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Acabo de receber um telefonema de um jornalista da “Visão” que me pedia um depoimento sobre um facto absolutamente extraordinário: segundo ele me explicou, a revista acaba de receber da RTP uma informação formal de que não existe no arquivo da empresa nenhum registo filmado do XI Festival RTP da Canção, realizado em 1975.
Escusado será dizer que em 1975 o Festival RTP era a manifestação da Música Popular Urbana portuguesa de maior impacto público em todo o País, sobretudo a partir de 1969 e nos anos imediatamente subsequentes, quando, no ambiente de relativa liberalização da censura no arranque da chamada “Primavera Marcelista”, o concurso deixou de ser um baluarte do chamado “nacional cançonetismo” e se abriu à participação de poetas como José Carlos Ary dos Santos, Yvette Centeno ou Pedro Tamen, de jovens compositores como Nuno Nazareth Fernandes, Fernando Tordo, José Calvário, Pedro Osório ou Jose Cid, ou de poetas-compositores como José Luís Tinoco ou José Niza. Um momento especialmente marcante foi sem dúvida a vitória, em 1973, da “Tourada”, de Ary e Tordo, num desafio aberto à hipocrisia moral do regime salazarista.
A edição de 1975, em pleno PREC, teve especial relevância por ser a primeira realizada já depois da queda da Ditadura. Venceu a canção “Madrugada”, com letra e música de José Luís Tinoco, na voz de um dos capitães de Abril, Duarte Mendes, e entre as restantes estavam canções tão marcantes como as de José Mário Branco (“Alerta” e “Viagem”), de Sérgio Godinho (“A Boca do Lobo”), de José Niza (“Como uma Arma, como uma Flor”) ou de Pedro Osório e Jorge Palma (“Batalha-Povo”), entre as dez selecionadas. Suponho que não haverá qualquer dúvida de que o registo do evento deveria constituir um documento histórico precioso para a história da Música Popular portuguesa, do audiovisual e do próprio momento decisivo para a História Contemporânea de Portugal que então se vivia.
A informação de que, algures nas décadas que se seguiram, esse registo se terá perdido é – obviamente – gravíssima. Revela, da parte das sucessivas administrações da RTP que entretanto estiveram à frente da empresa uma incúria, uma irresponsabilidade, uma falta de profissionalismo e uma incompetência absolutamente inadmissíveis no que respeita aos mais elementares deveres de preservação patrimonial a que esta está obrigada na qualidade de titular do serviço público de audiovisual, sustentada, para o efeito (e enquanto tal com inteira justificação), por verbas públicas, quer pelas taxas específicas de que beneficia, quer pelas verbas do Orçamento do Estado.
O atual Conselho de Administração não pode, claro está, ser responsabilizado por um facto que segundo todas as probabilidades terá ocorrido antes do seu mandato, mas tem a obrigação inalienável de instaurar agora, verificado o ocorrido, um inquérito rigoroso para apurar o que se passou e para garantir um código de preservação do seu património à altura das suas responsabilidades estatutárias, que impeça que crimes desta natureza – porque é disso que estamos a falar – contra o património público que lhe incumbe salvaguardar possam voltar a ocorrer. E será talvez uma boa ocasião para debatermos todos mais largamente, começando logo pela própria Assembleia da República e pelo Governo, o estatuto legal do Arquivo da RTP e a consagração inequívoca da sua função única e insubstituível como acervo histórico-documental nacional. Porque é importante que fique muito claro, de uma vez por todas, que não se trata de modo algum do mero acervo interno de uma qualquer empresa privada, mas sim de um bem público que tem de estar sujeito a normas rigorosas de tratamento, preservação e acesso amplo e transparente à comunidade.
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