Armando Côrtes-Rodrigues, o poeta dos Açores que o resto do país esqueceu – Observador

Ficou conhecido pelo “Orpheu”, mas continuou a escrever poesia depois do fim da revista. Praticamente desconhecido fora dos Açores, onde nasceu e viveu, Armando Côrtes-Rodrigues foi agora recuperado.

Source: Armando Côrtes-Rodrigues, o poeta dos Açores que o resto do país esqueceu – Observador

 

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Ficou conhecido pelo “Orpheu”, mas continuou a escrever poesia depois do fim da revista. Praticamente desconhecido fora dos Açores, onde nasceu e viveu, Armando Côrtes-Rodrigues foi agora recuperado.
Quando o poeta Armando Côrtes-Rodrigues morreu a 14 de outubro de 1971, em Ponta Delgada, tinha quatro livros de poemas publicados. Um quinto, Planície Inquieta, Poemas de Uma Ilha Distante, que tinha deixado preparado, saiu 17 anos depois. Conhecido pela sua participação no Orpheu, o seu nome foi, aos poucos, caindo no esquecimento, sendo raramente recuperado, e sempre em associação à revista modernista que na década de 1910 abalou Lisboa e a Fernando Pessoa, que conheceu quando se mudou para a capital para estudar na mesma faculdade que o poeta tinha abandonado anos antes.
Nos Açores, e sobretudo em São Miguel, onde nasceu e viveu grande parte da sua vida, a situação é diferente. Conhecido dos açorianos como poeta, dramaturgo, etnógrafo e cronista, Côrtes-Rodrigues tem em Ponta Delgada um centro cultural que lhe presta atenção, a Morada da Escrita, inaugurado em 2007 na casa onde viveu para dar visibilidade ao trabalho dos escritores dos Açores. Para o neto Nuno Dempster, a Morada da Escrita é prova de que a obra de Côrtes-Rodrigues não está esquecida entre os ilhéus. O problema, considera, está em Portugal continental, onde o membro do grupo do Orpheu é apenas conhecido por académicos e “gente ligada ao meio”.
No ano em que passam 50 anos da morte do escritor, o também poeta Nuno Dempster decidiu organizar, em colaboração com Anabela Almeida, especialista em Côrtes-Rodrigues, uma antologia, a primeira a ter em conta toda toda a obra poética do autor. Um Poeta Rodeado de Mar, que saiu em agosto pela açoriana Companhia das Ilhas, é a mais completa coletânea da poesia de Côrtes-Rodrigues e a primeira desde a organizada, ainda em vida do autor, por Eduíno de Jesus. Publicada em 1956, foi reimpressa em 1989 e encontra-se esgotada. O mesmo se pode dizer dos cinco livros de poesia do poeta, atualmente inacessíveis ao público.
É fácil entender Um Poeta Rodeado de Mar apenas como uma tentativa de recuperar um escritor esquecido mas, em entrevista ao Observador, Nuno Dempster garantiu que não se trata exatamente disso. Côrtes-Rodrigues continua a ser lembrado, “pelos vivos de lá e pelos especialistas de cá”, e isso é razão mais do que suficiente para não se riscar o seu nome “de ruas, escolas, parques, praças”. Mais do que divulgação, a antologia tem para o neto de Armando Côrtes-Rodrigues um significado mais profundo: o pagamento moral do “tempo de silêncio”. Nuno Dempster quebrou os laços com a família quando, aos 15 anos, saiu de casa. Depois disso, só viu o avô uma única vez, quando se casou e um ano antes dele morrer. Já escrevia, mas não lhe disse nada: “Daí a antologia, como um passaporte não apresentado”.
O poeta da ilha onde viveu e morreu Antero de Quental
Armando Côrtes-Rodrigues nasceu em Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, a 28 de fevereiro de 1891. Recebeu uma educação religiosa, tendo estudado em Ponta Delgada no Colégio Fisher, fundado pela Congregação do Espírito Santo, de origem francesa. Em 1910, mudou-se para Lisboa para ingressar no Curso Superior de Letras, que terminou em 1916. Foi no ano da sua chegada ao continente que conheceu Fernando Pessoa, por intermédio do poeta António Cobreira, amigo comum. Cobreira apresentou-o como alguém que tinha acabado de chegar da ilha onde tinha nascido e morrido Antero de Quental. Pessoa era grande admirador de Antero e a referência terá sido suficiente para que nascesse ali mesmo uma estreita amizade.
