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Antes que morra
Tem-me morrido muita gente, nos últimos tempos. Tanta que, quando consulto as páginas das funerárias, já rezo para que não haja caras novas. Se for a última vista, com toda a tristeza pelo ido, fica pelo menos a consolação de que a morte fez uma pausa breve.
São amigos, conhecidos, mais velhos, mais novos. E, para além da dor e da programação do coração para a saudade, fica um sentimento de desperdício. A morte é um desperdício de saberes, de práticas, de sensibilidades.
Já se devia ter inventado um meio para evitar que tudo se perca debaixo da terra ou nas chamas dos crematórios. Já nos devíamos ter concentrado nessa missão, mais do que ir à lua, a Marte, ou andar no espaço levitando em órbitas repetitivas.
Mais do que inventar Gouchas iguaizinhos ao que existe, a inteligência artificial devia preocupar-se em preservar o que cada um tem dentro de si. As artes de pesca do pescador. Os almanaques do agricultor. Os cantos lusíadas do professor de Português.
Quando morre alguém, é um ror de conhecimento que se perde. Livros lidos, canções ouvidas, filmes vistos, quadros mirados, viagens feitas, paisagens retidas… Por que não inventar uma ranhura no crânio de cada um, onde se pudesse introduzir uma disquete, uma pen, um dispositivo novo, para onde passasse tudo o que está dentro do cérebro do quase defunto, já extremamente ungido? Seria uma vida preservada, uma herança transmitida aos descendentes, para memória futura ou aprendizagem presente.
Seria bem mais proveitoso passar para as mãos da viúva ou descendentes este álbum de existência, do que a chave do caixão ou o vaso com as cinzas.
Alternativamente, uma solução mais poética ou ecológica. Seríamos todos cremados. Mas, em vez de as cinzas serem espalhadas pelos ares em lugares favoritos ou guardadas em cima da lareira, seriam enterradas e regadas diariamente, como uma espécie de sementes. E então nasceriam árvores, ou pequenos arbustos, que poderiam ser cheirados, cada ramo um saber.
Cada um de nós vivo outra vez sob outra forma, almas plantadas a ressurgir, Bach a encher os campos. De alguns nasceriam flores, de outros espinhos. De outros talvez não nascesse nada, mas isso já tinha sido assim em vida. E não merece uma segunda vida quem não tenha vivido a primeira intensamente.
Um pedido, para o meu velório, se aparecer alguém. Façam uma marcha e dancem, os que dançaram nas minhas. Representem um bailinho, os que entraram nos meus. Contem anedotas, os que riram das minhas. Leiam poemas, mas de Poetas a sério. Joguem king, ou sueca, os que ficaram nas mesmas mesas que eu, ganhando e perdendo.
Façam da minha partida uma festa, até porque não imagino seja quem for a ter lágrimas por mim. E , se cumprirem este último desejo, se encherem a funerária de gargalhadas, de rimas, de voltas e tranceias… prometo ressuscitar.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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eu tenho um poema apropriado de 2012
563. quando morrer (lomba da maia) 4 dezº 2012
quando eu morrer
não declare nada
que eu não tivesse dito
não elogie nem critique
quando eu morrer
não vá ao meu velório
nem mande flores
escreva uma frase lapidar
e publique-a
quando eu morrer
faça uma festa
leia um poema meu
beba um bom champanhe francês
fume um cubano
seja politicamente incorreto
como eu seria
quando eu morrer
sem ver luz ao fim do túnel
vou esquecer muitas coisas
mas pedirei à minha mulher
que me construa novo taj mahal