Cabinda ainda dependente. A BATALHA DE NTÓ EM CABINDA

Angola: A BATALHA DE NTÓ EM CABINDA

Posted: 29 Dec 2014 07:11 AM PST

Arcângela Rodrigues e Artur Queiroz – Jornal de Angola

A Batalha do Ntó foi decisiva no caminho que conduziu Angola à Independência Nacional. Tropas do Exército de Mobutu e mercenários de várias nacionalidades, sobretudo franceses, no dia 8 de Novembro de 1975 invadiram o então distrito de Cabinda com o objectivo de tomar a capital e colocar no poder elementos da FLEC, que acompanhavam os invasores estrangeiros.

Se as FAPLA não tivessem resistido heroicamente, hoje os “intelectuais cabindas” que reivindicam a independência, nada tinham para reivindicar: não existiam ou eram zairenses e súbditos de Mobutu. A ordem de operações era clara: o ditador de Kinshasa queria alargar o Baixo Congo, anexando a província angolana.

No dia 8 de Novembro de 1975 a responsabilidade de garantir a integridade territorial era da potência colonial, Portugal. Mas o pequeno destacamento militar português que ainda restava, acantonado na cidade de Cabinda, pouco ou nada podia fazer. As FAPLA assumiram as suas responsabilidades, com o apoio inestimável de um punhado de militares cubanos, entre os quais, o mítico general Moracén (Quita Fuzil).

A verdade histórica

Em 1783, os portugueses ocuparam militarmente o território que hoje faz parte de Cabinda, à época muito maior e com continuidade geográfica com o Norte da então colónia de Angola.

A força de ocupação era comandada pelo coronel Pedro Álvares de Andrade, um fanático da disciplina e organização militar, discípulo do marechal general conde de Lipe, fundador do moderno Exército português.

Na cidade, o coronel mandou erguer um forte e num tempo recorde nasceu a Praça Militar de Cabinda. No dia 7 de Novembro de 1783 – 192 anos antes da Batalha do Ntó e da Independência Nacional –, o coronel Álvares de Andrade assinava a primeira “Ordem de Serviço”, no Quartel de Santa Maria de Cabinda. No dia 21, novas instruções aos oficiais da guarnição.

O oficial do Exército Português fazia parte de um Triunvirato que governava Angola, por morte do governador e capitão general, José Gonçalo da Câmara, falecido em Luanda a 19 de Dezembro de 1782. Os outros dois eram o bispo D. Frei Luís da Anunciação e Azevedo e o ouvidor Francisco Xavier Lobão Machado Pessanha.

O coronel Pedro Álvares de Andrade regressou ao palácio do Governo, em Luanda, no fim de Dezembro de 1783 e redigiu um manuscrito, assinado pelo seu punho e com a seguinte data: “Quartel de São Paulo da Asumpção, 10 de Janeiro de 1974”. No documento histórico, descreve todas as medidas que tomou e revela quem deixou a comandar as forças em Cabinda: o coronel engenheiro Luís Cândido Pinheiro Cordeiro Furtado.

O manuscrito fez parte, durante muitos anos, da biblioteca particular do Duque de Lafões. Mário António Fernandes de Oliveira, o grande sociólogo e poeta angolano Mário António, deu-o à estampa na obra monumental “Angolana”, publicada pelo Instituto de Investigação Científica de Angola, de Luanda, e pelo Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, de Lisboa.

Homens da linha da frente

O general Pedro Sebastião, em Novembro de 1975 era comandante de esquadrão das FAPLA e nessa qualidade esteve na primeira linha na Batalha do Ntó. Os comandantes da região já faleceram. Zacarias Pinto “Bolingô” era o chefe do Estado-Maior da II Região (Cabinda). Eurico Gonçalves “China”, o comissário político. O comandante Pedro Benga Lima “Foguetão” chefiava as operações e Delfim de Castro as informações.

