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Não tenho o direito?
Durante as minhas infância, adolescência e parte da juventude, não me lembro de ouvir a palavra direito.
Deveres sim, havia muitos. O dever de ir à escola e de fazer os trabalhos para casa. O dever de respeitar os mais velhos e de pedir a bênção a meu avô. O dever de ter o meu quarto arrumado. O dever de poupar, na luz, na água.
Quando tinha catorze anos, meu pai deu-me uma mesada. Não a vi como resultado de um direito, muito menos um que tivesse reivindicado. Outra palavra que não existia, reivindicar… Entendi tal doação como uma generosidade, que meu pai me explicou ter um sentido didáctico: chamava-se mesada porque tinha de dar para um mês.
Escusado será dizer que gastei aquilo tudo em dois ou três dias. Livros de banda desenhada, umas sandálias que já me andavam a cegar há semanas na montra da Novi, rebuçados com cromos de jogadores, a verdade é que o dinheiro marchou todo num ápice. No baile do clube do fim-de-semana seguinte, quando me deu fome e sede, pedi a meu pai para me comprar uma bifana e uma laranjada e ele perguntou-me pelo dinheiro que me tinha dado. Quando lhe confessei a prodigalidade, disse-me que me ia pagar a bifana e a laranjada, mas que fosse a última vez: não podia pedir depois de me ter sido dado.
Aprendi a gerir, assim. O que me foi muito útil daí a 3 ou 4 anos, quando fui estudar para Lisboa. Os 4.500 escudos tinham de dar para o quarto com roupa lavada, passe social para o metro e autocarros, almoço e jantar na cantina, bilhetes de comboio para ir passar os fins-de-semana com meus tios a Oeiras, livros e fotocópias, mais uns extras como filmes e um bife na Portugália de vez em quando.
Mas, ainda no Faial, quando precisava de mais dinheiro, nunca mais pedi a meu pai. Como era bom aluno de línguas, ofereci-me para guia turístico na Bensaúde e ganhei bem a fazer excursões, 600 escudos de honorários mais as gorjetas sempre generosas. Aprendi a tocar guitarra e fiz parte de conjuntos de baile, abrilhantando bailes e ganhando umas centenas de escudos que ia poupando e muito jeito me fizeram mais tarde.
Por ironia, escolhi um curso que era a palavra com a qual pouco convivi no meu crescimento: Direito. Mas depressa aprendi o valor dos contratos sinalagmáticos. A um direito, corresponde um dever. Como trabalhador, tenho o direito a um salário. Mas tenho vários deveres associados a esse direito: respeito, zelo, assiduidade, etc. Como arrendatário, tenho direito a usar a casa. Mas igualmente o dever de pagar pontualmente a renda. E deveria ser neste equilíbrio que tudo deveria funcionar.
Tristemente, não é assim. Cada vez mais, as pessoas exigem direitos, muitas vezes se esquecendo dos seus deveres. Enchem a boca com o Estado de Direito Democrático, desprezando até o seu dever cívico de votar. Reivindicam o seu direito inalienável a se expressarem livremente, mas não ligam muito ao dever de respeitar os outros quando usam aquela liberdade de expressão. Difamam vergonhosamente, lançando suspeições que não podem provar. E, quando chamados à atenção, a defesa é sempre a mesma: não estou no meu direito?
Por este andar, na próxima revisão constitucional, vários serão os direitos fundamentais que se somarão aos que já constam da Lei Fundamental: o direito à inveja, o direito à calúnia, o direito à ignorância, o direito à tolice. E talvez alguns deveres desapareçam, porque incómodos…
Um desafio: na Assembleia Regional, muitos deputados e deputadas, abusam dos “apartes”. Quando chamados à atenção, reclamam ser seu direito regimental. Não será tempo de pensarem no seu dever de respeitarem quem está no uso da palavra?
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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