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Uma nova realidade estratégica (e tecnológica), que envolve EUA, China e Rússia numa disputa pelo controlo do espaço geoestratégico dos Açores e do Atlântico em geral, reacende no pensamento militar norte-americano um debate sobre a importância da Base das Lajes enquanto ativo “essencial”. Depois de um downsizing (2015) que nunca foi bem aceite pelos militares, a base é agora equacionada como principal infraestrutura dos EUA na Europa num horizonte até 2050.
DOWNSIZING CONTESTADO
Temos assistido, nos ainda poucos anos da segunda década do século XXI, à transposição para a esfera pública de um debate sobre a Base das Lajes, que vinha ocorrendo em ambientes de pensamento estratégico norte-americanos, militares e civis, mais ou menos fechados, desde que os EUA decidiram, no início da primeira década deste século, reorganizar as suas forças na Europa, impondo na base da ilha Terceira, nos Açores, um downsizing significativo, passando de 900 para 400 trabalhadores portugueses e de 650 para 165 militares norte-americanos (poupando assim 35 milhões de dólares por ano). A reorganização da Base das Lajes, que deveria ter ocorrido nos anos 2012/2013, acabou por ser adiada para 2015/2016, face a questões de natureza estratégica levantadas no Congresso (mas também relacionadas com o impacto económico da redução na comunidade local). Na origem da decisão, que acabou por avançar, de reduzir a presença nas Lajes, como na base da reorganização geral das forças dos EUA nos chamados cenários overseas e em especial na Europa, estiveram três questões centrais: dificuldades orçamentais, assunção de que a Rússia já não constituiria um perigo ou sequer desafio, e fixação no cenário indo-pacífico com o fito em contrabalançar nessa zona o poder chinês em ascensão.
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O debate, que admitia ser insignificante uma poupança de 35 milhões de dólares anuais, face à importância do ativo estratégico em causa, sempre se centrou na redução drástica de efetivos militares e civis, que poria em causa a prontidão e a capacidade de resposta face a operações de maior exigência; na passagem da operação de 24 horas por dia, sete dias por semana, para apenas oito horas por dia, e na continuação do encerramento das operações de busca e caça a submarinos (ASW – Anti-Submarine Warfare) que tinham funcionado na Guerra Fria e até 1994 com aviões P-3 Orion, sendo abandonadas com o pretexto de que os submarinos russos já não constituiriam uma ameaça credível no Atlântico. A redução de pessoal foi mitigada com o recurso a ativos treinados para operar em qualquer base e concentrados sobretudo em bases nos EUA, sendo projectados antes do início de uma operação significativa. A solução nunca foi, porém, considerada satisfatória. A redução das horas de operação foi sendo resolvida caso a caso, o que também nunca foi considerado a melhor solução. O encerramento das operações ASW arrastou-se até 2018, quando os novos aviões norte-americanos de busca e caça a submarinos P-8 Poseidon realizaram treinos de adaptação à pista das Lajes, iniciando as operações efetivas em 2019 (embora se conheçam operações esporádicas antes de 2018). A inexistência de operações ASW a partir da Base das Lajes foi sempre considerada crítica sobretudo por analistas da US Navy. Citado por Littleton (2022), o almirante James Foggo III, comandante das US Naval Forces Europe-Africa entre 2017 e 2020, assume que está em curso aquilo a que chama a 4.ª Batalha do Atlântico, com a Rússia a projetar submarinos no Atlântico e a China à procura de influência na zona. Só em 2019, quando os P-8 iniciam operações ASW regulares a partir das Lajes, são detetados dez submarinos russos em simultâneo. A situação na zona é de tal ordem que o general Joseph Dunford, hoje retirado, antigo chairman do Joint Chiefs of Staff (2015-2019), chega a afirmar que a decisão de retirar o foco da Europa pode levar à incapacidade de mover forças através do Atlântico (Littleton, 2022).
