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“Vim a servir, não vim a comerciar ao Oriente”
LENDA DAS BARBAS DE DOM JOÃO DE CASTRO
Falar sobre as barbas de Dom João de Castro implica retroceder alguns séculos no tempo, para um contexto cultural que em dados aspectos nos poderá parecer significativamente estranho.
Dom João de Castro viveu na primeira metade do século XVI. Foram várias as suas aventuras dentro e fora do campo de batalha, até que numa dada altura se encontrou em Goa, na Índia, a tentar defender a cidade contra invasores.
Enquanto Vice-Rei da Índia, num determinado período da década de 1540 teve de resistir a uma série de investidas dos homens do Sultão de Cambaia (ou Guzarate). Numa dessas investidas à Fortaleza de Diu, numa armadilha às escondidas montada por uns quantos homens de forma isolada, deu-se o rebentamento de um baluarte. Tendo-se desmoronado a estrutura com a explosão, acabou essa por matar um dos filhos de D. João de Castro, que ali se encontrava enquanto soldado.
O Vice-Rei, ao saber da notícia, em vez de se fechar em casa como forma de luto, mandou repicar os sinos de todas as igrejas e, vestido galhardamente, saiu montado a cavalo dizendo que o seu filho não morrera mas que havia, isso sim, conquistado a palma [glória] de cavaleiro de forma valorosa.
Passado pouco tempo, chegou o fim do Verão e o cerco a Diu foi levantando pelos homens do Sultão. D. João de Castro teria de mandar reconstruir a Fortaleza para a mesma estar pronta quando chegasse o tempo quente e, com esse, novamente os homens do sultanato. Mas a penúria era o timbre que a ausência de moedas fazia vibrar.
Assim sendo, a 23 de Novembro de 1546 decidiu escrever uma carta para as pessoas mais importantes da cidade de Goa, pedindo-lhes um empréstimo para conseguir reconstruir esta fortaleza, que então estava quase completamente destruída. Escreveu por isso uma carta aos senhores mais poderosos de Goa, dizendo-lhes que embora governador do Reino de Portugal naquela parte do Império, não tinha dinheiro para reconstruir a Fortaleza e que precisava de o fazer para defesa de todos; não pedia que lhe dessem dinheiro mas que lho emprestassem. Para mostrar sua honra tentara arranjar o mais válido penhor: mandara desenterrar os ossos de seu filho recentemente falecido. Mas esses estavam num estado que não permitia que assim fossem enviados. Enviava-lhes por isso como penhor aquilo que mais de seu tinha e que demonstraria a veracidade das suas palavras e da sua vontade: enviava-lhes as suas próprias barbas.
A carta em questão merece ser citada aqui:
“Senhores Vereadores, Juízes e Povo da muito nobre e sempre leal cidade de Goa:
(…) Já agora me pareceo necessário não dissimular mais tempo, e dar-vos conta dos trabalhos em que fico, e pedir-vos ajuda para poder supprir, e remediar tamanhas cousas, como tenho entre as mãos; porque eu tenho a Fortaleza de Dio derribada até o cimento, sem se poder aproveitar hum só palmo de parede.
(…) Pelo que vos peço muito por mercê, que por quanto isto importa ao serviço del Rei Nosso Senhor, e por quanto cumpre a vossas honras, e lealdades, levardes avante vosso antigo costume, e grande virtude, que he acodirdes sempre ás estremas necessidades de Sua Alteza, como bons, e leaes vassallos seus, e pelo grande, e entranhavel amor, que a todos vos tenho, me queiraes emprestar vinte mil pardaos, os quaes vos prometto como Cavalleiro, e vos faço juramento dos Santos Evangelhos de vo-los mandar pagar antes de hum anno, posto que tenha, e me venhão de novo outras oppressões, e necessidades maiores, que das que ao presente estou cercado.
Eu mandei desenterrar D. Fernando meu filho, que os Mouros matarão nesta Fortaleza, peleijando por serviço de Deos, e dei Rei Nosso Senhor, para vos mandar empenhar os seus ossos, mas acharão-no de tal maneira, que não foi lícito ainda agora de o tirar da terra; pelo que me não ficou outro penhor, salvo as minhas próprias barbas, que vos aqui mando por Diogo Rodrigues de Azevedo; porque como já deveis ter sabido, eu não possuo ouro, nem prata, nem movel, nem cousa alguma de raiz, por onde vos possa segurar vossas fazendas, somente huma verdade secca, e breve, que me Nosso Senhor deo. Mas para que tenhais por mais certo vossos pagamentos, e não pareça a algumas pessoas, que por alguma maneira podem ficar sem elle como outras vezes aconteceo, vos mando aqui huma Provisão para o Thesoureiro de Goa, para que dos rendimentos dos Cavallos vos va pagando entregando toda a quantia que forem rendendo, até serdes pagos. E o modo que neste pagamento se deve ter o ordenareis lá com elle. (…)”
Na resposta à sua carta deram-lhe mais do que a necessária soma para a reconstrução da Fortaleza, enviando-lhe também de volta as suas barbas e dizendo-lhe que tão honrado penhor não seria necessário pelo amor que eles lhe tinham. A Fortaleza de Diu foi reconstruída e o Vice-Rei continuou a revelar os seus sucessos no viver e no resistir.
D. João de Castro chegou ao fim de seus dias ainda na Índia e na maior das misérias. São marcantes as suas últimas palavras:
“Não terei, Senhores, pejo de vos dizer, que ao Viso-Rei da Índia faltam nesta doença as comodidades, que acha nos hospitais o mais pobre soldado. Vim a servir, não vim a comerciar ao Oriente; a vós mesmos quis empenhar os ossos de meu filho, e empenhei os cabelos da barba, porque para vos assegurar, não tinha outras tapeçarias, nem baixelas. Hoje não houve nesta casa dinheiro com que se me comprasse uma galinha…”
E pouco, pouquíssimo tempo depois, teria apenas os braços do missionário Francisco Xavier, para neles morrer…
Para pagar a reconstrução da fortaleza, é certamente verdade que Dom João de Castro “penhorou” as suas agora-famosas barbas, como pode ser lido acima, mas fê-lo num sentido simbólico e oferecendo também, ao mesmo tempo, um pagamento parcial. Se for apresentada como aqui, a carta também nos permite compreender algo mais importante, o facto de tudo isto se tratar de uma questão de honra, i.e. ele estava disposto a arriscar a sua família, a sua vida e até a sua honra em defesa do património que via como Português. Assim, as suas barbas tornaram-se um símbolo disso mesmo, de alguém que está disposto a fazer tudo o necessário em prol do país – e como tal tornaram-se uma relíquia quase religiosa, já que ao longo das décadas foram passando de mão em mão, até terem desaparecido da história nacional para parte incerta.
D. João de Castro deixou-nos ainda a sua amada Quinta da Penha Verde em Sintra, e um relicário – qual Graal donde a honra pode ser com os olhos e coração bebida – com as suas célebres barbas, tendo sido visto pela última vez na dita propriedade em Sintra, no fim do século XVIII.
Há que notar que a oferta simbólica das barbas pressupõe uma cultura em que isso faça sentido. Veja-se, ainda nos nossos dias de hoje, culturas como a judaica e a islâmica, em que os homens raramente cortam as suas barbas, por razões religiosas.
Fontes:
“As Barbas de D. João de Castro”, por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra- ‘Jornal de Sintra’, edição de 01 de Julho de 2016