Conversas pandémicas XXIX

Conversas pandémicas XXIX – “Há tempos de usar de coruja e tempos de voar como o falcão.” (D. João II)
Numa rampa descendente, com travões frágeis, só resta a acção.
1. Ponto de situação da evolução da pandemia
Todos aqueles que têm acompanhado estas modestas conversas, decerto não estão surpreendidos com a evolução da Pandemia, quer a nível mundial, quer a nível nacional. Façamos um ponto de situação, actualizado.
Portugal vem apresentando uma taxa de incidência crescente, sendo que, neste momento, há em Portugal mais novos casos (proporcionalmente) de COVID19 do que na Alemanha, mas também do que nos (tão mal-afamados) Brasil e EUA.
Os números são o que são, e não os podemos negar. Nem o facto de a nossa incidência ser ligeiramente inferior à do Reino Unido nos deve servir de consolo.
Espanha, a braços com uma incidência cada vez maior – há meses – parece agora ser uma espécie de previsão para o futuro da evolução em Portugal, com cerca de 10 a 20 dias de antecedência.
“É uma inevitabilidade!”, gritam os epidemiologistas de bancada. Atentemos num outro gráfico que vos trago: Portugal e Espanha versus Irlanda, Islândia, Formosa, Japão, Singapura e Coreia do Sul.
Mesmo a Irlanda e a Islândia (que há bem pouco tempo esteve a braços com surtos descontrolados) inverteram a curva. A oriente, e é apenas do oriente democrático que aqui falo, a pandemia está controlada, com valores de incidência residuais. Há cerca de 2 meses expliquei aqui as medidas que cada um destes países adoptou.
2. Portugal, num caminho muito perigoso.
A “gripezinha”, como infelizmente alguns lhe chamam, leva pessoas ao internamento. Cada vez mais pessoas. Mesmo levando em linha de conta que temos agora critérios de internamento totalmente diferentes de Março/Abril (altura da 1ª vaga) os internamentos por COVID19 ultrapassaram substancialmente os de então. A ocupação dos Cuidados Intensivos está aos níveis de então. Cerca de 50% da capacidade total.
Nunca esquecendo que todas as outras doenças continuam a existir, a carecer de internamento, e em muitas circunstâncias de Cuidados Intensivos. No fim da linha, quando nada mais resulta, temos a morte. E, essa, indicador objectivo, não cessa de aumentar.
3. O Rt vai alto, é bom de ver.
Já aqui falei avidamente do Rt. Mas, recapitulemos. O Rt, ou o número reprodutivo efectivo em tempo real diz-nos a taxa de transmissão real de um vírus, num determinado momento, t. Ou seja, numa determinada população, num determinado momento, quantas outras pessoas contrairão a doença a partir de uma única pessoa infectada.
A chanceler Merkel explicou, brilhantemente, este conceito em Abril: disse que o Rt na Alemanha estava então num valor à volta de 1, o que significa que, em média, uma pessoa com o vírus infecta outra pessoa.
1 é o limite crítico: abaixo de um, a epidemia gradualmente desaparece. Acima de um, ela vai crescer, possivelmente exponencialmente.
Merkel então explicou (em Abril) o que significaria se o Rt da Alemanha subisse para 1,1: “Se chegarmos ao ponto em que todos infectam 1,1 pessoas, em Outubro (ou seja 6 meses depois) atingiremos o nível de capacidade do nosso sistema de saúde, com o nível assumido de camas para cuidados intensivos”, disse ela.
E se subir ainda mais, para 1,2, “a população infectará 20% mais.”
20% é um número abstrato, e difícil de entender para o cidadão médio. Merkel, por isso, explicou a percentagem de forma mais concreta: “Em cinco pessoas, uma infecta duas e as demais, uma”. Nesse ritmo, o sistema de saúde da Alemanha atingirá o seu limite em Julho (ou seja 3 meses depois).
Com um Rt de 1,3, o sistema de saúde atinge o seu limite máximo em Junho (ou seja, 2 meses depois).
“Percebeis a pouca margem de manobra que temos…?”, disse Merkel. Chanceler da Alemanha. Em Abril.
Ora, como sabemos, nós não somos a Alemanha. Nós não estamos em Abril. E, já agora, Merkel não é nossa Chanceler. E, por fim, o nosso Rt anda no 1,2.
4. Regiões de Portugal diferentes, estratégias diferentes.
Somos um país com muitas realidades. Apesar de um pequeno país.
Nos últimos dias a comunicação social fala no “Norte” como área critica da pandemia. Mas, o próprio “norte” encerra várias realidades. Veja-se só este exemplo: Gaia e Braga e a área limítrofe de Lisboa.
Mas, acrescentemos Paços de Ferreira e Lousada.
5. Resulta claro que cada realidade exige uma intervenção diferente.
Retomando a célebre intervenção da chanceler Merkel de Abril, na altura ela esboçou planos para o país diminuir lentamente as suas medidas de confinamento, depois de ter alcançado o que ela chamou de “sucesso intermediário frágil”, na luta contra a Covid-19. As etapas, de então em diante, teriam que ser graduais, para que não houvesse ressurgimento de casos.
O reiniciar das economias após semanas de paralisações, levou muitos epidemiologistas a recomendarem uma estratégia de múltiplos ciclos de “supressão e elevação”. O “martelo e dança”, de que falei há umas crónicas atrás. A ideia é relaxar nas medidas quando o crescimento de casos cair o suficiente, mas apertá-las novamente quando as infecções começarem a espalhar-se novamente. Hong Kong e Singapura, por exemplo adoptaram esta estratégia.
No centro desta estratégia está o Rt. Que varia dentro de cada uma das regiões de Portugal, e, que necessariamente é diferente na Região Autónoma dos Açores.
Depois, uma política de testagem agressiva, recorrendo em boa medida aos testes de Antigénio que já existem, para procura de casos, seguida do isolamento dos mesmos, para quebrar cadeias de transmissão, precocemente.
Haja Organismos de Saúde Pública locais, com os recursos adequados, que façam essa monitorização, e ajudem os decisores na tomada das melhores decisões, para a Região, e para a população. Incluindo a importante variável económica. Não há felicidade num povo com fome.
PS: O que está a acontecer com a disponibilidade da vacina anti-gripe em Portugal e nos Açores? Porque não foram montadas criadas soluções para maior acessibilidade à mesma, como tendas de campanha para acções de campanha maciças, mas antes se levam os cidadãos ao desespero na procura de uma “vaga para ser vacinado”, a estar em filas, e a um sofrimento absolutamente desnecessário e evitável…?
Mario Freitas
Médico consultor (graduado) em Saúde Pública e Delegado de Saúde
(Diário dos Açores de 30/10/2020) — with

Mario Freitas

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