pense dez vezes antes de iri à Arábia Saudita

 

não foi na arábia mas no kuwait em 1991 que tive uma experiência assustadora…. leai aqui

 

UM SUSTO ISLÂMICO GRANDE. KUWAIT CITY EM VÉSPERA DE GUERRA

 

Estava a bordo dum trimotor McDonnell Douglas DC-10 acabado de levantar do aeroporto de Omã (Emirados Árabes Unidos, local de paragem nesta viagem intercontinental) quando acontece a implosão do motor do lado esquerdo. A maioria dos passageiros fica sobressaltada. Durante largos momentos não há instruções, até se ouvir um curto aviso, sobre um “un petit (!!!) problème technique”. Os passageiros anglófonos, abordam-me a perguntar o que se passa, preocupados ao sobrevoarem o deserto de Omã (parte do enormíssimo deserto da Arábia), onde se viam apenas dunas e ancestrais depósitos de água totalmente secos. A imagem era aterradora. Havíamos começado a subida há cerca de 20 minutos, afastados do centro urbano mais próximo. Cá em baixo dunas e mais dunas, deserto e mais deserto, sem vivalma, apenas velhos poços secos. Os restantes dois motores obedeceram às ordens do piloto e lentamente o avião subiu mais, descrevendo um enorme círculo para a esquerda (lado do motor que implodiu), ao tentar voltar para trás. Completou o círculo ganhando mais altitude e o piloto, avisou que iríamos aterrar em Kuwait City. Ali chegamos, sem incidentes, numa cena mais própria dum filme de terrorismo internacional. Fomos mandados para o setor militar do aeroporto, onde tropas armadas até aos dentes, rodearam o avião e fortes medidas de segurança eram impostas, antes de uma hora depois sermos autorizados a desembarcar. Saímos para uma avenida poeirenta que sulcava o deserto, entre dunas, com poucos prédios (hoje parece Manhattan), até chegarmos ao luxuoso Intercontinental Hotel onde ficamos.

Era manhã bem cedo e quente, mas os bares do Hotel só abriam às 11 horas. Eu falava com um pequeno grupo de expatriados franceses que regressavam à Europa, éramos quatro kafires (infiéis) franceses e duas francesas, uma cinquentona. Íamos a entrar para o bar para dessedentar, pois apesar do ar condicionado a temperatura exterior rondava 46º C àquela hora matinal, quando fomos impedidos por um funcionário que disse que kafires não entravam. Desembocara nesse instante no bar um o ruidoso grupo de uns dez a doze nativos, com o vestuário tradicional masculino, o “thoub” branco, uma peça única e comprida. Na cabeça a “ghutra” ou “kaffiyeh” (o “shemagh” é usado em ambientes religiosos). Não havia nesse grupo nenhuma mulher com ou sem “chador” (véu islâmico). Decorrida meia hora ou mais, nós, infiéis, fomos finalmente autorizados a entrar e beber. Para espanto nosso, constatamos que os árabes estavam alegremente a consumir álcool, o que não é permitido, pelo Corão. A conversa deles parou, enquanto miravam, de alto a baixo, os estrangeiros, em especial as duas francesas, imodestamente vestidas para os padrões locais. Começamos a ouvir o que se presumia serem piropos, em árabe ou presumivelmente em língua inglesa de sotaque profundo. A atmosfera era de cortar à faca, com olhares e dichotes ininterruptos (sentimos aquela picada na nuca em situação de perigo extremo). Acabamos de beber rapidamente nesse ambiente hostil e ameaçador, saímos a ver montras, em grupo, para o enormíssimo átrio. Pouco depois, estava a conversar com Michel, programador de computação do governo da Nova Caledónia, num cadeirão de veludo forrado a ouro, plantado no meio do átrio, do tamanho dum campo de futebol. Nem reparamos, em frente a 15 metros, num grupo de três homens e duas mulheres cobertas com luxuosa jilbab e niqāb, o véu que cobre na totalidade a face, deixando antever os olhos e faz parte do hijāb ou burca.

No Oriente-do-Meio, manda a tradição islâmica que o contacto físico entre sexos seja bastante rigoroso. A troca de apertos de mãos é permitida só dentro de uma relação lícita ou num vínculo forte de parentesco. Em meios diplomáticos, são permitidos cumprimentos entre homens e mulheres, estas devem ser cumprimentadas verbalmente, a não ser que tomem a iniciativa e ofereçam o braço. A mão esquerda é considerada “suja,” pois é utilizada na higiene pessoal. Deve evitar-se cumprimentar, dar e receber presentes e cartões com a esquerda. Em hipótese alguma se deve gesticular balançando as mãos fechadas, é um gesto hostil. Nunca se devem cruzar as pernas. Mostrar a sola do sapato é um insolente insulto, é a parte em contacto direto com o chão sendo considerada impura.

