TIMOR ANIVERSÁRIO DO REFERENDO 1999

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MEUS POEMAS ALUSIVOS A TIMOR

V. TIMOR, Díli, Timor, setembro, 20, 1973

timor cresceu cercado

lendas que a distância empolgou

o sonho

a quietude

as 1001 noites do oriente exótico

o sortilégio dos trópicos

para o europeu

chegar era já desilusão

desprevenido

sobrevoa estéril ilha

montes e pedras

agreste paisagem sulcada

leitos secos

abruptas escarpas

terra sem marca de homem

esparsas cabanas de colmo

será isto timor?

o avião desce o vazio em círculos

em vão os olhos buscam a pista

por trás de um montículo imprevisto

se vislumbra o “T

e a torre de controlo dos folhetos de propaganda

nunca existiu

a alfândega é o bar e a sala de espera

sob o zinco e o colmo

isto é baucau

aeroporto internacional

a vila salazar dos compêndios

que a história esqueceu

uma turba estranha se amontoa

à chegada do cacatua-bote[1]

o patas-de-aço

esta a cerimónia sagrada do deus estrangeiro

descendo dos céus

dia de festa para os trajes multicoloridos

o contraste do castanho de sóis pigmentados

cinco da matina

e é já o pó e o calor

o espanto mudo nas bocas incrédulas

as formalidades aqui com sabor novo

espera lenta e compassada

séculos de futuro por viver

antes que ele venha

antes não venha

num barracão zincado uma velha bedford

de carga com caixa fechada

vidros de plástico sob o toldo puído

pomposo dístico colonial

carreira pública baucau-díli

picada em terreno plano

mar ao fundo

baucau

cidade menina por entre palmares

densa vegetação tropical

connosco se cruzam estranhos homens de lipa[2]

galo de combate ao colo

entre torsos e braços nus

das ruínas do mercado se evocam

desconhecidos templos romanos

estrada n.º 1 até díli

sulcam-se abruptas as encostas

ao mar sobranceiras

ali se adivinham cristais multicolores

em lugar de pontes se atravessam ribeiras

enormes

leitos secos

o tempo as converteu em estradas de ocasião

pedregoso solo

cores indefinidas

castanhos e verdes

palapas [3] dissimuladas na paisagem

imagens tristes de pedras e montes

baías primitivas

inconquistas

praias de despojos e conchas

paraísos insuspeitos

as gentes de sorrisos vermelhos

assusto-me

não é sangue nas bocas gengivadas

masca, mescla de cal viva e harecan[4]

placebo psicológico da alimentação que falta

um sorriso encarnado esconde a fome

súbito

por paisagens que só a memória

sem palavras descreverá

eis díli

a capital

larguíssima avenida semeando o pó nas palapas

casas de pedra com telhados de zinco

na ponta leste chinas e timores

partilham a promiscuidade da pobreza

díli

plana e longa

a vasta baía antevendo imponente

o ataúro ilha

um porto incipiente

a marginal desagua no farol

construções coloniais pós 1945

da guerra que ninguém quis

dos mortos que os japoneses quiseram

da neutralidade do país mãe calado e violado

albergam chefes de serviço

altas patentes militares

sem guerras para lutar

sem movimentos libertadores das gentes

quinze quilómetros de asfalto

três casas dantes da guerra grande

aeródromo em terra batida

um jipe de afugenta búfalo

a rua comercial atravessa díli senhora

de leste a oeste

espinha dorsal

o centro

o palácio das repartições

do governo

perto um museu

o seu nome ostenta o vazio

riquezas sem fim

seus governadores exportaram

 

patriotas colonizadores de séculos com nada para mostrar

um museu morto

dois sinaleiros nas horas de ponta

ociosos às portas dos cafés

à noite transfiguram-se

os bas-fond

o texas bar

da prostituição às slot machines

o submundo

a vida underground

afogar esperanças em álcool

sonhos há muito perdidos nunca sonhados

restaurantes poucos

melhor comida a chinesa

bares espalhados pela cidade

militares e álcool para calar distâncias

um portugal dos pequeninos

longínquo

cada vez mais esquecido

nunca perdido.