Chegaram até aos dias de hoje várias cartas trocadas entre Pessoa e Côrtes-Rodrigues, nomeadamente nos anos de 1912 e 1914, quando o escritor regressou aos Açores para se casar e motivado pelo início da Primeira Guerra Mundial. No segundo conjunto de cartas é possível encontrar pormenores sobre a preparação do número de estreia da revista Orpheu, uma ideia antiga que ganhou forma em fevereiro de 1915. Côrtes-Rodrigues, que participou com um conjunto de cinco poemas, acompanhou o processo à distância, sendo notificado por Pessoa sobre o sucesso escandaloso da publicação. A 4 de abril, escreveu-lhe para São Miguel lhe dizer: “Somos o assunto do dia em Lisboa (…). O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente — mesmo extra-literária — fala no Orpheu”.
Em maio, de regresso a Lisboa, Côrtes-Rodrigues pôde acompanhar de perto a preparação do segundo e último número do Orpheu, que saiu a 28 de julho, para gáudio da imprensa local, que voltou a associar o grupo a Rilhafoles, o hospital psiquiátrico lisboeta. O escritor voltou a participar, desta vez com sete poemas dedicados aos outros colaboradores da revista, a si próprio e a Violante de Cysneiros, o pseudónimo feminino com que assinou o conjunto. Muito se tem especulado sobre a razão da escolha do nome. Numa entrevista concedida em 1953, o poeta explicou que a ideia partiu de Pessoa, que considerava favorável para a revista uma presença feminina. Côrtes-Rodrigues aceitou a proposta, confessando mais tarde ter sido motivado pelas duras críticas dos seus professores ao Orpheu.
O grupo começou rapidamente a preparar um terceiro número, com publicação agendada para outubro do mesmo ano. Mas problemas financeiros ditaram o fim precoce do Orpheu que, já em provas, acabou por não sair. No ano seguinte, Côrtes-Rodrigues regressou aos Açores, deixando para trás uma experiência que marcaria a sua vida e garantiria a sua fama póstuma, mas não Violente: o nome voltaria a surgir em 1916, assinando textos em prosa publicados num jornal de Vila Franca do Campo.
Um “modernista moderado” rodeado de mar
Armando Côrtes-Rodrigues publicou o primeiro livro de poesia, Em Louvor da Humildade, em 1924. De carácter populista, recebeu críticas menos positivas pelo seu distanciamento do movimento modernista que o poeta tinha integrado em Lisboa. Anos mais tarde, Côrtes-Rodrigues ter-se-á arrependido da publicação, perguntando-se se não teria sido melhor lançá-lo sob um pseudónimo. O autor continuou com o uso de pseudónimos depois de Violante de Cysneiros, criando nomes como Simão Vila Nova.
Na opinião de Nuno Dempster, Em Louvor da Humildade foi “a experiência mais marcante” de Côrtes-Rodrigues, mesmo que ele depois a tenha de algum modo recusado. Composto por “quadras ao jeito popular”, “é consequência direta da sua militância no Movimento Autonómico dos Açores. Poesia, portanto, programática”, afirmou. “O manifesto poético do Movimento Autonómico, que não era nenhum, inseria-se nos princípios de povo autêntico e da tipicidade popular. O movimento também era conhecido por Açorianismo e tem raízes no Integralismo Lusitano de Alfredo Sardinha, que por lá andou”, explicou ao Observador.
“Côrtes-Rodrigues militou numa organização que defendia o regresso da monarquia e, mais claramente, através do Açorianismo, apoiando-se e louvando, em verso, o povo que trabalha. E era a isso que, naquele momento, devia fidelidade. Aliás, o conservadorismo político dos modernistas é conhecido, com as poucas exceções do costume. Mesmo assim registo a amplitude máxima que vai de Erza Pound a Maiakovsky”, apontou. Em Louvor da Humildade foi a única experiência do poeta com o populismo, de que se afastou nos livros seguintes, aproximando-se novamente do modernismo dos poemas de Lisboa.