As comunicações estavam sob a responsabilidade de Evaristo Kimba, alto dirigente do MPLA. O comandante dos comandantes era Pedro Maria Tonha “Pedalé”, na época membro do bureau político do MPLA. O comandante Margoso comandava uma unidade das FAPLA que defendia o aeroporto da cidade. À frente das tropas na primeira linha do Ntó esteve o comandante Max Merengue.

O ministro da Administração do Território, Bornito de Sousa, na época um jovem comissário político, considera que “o nosso triunfo permitiu uma independência inteira. Se perdêssemos, a soberania nacional ficava amputada. Eu costumo dizer que a Batalha de Ntó é, sobretudo, a Grande Batalha de Cabinda. Até porque os combates duraram 96 horas e desenrolaram-se em várias zonas da província”.

Jornalistas argentinos

O general Pedro Sebastião continua as suas revelações: “Nós tínhamos uma organização guerrilheira e sabíamos que Mobutu ia invadir Cabinda com o seu Exército reforçado com mercenários e com os militares das Tropas Especiais que combatiam ao lado da PIDE/DGS. Precisávamos de reforços. Em finais de Setembro chegaram a Cabinda os primeiros combatentes cubanos, comandados por Ramón Espinoza Martin. Vinham também Vasquez e Moracén, combatentes experimentados. Chegaram a Cabinda disfarçados de jornalistas argentinos”.

Poucos dias depois, foi feito um trabalho de reconhecimento: “acompanhei os comandantes Bolingô e Delfim de Castro nessas acções de reconhecimento ao Ntó, Yema e Yabi. Mas também no Leste, Tchobo, Chimbunde e Tchingando”. O serviço de informações militares soube que os zairenses e seus aliados chegaram a uma conclusão: o Ntó era indefensável. Por isso, era por ali que ia ser feita a invasão. O comando das FAPLA começou de imediato a preparar a defesa naquela imensa planície.

Retirada dos americanos

“No Malongo, os técnicos americanos da Cabinda Gulf tinham um aeródromo. Decidimos controlá-lo. Quando lá chegámos, demos conta que todos eles se tinham retirado, e deixaram as válvulas das condutas de petróleo abertas. Foi um desastre. A mancha de petróleo estava quase a chegar a Ponta Negra. Nós não percebíamos nada daquilo, mas ainda conseguimos fechar as válvulas”, diz o general Pedro Sebastião.

O tempo corria rapidamente e era preciso transformar uma organização guerrilheira numa força regular: “No dia 27 de Setembro chegaram mais dez cubanos, cinco foram para Lândana e outros cinco para o Dinge. Formámos à pressa dois batalhões com jovens de Cabinda e de Benguela, que chegaram cheios de vontade de defender a Pátria. Eles nunca tinham pegado numa arma e tivemos que fazer deles combatentes em pouco tempo”.

Bornito de Sousa já era guerrilheiro em Setembro de 1974, quando as forças do MPLA depuseram o governador português, Themudo Barata, que alguns dias antes, num comício da FLEC em Lândana, foi eleito presidente de honra da organização e trabalhava activamente com os enviados de Mobutu, para lhe entregar o então distrito: “o comandante Foguetão prendeu o governador e eu fiz parte do grupo que tomou a Estação dos Correios de Cabinda. Os funcionários perceberam logo que nós éramos pessoas de bem, apenas estávamos a defender a integridade da Pátria angolana. Quando o governador foi expulso pelo MFA para Portugal, voltou tudo à normalidade”.

Navio “La Plata”

Pedro Sebastião desfia as suas memórias da Batalha do Ntó, na qual participou na linha da frente: “Tínhamos que defender a cidade de Cabinda, custasse o que custasse. Quem dominasse a cidade, dominava a província. Ao mesmo tempo que preparávamos os jovens para os grandes combates, fomos recebendo material de guerra. Chegou tudo pelo porto de Ponta Negra, que jogou um papel fundamental na grande vitória militar que foi a Batalha do Ntó. O navio ‘La Plata’ trouxe-nos o material de guerra necessário. Descarregámos tudo, dia e noite, sem parar. Sabíamos que a invasão estava a ser preparada e ia acontecer antes do 11 de Novembro. Eles queriam impedir a proclamação da Independência Nacional”.