1973 numa cidade sem vida

morrendo nas cinzas próprias de cada noite

por entre o silêncio e a voz triste dos tokés[5]

o calor putrefacto

por entre o voo alado das baratas gigantes

carros poucos

de dia só do estado

motocicletas pululam por entre viaturas oficialmente pretas e verdes

esperando mulheres de oficiais

às portas dos cabeleireiros

do liceu

militares a pé, em berliets ou unimogs

chineses muitos

díli é isto

a desolação

na parte alta da cidade o complexo militar

barracas insalubres

sob a sombra dos hospitais

um civil um militar

fresco e verdejante vale

triste esta cidade

pretensamente euro-africana

palapas marginando ruas

nelas vive o timor

sem água nem luz

dez ou quinze filhos

que importa

a miséria é só uma e a mesma?

esta “a terra que o sol em nascendo vê primeiro”

aqui as imagens

e são já história

não se repetirão

aqui não daremos testemunho

como transfigurar

colónias pacíficas

em palcos de guerra.

433.1. bucólica bobonariana-i, bobonaro, nov 23, 1973

a colina à esquerda ergue-se

mansamente, sem pressas

caminha do mar, reproduz-se altiva

pico agreste me vigia

não há vegetação nem sinais de gente

(terá emigrado daqui a seiva?)

as rochas puras primitivas, nascituras

erguidas por ciclópicas mãos do fundo dos mares

quedaram-se ostensivas, desafio de nuvens eternas

arbustos pequenos insignificantes como as gentes

espraia-se na vastidão o olhar (começa em mim)

só montes, pedras, horizonte

eu aqui fechado, cercado, ilha de mim próprio

o vale profundo (talvez abismo, talvez acusação)

diviso emaranhados nas brumas ciscos amarelos

(segredam-me são casas de gente)

ENTÃO PARTO

sem hesitar cavalgo

pedras

ribeiros

encostas

subo

desço

e nada destrinço

insensível à rude beleza

atinjo inóspito cume

estranhamente plano

nele plantaram casas

cinco ou seis

uma ao centro

lulic[6] dizem-me

baixo-me e entro

teto erguido a pique

muro de pedra a tocar baixo sobrado

térreo madeirame trabalhado segue as vigas

quadros sacros

sol

elementos

animais

no andar elevadiço

um lar entesourado em morada última

assusto-me

em volta ósseas relíquias

cheiro imenso a fumigação

saio

respiro ar puro

sacrossanto

das montanhesas cercanias

uma laje quadrada

uma placa tipo tumular

flores murchas e perdidas

casas sem muros

no andar térreo

animais se abrigam

por cima pessoas alojadas

deitadas

a nascer

a cozinhar

a comer

a dormir

a morrer

quando as chuvas tombam

e o colmo amolece

quando o sopro do vento vem

rasgar a mirrada pele

quando maromác[7] se zanga

nascem surdos lamentos

ninguém ouvirá

olhei e vi gente

acocorada

semidespida

esquelética

nuas crianças

algumas de colo

a mim chegaram

sorrindo orgulhosas da alva pele

pedindo as fotografasse

tartamudeavam malai[8]

como quem se afirma

compreendi esse estranho orgulho ilegítimo

bastardo

mulheres se alugam para não perecerem

da fome vil

quando novas servem de pasto

a abutres forasteiros

depois

escavacadas

descarnadas

desdentadas

mascam infindáveis sementes

esboçam sorrisos

para a objetiva acusadora e cúmplice

não mais suportei este dantesco inferno

saí

acenei

virei costas e voltei ao exílio.

– NAUSEADO –

433.2. bucólica bobonariana II. Bobonaro, nov 23, 1973

(permaneci calado traído por pensamentos galopantes

onde as mulheres, cadê as crianças?

que gente esta, donde vem?

que peso arrasta penosa, mecanicamente?)