DEBATE PÚBLICO
A discussão pública à volta da importância da Base das Lajes para os EUA, enquanto potência que domina e quer continuar a dominar o Atlântico, está ativa nos anos mais recentes e com particular incidência na atualidade, por iniciativa de militares norte-americanos e da própria comunicação social militar (cf. kaiserslauternamerican.com e fazer pesquisa online pela palavra “azores”) que serve as bases norte-americanas na Europa, em especial na Alemanha, mas também ocorre ao nível científico, por exemplo através de estudos publicados por instituições de ensino militar (Littleton, 2022) e outras (Kochis, 2020), destacando-se o referido estudo do até há poucas semanas 2.º comandante da Base das Lajes, Shawn D. Littleton, publicado pela Air University e largamente divulgado pelo jornal Kaiserslautern American (edição de 21.04.2023) em artigo do próprio Littleton. O autor concedeu, aliás, sobre o assunto, uma entrevista ao Diário de Notícias (06.06.2023). Este aparato comunicacional, que implícita e por vezes explicitamente, critica o downsizing que afetou a base em 2015/2016, converge numa alegada nova realidade estratégica com impacto no chamado espaço geoestratégico dos Açores, onde os interesses norte-americanos estarão a ser contestados num ambiente de competição já muito significativo e que previsivelmente se agravará de forma exponencial, envolvendo a Rússia e a China. Note-se que o debate, por iniciativa norte-americana, que se instalou no domínio público à volta do espaço geoestratégico dos Açores e em especial sobre os papéis da Base das Lajes, dificilmente poderia acontecer se não fosse do interesse do U.S. European Com- mand, sedeado na Bbase de Ramstein, na Alemanha, onde se integra a redação do jornal Kaiserslautern American. O mesmo é válido para o U.S. Department of Defense e para a U.S. Air Force face aos trabalhos tornados públicos pela Air University (embora a liberdade científica seja reconhecida aos militares norte-americanos em ambiente académico). Será legítimo, assim, concluir que há no âmbito do poder militar norte-americano um empenho significativo em tirar todo o partido possível da base terceirense no âmbito da competição estratégica em curso. É o próprio Kaiserslautern American que assume em reportagem (28.10.2022) a divulgação de informações que valorizam as Lajes para além da tradicional projeção de força, lembrando, o que é pouco conhecido, que a base controla o sistema de comunicação de ondas curtas de longo alcance para a missão de Comando, Controlo e Comunicações Nucleares da Força Aérea, auxilia na retransmissão de comunicações que dá cobertura através de satélite ao Mid-Atlantic Gap, prote- gendo e ampliando o alcance operacional para EUA e países aliados, além de armazenar cerca de metade (48 por cento) da capacidade de combustível que a US Air Force mantém na Europa.
CONSTRUIR UMA NOVA VISÃO
Todas as oportunidades são aproveitadas pelos militares norte-americanos para chamarem a atenção para a importância da Base das Lajes, narrativa que pode estar ligada à definição, que se sabe estar em curso, de uma visão para as bases de Lajes e Móron (Espanha), que estão sob a mesma liderança do comando sedeado na Ilha Terceira, para vigorar até 2030. Ao concluir a missão de comandante das Lajes, dia 10 deste mês de agosto, o coronel Brian Hardeman deixou bem claro o seu entendimento de que seria “trágico” se tudo ficasse como está. “Temos de avançar nestes dias de competição estratégica para tornar as Lajes e Móron no que devem ser”. O oficial norte-americano aproveitou a cerimónia de mudança de comando para deixar clara a sua visão sobre a base açoriana, numa altura em que, no seu entendimento, o espaço dos Açores é “de interesse primordial para a China”, conforme reporta o jornal Diário Insular (12.08.2023). Os norte-americanos registam nas suas intervenções visitas à Ilha Terceira do presidente chinês e de dois primeiros-ministros, desde 2012, quando foi anunciado o downsizing nas Lajes e tomaram nota dos acordos assinados entre Portugal e a China, no final de 2018, quando o presidente chinês, Xi Jinping, visitou Lisboa e que implicam os mares açorianos, tal como não esqueceram que em 2016, na primeira visita que fez à China enquanto Primeiro-Ministro de Portugal, António Costa admitiu que a Base das Lajes não estaria interdita aos chineses, no caso de os EUA não renovarem o acordo de exclusividade, mas apenas para fins científicos e não militares. Já neste ano de 2023, o embaixador da China em Lisboa alarmou a comunidade local norte-americana com uma visita aos Açores na qual propôs a criação de uma escola de mandarim, iniciativas de divulgação local da cultura chinesa, projetos de aquicultura, o reforço da exportação de produtos lácteos açorianos e a cooperação ao nível do turismo (DI, 07.04.2023).
