viva o 1º de maio em honra de daniel felipe

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e.38. (ao daniel filipe) abril 30, 1973

leia aqui em pdf em baixo está desformatadoe

1.

margem insólita de todo o poema

sempre nos habita

algures

a palavra

gesto

talvez sorriso

familiares viajantes de toda a história

pairam sobre a memória do cristal

estrangeiros pensamentos crescem dos dedos

invadem a casa

lavrando

sonhos impossíveis

 

atração eternizada nos transcende

mística magia de rochas por decifrar

fantasiosas

oportunistas

divagam

insustentáveis teses

nos zimbórios da retórica

agnósticos

céticos

espraiam-se fervorosos

 

no grito infeto

a louca viagem

multicolor do tempo

grades de raiva

inaudito flagelo

 

pregaram às janelas do cérebro

holofotes de cura do sono

o crime da estátua

tensas mordaças

hirtas teias

paisagens sem idade

 

supliciaram o templo inerte

do corpo

violaram memórias

confissões sempre retardadas

 

o ódio calmo

sereno companheiro

 

 

anda camarada

cospe-lhes o teu sangue puro

ri-te da dor animal

mas não lhes perdoes

mas não esqueças

 

o tóxico fumo

da indomável vontade

cansá-los-á

rendidos

frustres carrascos

abater-te-ão

e os dentes que te arrancaram

e a língua que não te soltaram

(embora ta cortassem)

e o pensamento que te não aprisionaram

serão a vitória

serão a troça

 

dos teus olhos abertos

dois vulcões de sangue

sem vida tos extirparam

para que morto

os não fulmines

 

 

teus ossos lançados às cinzas e ao mar

entoam canções heroicas

também tu és o nobre canto

resistente

 

 

camarada

nós te ergueremos

bandeira viva

é nossa a luta

é nossa a desforra

é nossa a trova

espada deste canto

 

amigo

a liberdade te pertence

a vida te merece

poema sem tempo

farpa

mista voz desfraldada

livros por habitar

no mundo-do-sem-fim

acorrentadas horas

penosas arqueologias

rastejantes

subterrâneas as vozes

nos invadem

fecundas

as mãos

giz

suor

ironia despojada de lágrimas

truncámos a palavra

deserta

(in)sobrevivente

vencida foi

no letargo da mediocracia.

 

2.

esgotem materiais e humanos

atinja-se a inanição

cooperem operários

técnicos

meros observadores

TODOS

novos

velhos

mulheres

inválidos

crianças

inclusive homens

(à cause du machîsme)

 

reine a desordem

e o caos

não sucumba a vigilância

 

policias ineptos

soldadinhos de chumbo

bombeiros de palha

forças desmilitarizadas

vigilantes

bufos

corpo-de-paz

O IMPORTANTE SÃO AS FARDAS!

mobilizados todos

cursos especiais

de desinfestação

instrução de piqueniques volantes

guerra sem cartel nem quartel

até se estropiar a ORDEM

(abolido temporariamente o trabalho)

 

é perigosa

anda protegida e bem armada

(ao que consta

de fontes fidedignas)

o serviço nacional da malinformação

atento e venerando

tv

jornais

cinema-novo

teatro-de-vanguarda

convocados

haverá comunicados horários concisos

texto único

 

 

congressos-mundiais-de-combate-inútil-reunidos

 

 

(o debate é a base de toda a futilidade polemista!)

 

 

imperioso manter a população

hibernada

estado-de-sítio

recolher obrigatório

em todos os bordeis e lupanares

acerada vigilância

abolida a privacia

e a intimidade

vasculhadas pessoas e haveres

 

obstruam as ruas

com barricadas de papelão

 

(inauguradas em direto pela tv)

 

cidades

estradas

portos

marítimos e aéreos

espiados

como rezam as tradições

francas das fronteiras

 

 

(a burocracia ocupar-se-á do restante)

 

 

antiguerrilheira e apátrida

  • infiltrou a ORDEM –

teve o apoio de minorias já detetadas

condenada ao malogro

cresceu

e se fez gente temida

racionados viveres

por estratos sociais

senhas e talões

no mercado negro

dos intelligence services locais

amestrados cães pastores

vigilantes

rebuscam residências

a elite comunizava livros proibidos

 

 

o tesouro com poderes supranormais

emitia metal sonante

descongelados salários da administração

fomentada a espiral inflacionária

falidos pequenos e médios empresários

monopolizado o grande capital

o país crescia

sólido e inabalável

a ORDEM enaltecia a família e a religião

sem amigos nem-conhecidos-de-café

ninguém afrontava a pública militância

viajava-se nos coletivos

preferencialmente amarelos

desajustada tendência aos discursos

do grão-mestre

impostos pagos

residência nos subúrbios

débitos ao merceeiro

jogadores fortuitos de totobolas

  • apostas simples –

horários fixos por contratos coletivos

 

os católicos de domingo

funcionários devotados

soletravam o respeito

honestos e pontuais

sem ambições viviam

orgulhosamente sós.

 

 

  • então chegou o tempo das flores –

 

 

maculado o vernáculo solo pátrio

desmascararam-se abusos

de vítimas nenhumas

sufocaram-se greves

carregou a polícia de choque

prisões maciças

sem culpa formada

torturas

deportações

nada foi eficaz

o poder legalmente constituído

autoridade irrefutável

caiu

sem pretensas liberalizações subversivas

debilitados os poderes cívicos

a elite dirigente escoiceada e depurada

 

  • (eram homens públicos de muito mérito!) –

 

foram traídos pelo povo

a quem não serviam

reconheceu-se autoridade à ONU

entabularam-se negociações com terroristas

(até então guerrilheiros sem pátria)

ignoraram-se imaginosos esquartejamentos de brancos colonos

e a terra una

multirracial porque discriminatória

pluricontinental porque imperialeira

finalmente hipotecou tradições balofas

enterravam-se prósperos futuros planejados

 

(o presente era de crise

mas as previsões mentiam seguras)

 

aprestado o ajuste de contas

alguém houve

pagando com a vida

morte

ou o que preciso fosse

demolida a ameaça

pela população gentia

brotou a voz uníssona e liberta das massas

milhões de vidas salvas

antes de contaminadas

 

 

nascia um jovem continente no velho mundo.