Views: 4
José Soares
Filho de mãe incógnita
Uma das tropelias anómalas de Salazar, conjuntamente com o cardeal Cerejeira – seu inseparável companheiro de seminário – era considerar no código civil português uma situação bastante singular e muito usada na idade média, mas de forma diferente.
Como o divórcio estava proibido em Portugal “…em 1940 foi assinada a Concordata entre Portugal e a Santa Sé que proibiu o divórcio para todos os casamentos católicos que viessem a ser celebrados no futuro, o que se traduziu num retrocesso civilizacional, uma vez que a esmagadora maioria dos casamentos celebrados em Portugal obedeciam aos cânones da Igreja Católica… a situação apenas viria a ser alterada na sequência da Revolução do 25 de abril de 1974” (Diário da República, divórcio).
Desta inquisição político-religiosa, nasceram autênticas aberrações jurídicas nos registos que ainda hoje se podem consultar.
Em vez do divórcio, passou a chamar-se a essa nova situação “separação legal”. No entanto, o ex-casal não poderia voltar a casar, pelos que os filhos que tivesse noutras posteriores relações, seriam bastardos com o nome de “filho de pai [ou mãe] incógnita”. A situação era tão ridícula, que a própria igreja católica chegou a repensar o assunto, mas o fanático Cerejeira, que foi uma espécie de Tomás de Torquemada do século XX em Portugal, insistiu que se devia prosseguir com tal sistema inquisitorial.
Embora as anomalias persistissem em ambos os casos, convenhamos que ‘filho de pai incógnito’ ainda se pode tentar definir ou compreender, pelo facto de uma progenitora poder ter relações com vários homens. Mas ‘filho(a) de mãe incógnita’ – essa não lembra nem ao diabo. Alguém tem de sair do útero de alguém. Como diria meu avô:
“Os filhos da minha filha, meus netos são; Os do meu filho, serão ou não.”
Esta situação terá provocado milhares e milhares de bastardos em Portugal. Depois de 1974 e tanto quanto foi possível, foram anuladas todas as situações conhecidas, declaradas ou denunciadas junto dos registos civis.
Por outro lado, o salazarismo exaltava heróis nacionais que eram bastardos.
El-rei D. João I, o Mestre de Avis e pai da “Ínclita Geração” camoniana, era filho bastardo d’El-rei D. Pedro I e de uma das suas amantes, Teresa Lourenço.
O que é verdade é que, de uma “cópula ordinária ou coito vulgar” (como se dizia à época), vingaria em Lisboa, em São João da Praça (onde residiam os comerciantes lisboetas), a 11 de Abril de 1357 um «…filho natural a que deram o nome de João e que, não podendo ser criado na Corte por ser bastardo, foi confiado a Lourenço Martins, o da Praça, seu avô, a fim de o criar. Poucos anos depois, João foi feito Mestre de Avis, a pedido do galego D. Nuno Freire de Andrade, o então mestre da Ordem de Cristo. E esse mesmo João veio a ascender ao trono durante a Crise de 1383-1385, sob o nome de D. João I.» (Livro da Chancelaria de D. Pedro I / 1987, José Carlos Soares Machado).
E para só dar aqui dois dos inúmeros exemplos históricos sobre o assunto, o segundo será D. Nuno Alvares Pereira, o Condestável – e amigo íntimo de D. João I. Era filho natural de Álvaro Gonçalves Pereira, Prior da Ordem do Hospital ou Malta e neto de Gonçalo Gonçalves Pereira, Arcebispo de Braga. Era, portanto, neto de um arcebispo. A mãe de Nun’Álvares, Iria Gonçalves do Carvalhal, foi uma concubina de seu pai.
Salazar e o seu consórcio religioso, cardeal Cerejeira, criaram, com os seus extremos e ortodoxias, uma confusão geracional que ainda tem repercussões nos dias de hoje, embora em fase de velhice de vida de milhares dos seus interpretes.
Após o 25 de Abril, a Lei mudou. É proibido o registo de ‘filhos de pais incógnitos’. O Ministério Público é obrigado a desencadear processo de averiguação oficiosa da paternidade.