genial lobo antunes

Views: 0

May be a black-and-white image of 1 person
“Tenho muita pena que tenham acabado, por motivos que me parecem, no mínimo, discutíveis, com o Hospital Miguel Bombarda, onde três gerações da minha família trabalharam, o meu tio avô, o meu pai e eu.
O meu pai falava sempre de um pintor e gravador francês, pelo qual parecia ter grande respeito, aí internado não sei com que diagnóstico. Ao referir-se a ele o meu pai dizia sempre Monsieur Anatole
(nunca lhe escutei o apelido)
e recordo-me de nos dizer que, ao perguntar ao Monsieur Anatole se tinha filhos, recebeu como resposta
– Non monsieur, je ne fabrique pas des cadavres
frase que o deve ter impressionado imenso porque o escutei repeti-la ao longo dos anos, pensativo, a moê-la. Volta e meia, num silêncio qualquer, lá vinha ela
– Non monsieur, je ne fabrique pas des cadavres
como vinham as velhotas grávidas do Menino Jesus, a tricotarem casaquinhos de lã para os invernos da Divina Criança, vários Salazares, vários reis de diversas épocas, o dono do casino de Montecarlo, o dono da Fundação Gulbenkian, o dono de todos os clubes de futebol de Portugal, quase todos eles com o delírio da grandeza típico da sífilis, que começava a perder poder com injeções de penicilina. Pergunto-me o que aconteceria se a aplicássemos a cardeais, ministros, gestores, outras criaturas do género. Voltariam a ser os pobres diabos que eram antes ou continuariam a delirar patetices? Dias depois do 25 de Abril eu estava de serviço na Urgência, em plena febre revolucionária, era de noite, havia um silêncio relativo porque, não sei porquê, faltavam os bêbedos e os sujeitos com over dose do costume e começo a ouvir uma voz em berros enormes
– Viva a União Nacional!
– Viva o professor Marcelo Caetano!
– Viva a polícia política!
e outros gritos no género, do outro lado da porta, que se iam aproximando com frases deste tipo, numa barulheira feroz. Pensei
– Se calhar houve uma contra-revolução
pensei
– Se calhar o 25 de Abril acabou
e estava a moer estes pensamentos negros quando a porta se abriu, e o sujeito dos Vivas entrou. Vinha de camisola de forças, entre dois sujeitos de bata, clamando sem descanso. Com o auxílio de umas injeções foi aceitando devagarinho a democracia. Não há como umas ampolas para tratar ditaduras. Qual o motivo de não se haverem lembrado há mais tempo? O que se teria poupado em guerras, tiros, mortos a dar com um pau, coisas horríveis? E o que há por aí de banqueiros, primeiros ministros, ministros, administradores de empresas, etc., a necessitarem de uma picadelazinha, que nem sequer dói muito e os tornaria normais? De que é que estão à espera para fazer de Portugal um país com pessoas de carácter, quando um enfermeiro e uma seringa chegam?”
Antonio Lobo Antunes
Força e grandeza do escritor cuja linguagem, barroca e fluida como o Tejo, carrega todas as visões do mundo e varre a racionalidade que funda ditaduras.
1 comment
Like

Comment
Share
  • Like

Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
Esta entrada foi publicada em HUMOR Humour. ligação permanente.