O comandante Espinoza transmitiu toda a sua experiência aos combatentes angolanos: “fizemos reconhecimentos com ele e foi sob a sua orientação que colocámos campos de minas na planície do Ntó, no Yabi, Chingundo, Chobo e Chinguanze”.

O louco e a montanha

Espinoza, Bolingô, Delfim e Eurico analisaram a situação e concluíram que os invasores iam atacar seguindo o eixo Yema, Ntó, Povo Grande e Cabinda. Era provável que outra coluna inimiga atacasse pela via Chingundo, Subantando e Cabinda. E era “muito provável” um desembarque com forças navais nas praias do Yabi ou em Lândana. Umaforça especial invasora tinha a incumbência de tomar o aeroporto de Cabinda.

Enquanto os heróis da Batalha do Ntó preparavam a defesa da integridade territorial de Angola, os que hoje falam de “independência” ou “segunda independência” estavam com os invasores ou em lado nenhum.

Os milhares de jovens que pegaram em armas para defender, na época, a província de Cabinda, não falam actualmente de independência. Um desses jovens, Zacarias Filipe Gomes, hoje brigadeiro na reserva, esteve na primeira linha da Batalha do Ntó. Sobre os defensores da independência da província, diz: “tenho pena desses oportunistas. Mas não lhes dou confiança. Na minha aldeia diz-se que quando um louco sobe a montanha só por subir, quem vai atrás dele, também é louco. Eu não quero ir atrás dessa gente que quer vender a nossa Pátria”.

Impossível recuar

Zacarias e o seu camarada Fuca, coronel na reserva, saíram da sua aldeia, Kingombungo, Miconje (Maiombe), e foram na altura para as bases do MPLA. Era um grupo de 30 jovens, chefiado por Emílio Muele. O brigadeiro Zacarias Gomes tinha 17 anos e António Luís Fuca, apenas 14. Passaram a vida a lutar pela soberania nacional e pela liberdade de África. Ambos combateram na Batalha do Ntó.

“O comando preparou as tropas para o pior cenário. Não podíamos recuar. Se perdêssemos a Batalha do Ntó, nunca mais recuperávamos. Por isso, acelerámos a instrução dos mancebos e transmitimos às tropas esta mensagem: temos de combater até ao último homem”, recorda o general Pedro Sebastião.

No Ntó foi preciso trabalhar dia e noite para cavar as trincheiras ao longo da estrada que vai para Tchindage.

Quando as trincheiras do Ntó ficaram concluídas e os campos foram minados, o primeiro batalhão das FAPLA foi tomar posições no terreno. O comandante era Max Merengue, Santos era o comissário político e Paulo o chefe do Estado-Maior. O segundo batalhão tinha à frente o comandante Inocêncio Yoba, o comissário político era João Afonso “Maiunga” e Bida era o chefe do Estado-Maior. O batalhão tomou posições em Lândana.

“No dia 8 de Novembro, o comandante Eurico Gonçalves deu ordens para se desencadearem as primeiras acções no leste da província, zona de Chimbunde. Durante a noite, forças do primeiro batalhão entraram em acção na zona de Subantando, onde já estava o comandante Pedalé a dirigir acções de guerrilha para retardar o avanço das tropas zairenses, os elementos dos Tropas Especiais e os mercenários. Houve combates em Talibeca”, dizem as memórias do general Pedro Sebastião.

Desembarque neutralizado

No dia 9 de Novembro, dois dias antes da Independência Nacional, houve uma tentativa de desembarque nas praias do Yabi. “O comandante Bolingô comandava as nossas forças. Quando o ‘Monacaxito’ começou a disparar no Morro do Chizo, os invasores recuaram”, recorda ainda o general Pedro Sebastião.

