TIMOR CRÓNICA NOSTÁLGICA quinta portugal

A QUINTA PORTUGAL- crónica nostálgica
Parte 1
Quem pelos anos 60 do século passado esteve por Aileu, em Timor Leste, certamente conheceu a Quinta Portugal. Ficava antes de chegar à vila, vindo de Díli, estendendo-se por alguns hectares de café e mata ao lado da ribeira. Poiso obrigatório nalgumas tardes de sábado ou domingo, passeio agradável de mota ou a cavalo e a oportunidade de visitar o seu proprietário, que invariavelmente nos oferecia um saboroso e bem escuro café.
Aqueles dedos de conversa trocados com ele, sentados no abrigado alpendre, eram relaxantes, até pela boa disposição e humor com que o Alferes Abrantes narrava velhos episódios da sua longa vida na Meia Ilha. Lá chegara nos finais dos anos 20 como sargento, acabando por se reformar no posto honorífico de alferes. Com as suas economias, construíra a quinta, a que deu o nome da sua pátria.
Ainda ouço a parlar pausadamente e como experiente velhote a filosofar sobre a vida, prognosticando futuros sempre incertos. Sentado num cadeirão de rota e de pijama vestido, com um grande copo de aguardente a seu lado, ia bebericando, enquanto sentenciava sobre os mais variados assuntos. Eu acompanhava-o num café que o diligente e também idoso mainato servia. Seu servidor há longos anos, emprestava-lhe amizade, com algum distanciamento. Lá repetia a ladainha sobre o café, argumentando que já tinha dito ao “preto” que não o torrasse demasiado, ao que ele não obedecia e era a razão por se beber não café, mas cinzas de café…
À pergunta feita se alguma vez fora a Portugal, confessou que pouco antes da guerra visitara a sua aldeia de Vessadas, no concelho de Mangualde. Fora durante o inverno – e o gelo, neve e o frio da serra, a que já não estava habituado, provocavam-lhe um mau estar que nem mesmo o incentivo dos seus velhos companheiros de infância, para beber uns tragos de aguardente como aquecimento, produziam efeito. Respondia-lhes que já tinha emborcado uma série de copos da bem forte, mas sem resultado: “- até já tenho os fígados queimados, mas nada resulta”. Não volto a ir à Metrópole, lá é muito frio!
…Um dia, mandou um seu netito ao meu encontro ao quartel para me entregar um bilhete, onde solicitava urgentemente a minha presença, já que não podia aceder a todas as nonas que tinha – e solicitava a minha ajuda para partilhar ao menos uma… Era a forma humorística que tinha para querer que o fosse visitar. Assim fiz e, no domingo após o almoço, lá me meti na mota e rumei à Quinta Portugal. Satisfeito por me ver, logo me disse que a nona já fugira com outro, mas que deixara uma prenda que era, nem mais nem menos, um saco de vinte quilos de café, ainda por torrar. Que bela prenda!
Na verdade, o café que cultivava era de boa qualidade – e o ambiente onde o saboreava davam-me um grande prazer. Aliás, nas minhas frequentes visitas, acabei por conhecer parte dos seus familiares. A mulher timorense com quem vivia nunca cheguei a saber se era a mãe dos seus dois filhos conhecidos: um, funcionário na Administração de Aileu, e outro, com dois ou três filhos, vivia ao fundo do grande terreiro da quinta, numa pequena casa isolada. Casado com uma macaísta, andara em novo por Aveiro a fazer que estudava, tendo a certa altura recebido ordem de marcha do pai para regressar a Timor. Ajudava o pai nas tarefas agrícolas. Era um bom conversador de pequenos nadas, mas não se sentava connosco nos colóquios com o seu progenitor.
José Pais Abrantes teria já uns setenta e alguns anos quando o conheci. A sua referência aos governantes era bem expressa numa carapaça de tartaruga que adornava a parede exterior da sua casa, onde se inscrevia um viva a Marcelo Caetano. Quando ocorreu o 25 de Abril, talvez o seu filho, que era funcionário público, tenha retirado esse louvor, pelo que por debaixo apareceu uma antiga loa de tudo pela nação, nada contra a nação – Salazar; e ainda sob esta legenda colada em papel, lá se encontrava o escudo português bem pintado na casca do réptil marinho.
