o povo não foi convidado para os 45 anos da autonomia

O POVO NA RUA
Há poucos minutos (pelas 18 horas) iniciou-se no Amor da Pátria uma sessão, integrada no programa comemorativo dos 45 anos da Assembleia Regional dos Açores (assim designada no princípio), onde estão a ser encenados os discursos proferidos no dia da inauguração solene do parlamento açoriano.
Logo que conheci a notícia deste acontecimento fiquei muito curioso e achei bastante interessante.
Lembro-me (tinha 14 anos) do aglomerado de pessoas em frente ao Amor da Pátria quando chegou o Presidente da República, general Ramalho Eanes, neste dia, no ano de 1976, para presidir à sessão solene inaugural em que pela primeira vez se reuniam os deputados eleitos, após a instalação da assembleia. Fiquei cá fora, com vontade de entrar, mas sabia eu lá se era possível…
Nos tempos seguintes fui um assíduo frequentador do salão do Amor da Pátria, onde se realizaram os plenários parlamentares: morava ao pé e o gosto pela política começava a despertar. Fixei alguns olhares perplexos de certos deputados ao verem um rapazinho por ali. O Dr. Mota Amaral cumprimentava-me com o leve sorriso que todos lhe conhecem e um ligeiro aceno da cabeça e eu consertava-me na cadeira orgulhoso. Éramos do mesmo partido!
Ficou-me na memória, entre outras coisas, uma “brega” entre ele e a deputada Conceição Bettencourt, do PS, eleita por Santa Maria, quando ela o acusou de ter raciocínios maquiavélicos, ao que o presidente do governo respondeu que Maquiavel é que produzira pensamentos “bettencourticos”.
Apaixonei-me pela atividade parlamentar por causa deste despiques, em que a oratória chegava a ser brilhante através do desempenho de Alberto Romão, Martins Goulart, Alvarino Pinheiro e outros. Álvaro Monjardino, a quem cabia presidir, pela impressão que deixava na condução dos trabalhos, impunha-se também como grande figura.
A azáfama jornalística, quando também comecei a despertar para a comunicação social, era outro motivo que me levava ao Amor da Pátria.
Por tudo isto, liguei a quem de direito, na manhã de hoje, a perguntar se a sessão seria aberta ao público. Resposta negativa, pois a pandemia ainda dita as suas regras. Conformei-me, como é óbvio. Mas tenho imensa pena de não poder assistir à recriação dos discursos de há 45 anos.
A sala vai estar composta, na sua maioria, pelas individualidades que participaram na sessão solene que hoje de manhã decorreu na sede do parlamento, em que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, pontificou.
Deixo uma pergunta: será possível repetir esta evocação da sessão solene inaugural da Assembleia Regional dos Açores, abrindo-a, com as devidas regras sanitárias, ao povo?
Provoca-me alguma estranheza que estas solenidades, apesar da ora tão propalada democratização da vida política açoriana resultante da abertura do espectro partidário à governação e ao parlamento, continuem tão restritas, pomposas, enfatuadas, elitistas e formalistas — quando fui chefe de gabinete do presidente da Assembleia tive que lidar com um deputado da Assembleia da República que se negou a sentar-se na cadeira que lhe fora atribuída por discordar da precedência protocolar: vou almoçar ao Peter, disse-me ele, recusando também o repasto organizado para depois da sessão em causa.
Durante a manhã discursou-se no parlamento até dizer chega (e o Chega também!). Perto de uma dezena de discursos! A quem se dirigiriam? Tal enxurrada de palavreado não foi, certamente, dirigida ao povo. Falaram para si.
Sei que é preciso pensar, discutir e debater, refletir e decidir, para que a Autonomia responda, cada vez mais, aos anseios dos açorianos. Mas, numa sala tão grande como a do Amor da Pátria, não haveria um cantinho para o povo, que, afinal, é a razão de ser de tudo isto? As tais individualidades não cederam nenhuma das suas cadeiras.
Já amanhã, vamos ver os políticos (incluindo eu) atrás do povo a pedir o voto, um dia depois de, mais uma vez, terem deixado o povo na rua!