Em Cântico das Fontes, o segundo livro de poesia, de 1932, pressente-se “ligeiramente a sua ascendência estética”. “Nos livros seguintes, acentuou esse modo de escrever modernista”, considerou. Questionado sobre a conjugação do modernismo com o misticismo, o também poeta disse não compreender porque é que “um místico não pode ter um pensamento estético modernista”, lembrando que “Fernando Pessoa foi místico”.“Tem escolhos, entraves, contradições, mas pode superá-los, exercendo a estética do modernismo e a visão mística do mundo. Um religioso, laico ou não, é ou pode ser um coriáceo soldado da fé, um obtuso mercenário das hostes de Pio X contra o modernismo. Entre esses, sim, seria estranho supor que havia criadores de arte modernista. Côrtes-Rodrigues era um místico”, defendeu Nuno Dempster.
Um “modernista moderado”, Côrtes-Rodrigues regressaria a Orpheu de tempos a tempos nos seus livros de poesia. O próprio admitiu, quando disse: “Vim de Orpheu, desci ao Povo, subi a uma fase de franciscanismo intenso em Cântico das Fontes, meti-me outra vez a caminho de Orpheu com Cantares da Noite [1942] e depois e mais com Horto Fechado [1953] e de novo me encontrei surpreendido outra vez na fase inicial voltando novamente para a terra no livro que ando a escrever”. Esse livro, o quinto, era Planície Inquieta, publicado a título póstumo, em 1987, 17 anos depois da sua morte.
Para Nuno Dempster, não restam dúvidas de que a revista Orpheu marcou Armando Côrtes-Rodrigues “ao longo da vida, depois daquele primeiro livro de militância política. Sendo um modernista moderado, sente-se na sua poesia poetas comuns a todo o grupo, simbolistas e Cesário Verde. Em alguns poemas mais longos e largos, de verso livre, sinto Walt Whitman, que também entusiasmou Álvaro de Campos”, afirmou. “Também se nota o modernismo em composições da parte ‘Poemas do Espólio’ [que integram a antologia], retirados do livro com o nome Canção da Vida Vivida, publicado pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada em 1991. Não estão datados. Porém, não é difícil selecioná-los pelas suas características formais.”
Orpheu marcaria o caminho poético de Côrtes-Rodrigues, mas também o conhecimento póstumo da sua obra. Para muitos leitores, a participação na revista modernista fundada por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro é a única atividade que conseguem associar ao poeta da ilha de São Miguel. Uma participação que lhe deu fama, mas que alguns, como João Gaspar Simões, tentaram desvalorizar — na biografia de Fernando Pessoa publicada nos anos 80, o crítico literário defendeu que Armando Côrtes-Rodrigues teria apenas participado por insistência de Pessoa e que não teria o mesmo talento que os outros colaboradores.
Nuno Dempster afasta essa ideia, classificando os poemas dos dois números da revista como “perfeitos”, “que honram a revista”, e lembrando que Gaspar Simões tanto dizia como desdizia as suas próprias afirmações. “Na secção de crítica literária do Diário de Notícias de 12 de junho de 1956, João Gaspar Simões escreveu uma recensão positiva da antologia de Armando Côrtes-Rodrigues, organizada por Eduíno de Jesus, na qual estão os poemas de Côrtes-Rodrigues e Violante de Cysneiros publicados nas revistas Orpheu 1 e 2, respetivamente. Assim era o próprio João Gaspar Simões, que desmentia o que tinham posto na boca dele”, apontou, defendendo que “Pessoa rogar a Côrtes-Rodrigues que colaborasse na Orpheu é ridículo. Nem que fosse só pela participação de Violante de Cysneiros, já Côrtes-Rodrigues guardava essa inventiva poeta para o papel no movimento, mas temos o poeta micaelense na Orpheu 1 e nas cartas que Côrtes-Rodrigues e Fernando Pessoa trocaram.”