Com o desenrolar dos acontecimentos políticos, logo em 1974, a sua boa disposição começou a mostrar quebra, o seu ânimo já não era o mesmo. Bem o tentava a falar, mas ele acabrunhado só dizia: “prevejo para Timor um futuro muito negro. Sabe, se o timorense não tiver por perto da sua palhota um branco, matam-se uns aos outros…”
Da última vez que o vi, tornou a vaticinar o futuro trágico para Timor e confessou-me que em breve ia morrer angustiado… Não resistiu muito mais e acabou por falecer em Díli nos primeiros meses de 1975.
A sua profecia infelizmente cumpriu-se…
Parte 2
…Contudo, os desígnios da humanidade também surpreendem, e o Timor Português tornou-se um país independente. Regressei a Timor em 1999, na área da cooperação com Portugal. Visitei, logo que pude, a Quinta Portugal em Aileu. Dela restava o sítio. Das casas, mal se distinguiam os caboucos e da viçosa plantação de café, apenas alguns pés já abastardados, perdidos no meio da selva. Que choque!
Uns tempos depois, fui procurado pelo encarregado de uma missão agrícola portuguesa chegado a Timor-Leste, que pretendia que lhe recomendasse um guia para os acompanhar a Maubisse, local onde o Dr.Ramos Horta tinha indicado para implantarem um projecto de dinamização agrícola na área de cafeicultura, fruticultura e silvicultura. Indiquei-lhe um jovem, regente agrícola. Fiz-lhe um pedido: que no caminho para o seu procurado destino passassem pela Quinta Portugal e visse o potencial. O jovem guia que lhes tinha indicado era o neto do antigo colono, que conhecera em criança. Passados dias, fui de novo visitado pelo engenheiro português que, entusiasmado, informou que o melhor sítio para o seu projecto era justamente o terreno da antiga quinta em Aileu. Sei que fizeram contrato de arrendamento com os herdeiros e lá nasceu uma florescente estação agrícola onde se efectuavam alfobres e plantações das mais diversas espécies, e onde os timorenses, de perto ou longe, acorriam a ter formação para transplantarem as novas plantas para as suas regiões. Era um sucesso, constituindo orgulho para a cooperação portuguesa. Local obrigatório de visita.
Em 2010, voltei a sentir uma dor d’alma ao deparar-me com o que vi: uma sombra do que fora escassos anos antes! O renascido sucesso fora definhando assim que os técnicos portugueses, acabado o projecto, tinham deixado Timor. Ao que julgo saber, houve entretanto um apoio da cooperação australiana, que tentou manter a dinâmica, mas acabara também por não resultar
Em 2018, junto à ribeira, à entrada da quinta, ainda lá existia o antigo placard, mas a tela pintada com a bandeira portuguesa recortada, desaparecera.
Soube que há poucos anos surgiu um novo projecto de renovação, denominado Centro Agroflorestal da Quinta Portugal, sendo também local de referência para o estudo e desenvolvimento de acções relativas à problemática da cultura do café, fruticultura, horticultura e cerealífera, promovendo sessões de formação e trabalho, bem como concursos e festivais agro. Tudo isto, possibilitando uma interacção social dos vários pequenos e grandes produtores, tal como distribuidores e consumidores interessados.
Também anda por lá dedo de técnicos portugueses, através do Instituto Camões que, apoiando as instituições timorenses, têm efectuado um trabalho meritório, que é justo assinalar. Oxalá se consiga consolidar permanentemente e por longo tempo tal desiderato e que a quinta contribua para o bem-estar e desenvolvimento sócioeconómico de Timor –Leste!
Em memória do seu fundador e dos bons momentos que muitos portugueses lá passaram e ao excelente trabalho repetidamente efectuado, apraz-me dar um Viva à Quinta Portugal de Aileu!
RBF
Natal 2022
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  • António Serra

    Curiosissima “nota histórica”. Obgd. Sou um fã incondicional do projeto e sempre que posso incentivo a sua ” multiplicação “. Parabéns ao UGoh Trindade , o técnico português que reanimou o projeto nos últimos anos.
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