Teresa Martins Marques · AREIAS MOVEDIÇAS

AREIAS MOVEDIÇAS
Lúcia chegou a casa no final de uma sexta-feira muito pesada. A manhã preenchida pelo voluntariado na APAV, depois, duas aulas no ISPA e, ao fim da tarde, o consultório. Continuava neste ritmo há vários anos, e a solução para abrandar seria aposentar-se como professora. Não podia sequer colocar a hipótese de abandonar o consultório, onde seguia vários casos complicados, e muito menos a APAV, onde as infelizes sorviam cada palavra de consolo.
Acabava de ver anunciados os fatídicos números oficiais de mulheres assassinadas em Portugal. Apesar de todo o trabalho feito em colaboração com a Associação de Mulheres contra a Violência os números eram obscenos. A única resposta para os agressores está na polícia e nos tribunais, mas frequentemente as vítimas só tarde fazem queixa, as que a fazem.
As mulheres do Monte da Caparica tinham em comum ameaças ou mesmo tentativas de morte. A Odete apanhou o marido a violar a irmã mais nova. Foi denunciá-lo à polícia, e teve de fugir de casa. A Maria levou anos e anos a levar pancada do marido bêbedo e foi a filha que a levou à esquadra. A Antónia era manipulada por um namorado violento que a obrigava a prostituir-se. A Marta vivia com um drogado que a sovava sempre que estava de ressaca. Mulheres de outro tempo, submissas?
Mas o que dizer das gerações mais novas que, segundo inquéritos recentes entre universitários, entendiam que umas bofetadas durante o namoro não faziam mal a ninguém? O que lhes reservaria o futuro? Nem mesmo o presente lhes reservava alguma coisa, a não ser sofrimento. Lúcia recorda-se de ter ouvido uma história recente a uma amiga − a Margarida Braga Neves, também presenciada pela colega Isabel Rocheta − ambas professoras na Faculdade de Letras. Dirigiam-se ao conselho directivo, quando depararam com uma cena estranha ao fundo do corredor: caída no chão, uma aluna chorava convulsivamente e pedia para chamarem a mãe.
− Isabel, ela deve estar a sentir-se mal! − Disse a Margarida, visivelmente preocupada.
− Talvez tenha caído e se calhar não consegue levantar-se. Vamos ver o que é. − Respondeu a Isabel.
Entretanto aproximaram-se outras alunas, intrigadas com o caso.
− Desculpe, está a sentir-se mal? − pergunta a Margarida.
Resposta nenhuma e o choro aumenta.
− O que é que podemos fazer por si ? − diz a Isabel.
Os soluços eram a única resposta. Entretanto, vem esbaforida a correr uma aluna, certamente avisada pelas outras:
¬ − Raquel! Não me digas que foi o João!
A Raquel acenou afirmativamente com a cabeça e continuou o choro.
A colega informa as duas professoras:
− O João é o namorado ciumento que passa a vida a bater-lhe! Grande estupor!
− Ela tem de fazer queixa na polícia! − Diz, indignada, a Margarida.
− É claro que sim.− ¬ Corrobora a Isabel.
− Isso é o que nós lhe dizemos todos os dias, mas ela não faz caso! Isto não pode continuar! Estás a ouvir Raquel, o que as professoras estão a dizer?
Finalmente a Raquel parou de soluçar:
− O João … o João não faz por mal… Ele gosta de mim, tem este mau feitio, daqui a pouco já está a telefonar-me a pedir desculpa. Deixem lá. Chama a minha mãe para me vir buscar − pedia à colega.
A Margarida e a Isabel olhavam uma para a outra consternadas.
− Isto é um círculo vicioso… − disse a Isabel.
− Pois é. − Respondeu, com ar triste, a Margarida. Esta rapariga não imagina onde está a meter-se, porque isto vai ser cada vez pior!
− Temos de ver se o namorado é nosso aluno. − Sugeriu a Isabel.
− Como explicar-lhe que o silêncio a torna cúmplice do agressor? − perguntou a Margarida, com ar desanimado.
É este o cículo vicioso da violência − pensava Lúcia, ao lembrar-se desta história. Só na primeira agressão é que esta rapariga foi vítima. Na segunda já foi cúmplice. Pelo silêncio, pela ausência de queixa na polícia. Pela frase fatídica : “ Deixem lá, ele logo me pede desculpa…”
in Teresa Martins Marques, A MULHER QUE VENCEU DON JUAN, Áncora Editora, 2013.
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