Nem fazia sentido tratando-se de um autor de “uma poesia tecnicamente segura”, de “sonetos perfeitos, quadras impecáveis, versos livres com bom corte”, “musicalidade e ritmo”. “No que mexia, fazia-o bem, com uma sonoridade que recorda os simbolistas. Os temas e a interpretação da realidade variam, o misticismo perante a vida toda, a terra, os animais, os humanos, a dor, o mar, o amor, a ilha de São Miguel e Vila Franca do Campo como a sua pátria.” Como se explica então o esquecimento mais ou menos generalizado a que votaram o nome de Armando Côrtes-Rodrigues? Para Nuno Dempster não existem culpas, “existem caminhos”.
“E os caminhos são longos. Há cinquenta anos, que é o tempo que nos separa da morte de Armando Côrtes-Rodrigues, nos Açores não havia internet, não havia televisão, não havia telemóveis. Havia ilhas que, na escola, nos ensinaram serem pedaços de terra rodeados de mar por todos os lados. Como é que hoje viveríamos então? Sabemos que o cosmopolitismo muda as sociedades, o que faz das pessoas é que não sabemos, se não as individualizarmos. Sabemos melhor da melancolia dos ilhéus que atravessa as canções populares, em que se sente a vastidão das fronteiras do mar e do céu. É claro que este extremo tem de se perceber na poesia culta das ilhas, de quaisquer ilhas.”
Lembrando que Côrtes-Rodrigues “é conhecido nos Açores pelos ilhéus como poeta, dramaturgo, etnógrafo e cronista”, o também poeta defendeu que “o seu nome nos Açores não caiu no esquecimento. O mesmo já não se passa em Portugal continental, que sempre tratou mal os seus criadores de arte, e ainda mais os que estão fora da plataforma continental, por nascimento e vida ou por emigração”, disse. “Falecido, Côrtes-Rodrigues tem, em Ponta Delgada, um centro cultural ativo, a Morada da Escrita, que foi a sua casa de habitação, com a gestão a cargo do Instituto Cultural de Ponta Delgada”, que ajudou a fundar.
Armando Côrtes-Rodrigues morreu a 14 de outubro de 1971, no n.º 11 da Rua José Maria Raposo do Amaral, em Ponta Delgada, onde morava e hoje mora a escrita. Tinha 80 anos. Um ano antes, tinha visitado o neto pela última vez. Nuno Dempster, que nunca lhe disse que escrevia, imagina que teria ficado “contente” por saber que partilhavam o mesmo amor pela poesia. “Mas um dia alguém me disse o que não devia ter-me dito quando mostrei um poema dos meus 17 anos: ‘Isso é brotoeja’. Continuei a escrever, claro, mas até ao fim da minha primeira fase escrevia e deitava fora, atitude bastante saudável. Talvez não tenha confessado a verve ao meu avô por isso mesmo”, admitiu ao Observador.
Um Poeta Rodeado de Mar é uma forma “de lhe pagar moralmente o silêncio” em que estiveram tantos anos, mas é também um tributo a uma voz importante da poesia açoriana, que Nuno Dempster não acredita que tenha sido totalmente esquecida, mas que precisará certamente de ser mais lembrada. “Se é lembrado pelos vivos de lá e pelos especialistas e autodidatas de cá, se o centro cultural Morada da Escrita, em Ponta Delgada, mantém as portas abertas, se continua a haver sessões acerca do poeta, se surgem teses de mestrado e de doutoramento sobre Côrtes-Rodrigues, se a antologia de Eduíno de Jesus reimpressa em 1989 está esgotada, porque haveríamos de riscar o nome de Armando Côrtes-Rodrigues de ruas, escolas, parques, praças e não organizar a antologia?”, interrogou.
“E, finalmente, porque havia eu de ficar quieto? Era bom, por exemplo, que os jornais fizessem uma entrevista regular e programada a poetas que estão esquecidos ou que nunca saíram do esquecimento, porém bem vivos, com qualidade e com capacidade de responder por vezes a perguntas difíceis.”
(Rita Cipriano – Observador de 30/10/2021)
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