ao longe divisei um ancião

vergado como uma aduela

corri para ele, inspirou-me medo

fez um gesto vago, um arremedo a suster-me

estaquei na distância

nem um pássaro riscava a muda quietude do céu

tremi

como se de súbito

me penetrassem

as respostas todas

virei costas

corri, corri

e aqui estou hoje

a dar-vos conta

do que assisti

eu vi-os

de olhar gasto e gestos caídos

vinham com neves eternas nos cabelos

enxada às costas

vergados ao peso de séculos

maltrapilhos

descalços

rotos

bronzeados por sóis perdidos

na memória dos tempos

uma grande fome para contar

e o silêncio sem fim

de todas as solidões

falei-lhes

acenaram sem se deterem

cadência de autómatos

sem vontade

explicaram por gestos

o que presumi sorriso

nas gengivas descarnadas informes

perguntei

donde vinham

de que estranha guerra

sobreviviam

sem abrandarem a insólita marcha

puxaram da bia sem idade

acenderam-na na concha dos dedos recurvos

suspiraram fundo como jamais ouvira

era um sopro indefinido

murmurado

amargo

entretanto havíamos chegado

povoado estranho sem gente

nem cães ladrando em redor

casas singulares

elevações de colmos

suspensas de estacas mudas

sem janelas nem portas

um silêncio velho de morte

imperioso deixar a alma

deste ritmo

parar

deixar o instante

deste tempo

renascer

eterno

esta a proposta inicial

iniciática

até lá, como?

434. a lepra. Díli, dez 3, 1974

eu vi-os

de olhar gasto e gestos caídos

vinham com neves eternas nos cabelos

enxada às costas

vergados ao peso de séculos

maltrapilhos

descalços

rotos

bronzeados por sóis perdidos

na memória dos tempos

uma grande fome para contar

e o silêncio sem fim

de todas as solidões

falei-lhes

acenaram sem se deterem

cadência de autómatos

sem vontade

explicaram por gestos

o que presumi sorriso

onde só havia gengivas descarnadas

informes

perguntei

donde vinham

de que estranha guerra

sobreviviam

sem abrandarem a insólita marcha

puxaram da bia sem idade

acenderam-na na concha dos dedos recurvos

suspiraram

fundo

como jamais ouvira

era um sopro indefinido

murmurado

amargo

entretanto havíamos chegado

povoado estranho

sem gente

nem cães

ladrando em redor

casas estranhas

elevações de colmos

suspensas de estacas

mudas

sem janelas

nem portas

um silêncio velho de morte

deixar a alma

deste ritmo

parar

deixar o instante

deste tempo

renascer

eterno

esta a proposta

inicial

iniciática

até lá, como?

[1] cacatua-bote ou patas-de-aço eram designações dadas pelos timorenses aos aviões

[2] lipa, saia de tecido colorido, típica, de origem malaia, os timorenses usam-na enrolada à cintura descendo até aos tornozelos.

[3] casas cónicas, quadradas ou retangulares em colmo

[4] folha de planta semelhante à do tabaco

[5] espécie de lagarto sonoro, cuja idade se determinava pelo número de vezes que emitia o som toké.

[6] lúlic significa sagrado em tétum

[7] o equivalente a deus em língua tétum

[8] designação dada aos brancos pelos timorenses


450. o teto do mundo. díli, dezº 3, 1974

como romper as palavras?

o som e o lamento do ai-tassi

sagrado lenho

em ti se moldaram

faces e rugas milenárias

caminhos de teto do mundo

nas mãos vazias viaja o passaporte

para que não sucumbas hoje

há muitas mortes nos amanhãs

teus pés ligeiros voam vinte quilómetros

o cacho solitário que colheste

bananas com que não matas as fomes

enganas malai com parco lucro

escudo lima[1]

e teu rosto infantil e puro sorria

vendeste a sobrevivência duma semana

caminhas curvado e galgas montanhas

teus os reinos de Railaco e TataMaiLau[2]

por isso retornas e teu sorriso é jovem

na cal e harecan misturas o prazer e o engano

também teu estômago sorri confiante

também tua a linguagem do corpo

no regresso de braços dolentes

firme em teu braço direito

o teu combate de penas

pobre mercador de ilusões em galos de luta

acaricias teu ganha-pão

teu desporto

e apostas

mais

sempre mais

são tuas as lágrimas

a revolta e a derrota

é teu o sangue e o alimentaste

guardas o estilete acerado

não decepou medos

são tuas as planícies e as ribeiras

as torrentes inundaram o arrozal

levaram pontes e caminhos

e ris do grande engenheiro malai

como do búfalo do china luís

navegando rumo à liberdade

nem pensas na tua

das árvores pendem camarões doces do rio

e o pequeno jacaré

faz o cruzeiro oceânico Ribeira de Seiçal-Díli

maromác[3] sabe

maubere é diac [4]e vai passar

esse o lado outro do abismo.

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[1] o equivalente a cinco escudos em moeda de timor

[2] picos mais altos de timor, rondando os 3 mil metros de altitude

[3] maromác o equivalente a deus em língua tétum

[4] maubere é diac, o timorense é bom, coisa boa

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