A capacidade demonstrada pela Rússia para invadir a Ucrânia e para entrar com submarinos do espaço do Atlântico Norte parece ter despertado o pensamento estratégico norte-americano para a necessidade de precaver os meios, o que leva Hardeman a afirmar que as duas bases até há poucos dias sob o seu comando, além de serem plataformas estratégicas de projeção de poder, tornam possível aos bombardeiros e caças permanecerem fora da área de ameaça russa, mas suficientemente perto para apoiarem a iniciativa de dissuasão europeia e a operação no Médio Oriente. Na prática, esta visão aproxima a Base das Lajes de uma base de ataque, com bombardeiros e caças partindo de uma posição segura e certamente apoiados por reabastecedores. Hardeman avisa que a China continua a expandir-se para a África e para a região do Atlântico, enquanto a Rússia se assume como “uma ameaça desestabilizadora”. Está assim ultrapassado o discurso de desvalorização das capacidades da Rússia e de remissão da China para uma potência regional, admitindo-se que os dois poderes convirjam com os EUA numa disputa estratégica também no Atlântico.
Na já referida entrevista ao Diário de Notícias, a propósito dos seus estudos académicos sobre o espaço geoestratégico dos Açores, Littleton, à altura ainda 2.º comandante das Lajes, disse que a infraestrutura terceirense será a base mais importante para os EUA na Europa nos próximos 20 a 50 anos. O oficial acredita que a China terá nas próximas décadas presença nas costas atlânticas da África e da América do Sul, mas adverte que para controlar o meio do Atlântico a China terá de desenvolver investimentos “dramaticamente desproporcionados”, enquanto tal controlo pode ser feito pelos EUA a partir dos Açores apenas com “investimentos modestos”. Littleton considera mesmo que a Base das Lajes, pela sua localização geográfica, é “essencial” para garantir a segurança do Atlântico enquanto bem comum e no âmbito de regras internacionais aceites por países como os EUA e Portugal. Aliás, no já referido trabalho científico realizado no âmbito da Air University, Littleton aconselha os EUA a manterem-se nos Açores e de preferência em exclusivo, ao mesmo tempo que adverte que mudanças tecnológicas nos transportes, em especial marítimos, indicam que os Açores poderão regressar ao tempo das escalas técnicas, sendo, em qualquer caso, uma zona decisiva para o controlo militar (segurança) de rotas comerciais, tal como de cabos submarinos. A defesa de zona é também avançada em forma de aviso, face a novas armas em desenvolvimento e que representarão ameaças para aviões e navios. Este estudo assemelha-se a notas para a visão em construção para os papéis das Lajes até 2030. A valorização da Base das Lajes é também assumida, fora da esfera militar, por Kochis (2020), para quem a importância das Lajes em termos estratégicos é contínua, sendo os Açores um “investimento sábio” para os EUA num horizonte de 20 a 30 anos. O autor considera mesmo que a Base das Lajes é “um dos postos avançados” dos EUA e constitui “o fulcro das relações bilaterais EUA-Portugal”.
GATO ESCALDADO
Políticos de topo e académicos açorianos sempre consideraram que o Acordo das Lajes de 1995, com uma validade de cinco anos, mas ainda em vigor por prorrogação anual automática enquanto não for denunciado por uma das partes, é mau para Portugal e para os Açores em particular, o que se ficará a dever a má interpretação portuguesa da realidade estratégica aquando das negociações, que ocorreram entre 1991 e 1995. Ou seja, Portugal não terá percebido a importância da Base das Lajes para os EUA nos cenários pós-Guerra Fria (Mendes, 2018). Antevendo novas realidades estratégicas e oportunidades para valorizar ativos, entre os quais as Lajes, o Parlamento Açoriano criou já no ano em curso o Conselho para o Estudo das Potencialidades Geopolíticas e Geoestratégicas dos Açores (G2A, 2023), visando a construção de conhecimento sobre os ativos geoestratégicos próprios e as realidades geopolíticos em que a Região se insere e a operacionalização desse conhecimento no âmbito da decisão política e na negociação, procurando contrapartidas que possam ser consideradas justas.
É interessante notar que documentos preparatórios do G2A convergem no essencial na visão agora tornada pública por responsáveis militares norte-americanos face ao espaço geoestratégico dos Açores. É prevista uma disputa do espaço num futuro não muito distante, envolvendo a China e os EUA, mas também a Rússia, sobretudo face à capacidade de penetração de uma nova classe de submarinos oceânicos de ataque (G2A, 2023). Prevendo essa disputa estratégica, os Açores procuram conhecer, para tirar partido de eventuais futuros acordos.