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O clube dos poetas tortos
Armando queria muito sentir-se importante. Não que não o fosse, para os familiares, amigos, antigos colegas de trabalho. Mas Armando queria mais. Desejava o que se poderá chamar um “reconhecimento universal” da sua importância.
Talvez fosse tarde, pensava. Para cima dos sessenta, tivera mais de meio século para se tornar importante. Mas não ligara. Atarefado com a profissão, com o partido político em que militava, com a casa e a família, deixara andar, mais um ser humano por aí, um de nós. E só agora, que entrara no último terço da sua vida, sentia aquele imperativo quase kantiano de se sentir importante.
Tinha de ser através das artes. Uma arte qualquer. Cinema ou teatro nem pensar. Nunca fora grande actor, fosse qual fosse o papel que lhe davam para representar andava sempre aos papéis, enganando-se nas falas, chegando a saltar várias páginas do drama, o que estragava logo a peça.
Pintura estava igualmente fora de questão, nem uma parede ficava capaz se via um pincel em cujo cabo se segurasse Armando. Ainda pensou em coisas abstractas, mas desistiu à primeira tentativa, saiu-lhe uma coisa tão concreta que nem conseguia imaginar o que fosse. Pintor também não seria.
Considerou a hipótese de se tornar escritor, mas desistiu depois de ler alguns romances de autores consagrados. Para se tornar importante como escritor teria de estar, pelo menos, àquele nível e sentiu não ter imaginação para tanto. Quer dizer, imaginação até talvez pudesse criar, paciência é que não. Tratava-se de muita página, bastantes personagens, lugares desconhecidos, acções incríveis, não, tal canseira não era para ele.
Vários meses nesta agonia de querer ser importante, mas não saber como e, finalmente, Armando descobriu a solução – ia ser poeta.
Claro que Armando, esperto como era, começou logo a antever as perguntas incómodas que lhe poderiam fazer desde logo os mais chegados, depois jornalistas e intelectuais de vária espécie: como é que alguém só descobre que é poeta já praticamente velho? um poeta que o seja verdadeiramente auto intitula-se como tal? onde está um verso, uma quadra, um soneto, um poema digno de tal nome, produzido no passado e escondido, por pudor ou desejo de anonimato?
Armando não se deixou intimidar por tais inconvenientes potencialidades de questionário. A qualidade da sua obra calaria de imediato essas bocas invejosas, queriam era serem eles poetas, mas isto não é para quem quer, mas para quem pode. Nos meses seguintes, o seu maior amigo foi o Google. Escrevia “palavras que rimem com” por exemplo amor, e apareciam-lhe todas as possibilidades, cor, dor, favor, labor, pavor, rancor, um sem fim de hipóteses que lhe davam um jeitão para produzir quadras sem fim.
Mas Armando não queria ser importante como “poeta popular”. Aquele “popular” à frente de poeta parecia-lhe uma menorização do seu génio. Começou, então, a escrever como se fosse prosa, mas dividindo o texto naquilo que chamou versos.
Para melhor compreensão, deixamos aqui um “poema” armandino.
“Deixa-me perder-me no teu triângulo, amor
Bermudas de baptizo entre coxas
Onde não encontrarei iates, nem aviões, nem nada que se tenha perdido,
Porque só eu voo, navego, me perco nas tuas profundezas,
No leme e nas asas da poesia”.
Post Scriptum: Perdoe algum leitor se encontrar algum resquício de poesia no que acima deixei. Se tal tiver acontecido, juro que não foi de propósito. Tentei dar o meu pior.
(publicada hoje no Diário Insular)