e as mulheres sempre ficaram do lado de lá. Sempre ficaram do lado de lá. Elas ficaram viúvas, mais cedo que o tempo e nunca desistiam. E esta não desistência de facto deu-lhes um papel fundamental; na transmissão da língua, na transmissão da cultura, no desenvolvimento socioeconómico, na criação dos filhos, nessa coisa toda. E portanto, este exemplo que referimos do meu pai e da minha mãe, insere-se numa sociedade que eu penso que tem, não lhe chamaria matriarcal, porque eu acho que estas coisas são sempre clichês, mas que tem elementos de matriarcado, elementos de preponderância da mulher na sociedade, tão fortes, tão fortes, que ela não seria mesma sem estas características. Isto que eu vejo na minha mãe, eu vejo na minha avó e vejo num conjunto de gente da aldeia, de uma forma muito forte. Nesse sentido, eu diria que a sociedade mirandesa é de facto uma sociedade que se deve às mulheres, que se deve à mulher desconhecida, passo a expressão, usando o cliché do soldado desconhecido. Se há monumento que alguém mereça, são elas. Porque passaram por esse tipo de caminho por dificuldades inauditas e desse ponto de vista, os homens tiveram sempre a parte mais fácil que foia a parte do trabalho, fora de casa, sem ter de aturar os filhos, sem ter de aturar essas coisas todas e muitas vezes sem ter de contribuir para essas coisas para aquilo que era o agregado familiar. É evidente que quando lá estavam as dificuldades tocavam a todos, mas quando as dificuldades eram insuportáveis, eles fugiam, elas ficavam. Bom diremos: bom andam à procura da sobrevivência económica, mas o que é curioso é que eu reparo que dos estudos que fiz, verifico que quando eles voltavam dessa emigração, não traziam nada com eles. Poderiam trazer uns duros, às vezes, mas a maior parte das vezes não traziam grande coisa. Não traziam um contributo muitas vezes significativo. Outros iam para o Brasil, para a Argentina e nunca mais voltavam. Nunca mais se sabia deles. E eu gosto de relembrar e ver as coisas por esta perspectiva, porque me parece extremamente importante porque há uma qualidade de pessoas que não desiste, que não foge, que não se vai embora e não se vai embora porque não tem condições. Têm miúdos pequeninos, e não pode ir e aguenta até às últimas consequências. Aguenta até às últimas dificuldades. Ora a dificuldade aguça o engenho e as pessoas quando tem muitas dificuldades têm de encontrar soluções para as vencer. Às vezes soluções boas, outras vezes menos boas, mas soluções. E digamos que estas dificuldades trouxeram também, à cabeça das mulheres, soluções que de uma outra forma não viriam porque permite enfrentar essas mesmas dificuldades. Esta é uma dimensão mais comunitária, mais geral, que é sobretudo forte na sociedade sendinesa porque a sociedade sendinesa, dentro da sociedade mirandesa, tem características próprias, mas que eu penso que se pode generalizar a outras áreas da sociedade mirandesa. Eu sei que também se pode generalizar a outras áreas da sociedade trasmontana. Porque isto verifica-se em muita sociedade trasmontana. O que eu creio é que talvez não se verifique com tanta intensidade fruto destas circunstâncias, falar nomeadamente da fronteira, que permitia de facto este caminho e permitia esta fuga, e que não tem só a ver com a emigração de agora, tem a ver com o passado. E portanto, esta é a dupla reflexão que eu faço e são ambas essenciais, penso eu, sobre a pergunta que o Leonel fez relativamente a esta matéria.
L.B.: Para finalizar. Gravamos 23 horas contigo. Os dois aqui e em Sendim. Qual é o futuro disto?