Estávamos, Michel e eu, alheios de tudo isto e de todos, em amena galhofa discutindo as virtudes de termos uma mulher no mundo ocidental que ninguém pudesse olhar ou cobiçar. Provavelmente gesticulando, possivelmente mostrando as impuras solas dos sapatos, ténis ou botas, que calçávamos, sem nos apercebermos que estávamos sós no enorme átrio. Sabíamos que nunca se olhava diretamente para a mulher árabe, ao contrário do que é normal no Ocidente, e eis, que, de repente, pelo canto do olho, apercebo-me que uma imponente figura, em traje completo de xeque, se levanta e anda metade dos metros que separavam o nosso sofá do dele.

Subitamente tomados de pânico ou mero medo, pela segunda vez nessa manhã, mas sem nos desconcertarmos, a uma curta frase de alerta minha, levantamo-nos a conversar como se nada fosse, antes que o árabe se aproximasse mais. Aterrados, mas sem o querer dar a entender, pensávamos nós, distanciamo-nos tão rápido quanto possível rumo às escadas rolantes para outro andar. Não fomos seguidos, conforme verificamos (olhando a medo para trás). Tenho a imagem gravada na retina até hoje. Ficamos para o resto da vida com a dúvida, se o árabe se ia dirigir a nós, a acusar-nos de um qualquer crime hediondo, como ter olhado para o monte de tecido com dois pontos negros movediços na abertura da parte superior. Poderia o árabe ter-se sentido insultado com a lamacenta sola dos sapatos, cheia de areia árabe, ou teria constatado que o seu Cartier ou Rolex dourado e cravejado de diamantes tinha avariado e ia perguntar as horas. Fosse o que fosse, mudamos rapidamente de piso no hotel. Dirigimo-nos para a zona onde estavam os duzentos, ou mais, ocidentais ali tecnicamente exilados, enquanto o avião era reparado. Toda a atmosfera, mesmo num hotel daquela categoria era aterrorizadora, intimidatória e perigosa. Senti o racismo na primeira pessoa. Os árabes eram sempre servidos primeiro e só depois os estrangeiros, fosse para o que fosse, mesmo que se tratasse apenas de se sentarem numa mesa ou num dos bares do hotel. Nunca tinha sentido a discriminação tão vivamente como ali.

Da janela do Hotel Intercontinental, via-se o deserto ciclicamente cortado por um autocarro ou uma viatura topo de gama. A neblina do calor e humidade davam uma tonalidade de amarelo sujo a tudo o que circundava o hotel. Criavam-se miragens e a mente toldava-se enublada. Dois dias depois seria o terror, a morte, a pilhagem e a destruição pelas forças de Saddam Hussein. O hotel serviu de abrigo aos jornalistas estrangeiros a cobrir a invasão iraquiana. Mais uma vez o mundo perdera a inocência.

Senti mais medo físico nesse dia do que uns anos antes, quando temi pela vida, em Carachi (Paquistão) e saímos do avião devido a uma tempestade de areia. O quadrimotor tentara arrancar e chegou ao fim da pista com esta coberta de areia, estávamos em enorme perigo ao tentar descolar. Fomos abrigar-nos no terminal. Do dia se fez noite e a pista ficou com metros de altura de areia. O átrio do terminal parecia uma duna saariana. Duas horas na escuridão. Por fim, a tempestade aterradora, de areia, amainara, os bulldozers vieram limpar a pista e o avião partiu rumo a Nova Delhi ou Bombaim (Mumbai).

Esta cena de terror no Kuwait foi pior do que outra em 1979, num avião da Alitália, vindo de Hong Kong, que caiu abruptamente mais de 6 km em segundos, num poço de ar e muitos foram projetados, daí resultando leves ferimentos. Num instante estávamos bem por cima dos Alpes gelados e em segundos estávamos cá em baixo ladeados pelas montanhas, sem saber se o avião conseguiria recuperar altitude e sair daquele vale. Tivemos sorte mas ainda hoje fecho os olhos e vejo a montanha alpina erguer-se a meu lado e nós pouco acima das aldeias no vale, as bagageiras abertas, malas no chão, gritos, confusão e os motores a todo o gás.