Mas a grande força começou a avançar na planície do Ntó: “eram mais de mil homens com blindados e peças de artilharia. Havia ordens para ninguém disparar sem o sinal. Quando eles entraram até posições ao nosso alcance, a cerca de 30 metros, começou o combate. Os invasores vinham em passeio. Tiveram centenas de baixas e foram derrotados. Tínhamos vencido a Batalha do Ntó e estava aberto o caminho para o Presidente Agostinho Neto proclamar a Independência Nacional no dia 11 de Novembro de 1975”.

No Ntó, a primeira companhia era comandada por Paizinho e o comissário político era Tabita. A companhia ficou no flanco esquerdo da linha de defesa. As forças do “golpe principal” eram comandadas por Nzola Messo. Buarque era o comissário político. No Yabi, estava Kiaku-K. Os invasores em Subantando foram travados pelo comandante cubano Vasquez. Espinoza fazia o vai e vem. Ao todo, os combates duraram 96 horas, entre Subantando e o Ntó.

Almoço no Maiombe

António Luís Fuca e Zacarias Gomes recordam que os comandantes das forças invasoras marcaram encontro no Hotel Maiombe, à hora do almoço. Mas nunca lá chegaram. Os patriotas angolanos defenderam a sua terra com unhas e dentes. Zairenses, mercenários, Tropas Especiais que combatiam ao lado dos colonialistas e os homens da FLEC morreram ou recuaram.

O coronel Fuca recorda-se de companheiros que estiveram na Batalha do Ntó: Max Merengue, Pedrito, Desejado, Isaac Dembe, “Dois Mil Pensamentos”, Tecassala e tantos outros, todos guerrilheiros da II Região que defenderam Cabinda de armas na mão. Os dois pertenciam ao “destacamento de avanço”. No Ntó, além de combater, o coronel Fuca aprendeu uma lição: “só somos dignos se soubermos amar a nossa Pátria”. O brigadeiro Zacarias Gomes acrescenta: “aquela foi a batalha do amor à Pátria”.

Mas os dois combatentes destacam um aspecto que nunca mais esqueceram. Os invasores traziam à frente mulheres a dançar. Os mais-velhos de Cabinda dizem que era feitiço. Mas essa artimanha também não pegou. Por isso, o coronel Fuca levanta os olhos ao céu e diz: “só Deus é que sabe como vencemos”.

O brigadeiro Zacarias Gomes prefere olhar para o futuro: “No Ntó defendemos a Pátria. Mas hoje estamos a passar à juventude uma carta-branca muito bonita. Os jovens já têm tudo, escolas, hospitais, espaços de desporto e lazer. No Ntó construímos um futuro promissor para o nosso povo”.

Guerrilheiros do Maiombe

O general Pedro Sebastião, o brigadeiro Zacarias Gomes e o coronel António Luís Fuca têm um passado em comum: foram guerrilheiros do MPLA (ainda não existiam FAPLA) em Cabinda.

O general Pedro Sebastião tem uma carreira militar brilhante. Foi ministro da Defesa e pertence às tropas especiais, onde serviu como paraquedista. Hoje é deputado.

Gomes e Fuca estão na reserva. Passaram toda a vida a combater em defesa da Pátria. Os “intelectuais” que falam da independência de Cabinda nunca estiveram nas trincheiras ao lado deles. Nem a defender a província, nem nada.

Bornito de Sousa foi comissário político na II Região durante a Batalha de Cabinda, como ele chama à Batalha do Ntó. Foi também o primeiro comissário político da Marinha de Guerra Angolana, em 1976. É general na reserva. Hoje desempenha o cargo de ministro da Administração do Território.

Bornito de Sousa tem uma ligação especial a Cabinda, a província que ele defendeu de armas na mão, na grande Batalha do Ntó, que marcou a Independência Nacional.

Foto: Rafael Taty, Cabinda