Amadeu:
É para memória futura. Para já este destino está no imediato está entregue nas mãos de Teresa Martins Marques. Isto foi feito a pedido dela, foi ideia dela, foi sugestão dela, ela decidiu há dois três anos elaborar a minha biografia. Numa fase inicial, contra a minha vontade porque achei que não se justificava. Mas ela é tão teimosa que lá acabou por conseguir. Teimosa no bom sentido da palavra. E digamos que desde a primeira hora ela procurou gravar testemunhos que lhe pudessem servir de base à elaboração dessa biografia. E foi ela que teve a ideia de falar com o Leonel Brito e vídeo gravar estas entrevistas que lhe pudessem servir de base à elaboração de essa biografia. O resto, digamos, esteve nas mão do Leonel, que tudo orientou, começou por uma ponta é também um persistente nestas coisas, foi abrindo caminho e conseguir transformar aquilo que eventualmente poderia se transformar uma ou duas horas de um depoimento, em vinte e tal horas de depoimentos de facto muito pormenorizado porque insistiu, nunca desistiu, quis saber ao pormenor todos os aspetos e para mim foi um prazer muito grande recordar o fio da lembrança. Recordar de facto isto que nós achamos que são bocados da minha vida, quero dizer como já disse mais que uma vez, nada disto foi pensado por mim, todos os depoimentos são espontâneos, saíram espontaneamente e isso tem todas as vantagens, a genuidade que este tipo de depoimentos tem mas tem todas as vantagens de juízos apressados, se calhar de coisas que não devessem ter sido ditas, mas eu não me censurei absolutamente em nada, em tudo aquilo que disse. E portanto, falei espontaneamente e procurei não falar apenas de mim, eu creio que estive metido em tanta coisa ao longo da minha vida e em coisas tão diversificadas que acho que o meu percurso pode ajudar a fazer a história da segunda metade do século XX, numa comunidade rural do interior e não só. Depois acabei por estar em Bragança, acabei por estar em Lisboa e portanto, isto acaba por ser um pouco o reflexo dessa segunda metade do século XX em vários aspetos, até de Portugal, do Portugal que é, do Portugal de quando eu nasci, que era um Portugal medieval e não de agora que é um Portugal moderno E portanto este depoimento de vinte e tal horas pode ajudar, de facto a fazer esta história. Se assim for, será uma cereja em cima do bolo.
L.B.: Para além de ser entregue em papel, forma transcritas à Dra. Teresa Martins Marques, entendes que estas horas não fiquem em tua casa. Numa gaveta.
Amadeu:
Eu gostaria que isto fosse entregue a uma instituição, que lhe pudesse dar o destino, dentro disto que eu acabei de dizer. Porque de facto acho que o depoimento está dado em termos tais que não é um documento intimista, é um documento que tem condições de ser pelo menos, semi-público e de ser trabalhado por quem quiser estudá-lo. Eu acho que é um documento que deve estar disponível a investigadores, Historiadores, a pessoas interessadas dentro do respeito que ele merece, eu falo de muita gente, essa gente merece respeito e portanto acho que uma instituição adequada deve ser o sítio certo, onde estas coisas devem estar sempre.
L.B.: Eu pensei no Centro de Sendim.
Amadeu:
Por exemplo o centro de música tradicional, que é um centro que de facto tem milhares de horas de gravações e que eu espero que até com a ajuda do Leonel, ele se desenvolva e venha a incorporar muitos outros depoimentos de vário tipo. E não apenas depoimentos de música ou de a oralidade mais consagrada tipo contos, mas experiencias de vida, porque a história faz-se com o documento, mas documentos escritos, mas quando se definiu história não haviam esses documentos gravados. E eles também são documentos que vão servir para fazer a história. A gente humilde do povo não tem grandes pergaminhos, grandes cartas reais, grandes leis a seu favor, tem a sua vida e portanto, para fazer a sua história tem que a contar. E eu acho que isto pode-se inserir dentro disso.
L.B.: O Aquivo Distrital de Bragança e a Torre do Tombo.
Amadeu:
Por exemplo. Sem dúvida. Se tiver interesse, não sei se tem interesse para a Torre do Tombo, se calhar não, eu não devo agilizar sobre essa matéria. Mas acho que sim. Sem dúvida nenhuma. E quero agradecer ao Leonel toda a pachorra que teve porque ele assistiu, participou e orientou estas 23 horas, sem exceção e já vamos no quarto mês. Começamos em Novembro, se não estou
em erro, passamos Dezembro, Janeiro e estamos em Fevereiro. Percorremos Sendim e Lisboa e portanto, isto deu muita volta.
In Teresa Martins Marques, O FIO DAS LEMBRANÇAS. Biografia de Amadeu Ferreira . Âncoara Editora, 2015
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