amanhã é dia da autonomia

14.11. AUTONOMIAS, 6 Jun. 2012, CRÓNICA 116
14.11.1. ILHA DA AUTONOMIA.

“Um povo emudecido é um povo de atordoados e medrosos, a quem um prolongado costume de calar entorpeceu a própria língua” (in Mariano Larra, escritor e jornalista espanhol do início do séc. XIX).

Hoje mal se vislumbra a costa norte na janela do meu “castelo” na Lomba da Maia. A falsa (sótão) desabrocha sobre o mundo. Enxergo mares. Lobrigo montes. Diviso nevoeiros que desaparecem sem rasto. Entrevejo vacas fiéis ao destino ruminante sem desfraldarem queixumes. Fantasio que a verdadeira autonomia se abaterá sobre o arquipélago e se vislumbrará a tal ínsula que surge com os nevoeiros de S. João. Com ela devaneio, se a antecipo encoberta, componho os óculos, arregalo a íris, foco o invisível. As ondas e nuvens conspiram para a ocultarem. Careço de um cartógrafo acreditado, como Ptolomeu, com portulanos das Escolas de Maiorca, Sagres ou Dieppe, para a mapear, só descortino contornos como se a visse em Braille e não em representação de Mercator como Ortelius fez. Quiçá tê-la-ei antevisto (também há quem jure ter visto D. Sebastião nas brumas)! entre um belo arco-íris da Lomba à semiencoberta Bretanha, mas o arco da velha sumiu. O mar confunde-se num horizonte indistinto, em constante mutação, ora pardo ou azuláceo. Perde-se no vislumbre. Fito o grande lençol de água, tento enxergar a ilha, fantasio e divago, ora encoberta ora invisível. Acredito piamente que exista para lá do limite impercetível. Por vezes, as formas e cores das nuvens afiançam o mistério que os mapas não cartografaram. Confio devotamente, virá como a ilha Sabrina, e as que desaparecem das cartas de marear no S. João. Esta é especial e única. Sempre que posso, perscruto o futuro em busca dela. Quando a vir, reivindicarei o direito a denominação patenteada. Designá-la-ei Autonomia.

Enquanto a mágica ilha não advém, na paz rural e bucólica que me rodeia, os vaqueiros prosseguem no afã ancestral da pecuária (a que chamam erroneamente agricultura), levantam-se trevas cerradas e acamam-se, fatigados, no negrume da noite. Rotinas entrecortadas por festas e procissões, sem queixumes pela sorte caipora que reproduz destinos ingratos. Resignação amargurada, lobrigada nas comissuras de peles encarquilhadas, sequiosas, tragando um copo de três ou abafado. Os campos arados, vacas mungidas, chova ou faça sol, feriado, dia santo, fim de semana. As ilhas transfiguraram-se em vacaria que mourejam sem saberem da semana-inglesa. Quase todos andam nas vacas, ou as têm ou trabalham-nas para terceiros. De tantas em tantas horas a mungi-las, dum pasto para o outro, e no inverno a ilha é sempre verde. O insuportável e fedorento colonialismo paternalista. O quotidiano, fora das pequenas urbes, é similar à escravatura. A gleba cumpre horários sem calendário. Cuidar de vacas doutrem a troco de soldo miserável, sem direito a férias ou doenças, é servidão, religiosamente acatada por homens e mulheres (apesar de poucas, por aí andam algumas, e supõe-se que interrompam as lides na gravidez, ao contrário dos chineses cujas crianças nascem nos arrozais em plena colheita).

Os rendimentos são inferiores aos ibéricos mas há subsídios para rações, carrinhas, tratores, e sabe-se lá que mais que os burocratas de Bruxelas inventam ou que os de cá forçam com a ameaça de que vão falir (nota de 2021: aos anos que ouço a mesma ladainha, dia após dia na RTP-Açores, até que lhe paguem mais subsídios). Nas zonas rurais os filhos, que não abundam como dantes, vão à escola nos intervalos da labuta. Se faltam às aulas e não fazem os trabalhos de casa é porque foram às vacas. Se deixam de estudar é para irem às vacas. Não é opção, mas obrigação. Solidariedade familiar. Vá-se lá a saber. Sempre foi assim a tradição açoriana, repetida em vidas feitas do imediatismo. O futuro não se pensa nem se planeia, nunca nada se arrisca nem se previne, o presente é navegação à vista, com a costa sempre visível.

Fatalismo ou destino, nunca se interrogam, apenas o cumprem. Este açoriano, é diferente do que, no séc. XIX, com menos estudos e sem universidade, criou a Sociedade da Agricultura Micaelense, quiçá o movimento mais importante da história. O comércio da laranja extinguiu-se vitimado por doença. O que esses antepassados anteviram (e precaveram-se) foi que a riqueza não seria duradoura devido aos avanços da produção e do transporte na Europa. No séc. XVIII ninguém previa o fim das laranjas. Há anos que se sabia do fim das quotas do leite mas em vez de conversão, aumentou-se a produção. Os pastos não se convertem em terras de cultivo enquanto o diabo esfrega um olho, e 300 mil animais não se desvanecem num ápice, por mais subsídios que se inventem, sem que haja do Governo ou gente da pecuária (sempre tão lesta a pedir subsídios) ação que acautele o futuro de pobreza e miséria. Avisaram esta geração de que as vacas iriam acabar como o ciclo do pastel, as vacas são a única ocupação que conhecem, nem concebem outra. Esgotados os fundos europeus para a excessiva produção de leite, ficarão sem nada. Depois do fim da gesta heroica dos baleeiros, que Dias de Melo retratou, aproxima-se o fim da era do leite que nenhum escritor romantizou. Virão dias de fome e de aflição.

Nos EUA há quem aproveite o estrume do gado para energia ecológica…será que estes campos podem produzir biodiesel? Por outro lado, como a terra é fértil, quando se acabarem as vacas leiteiras poderiam diversificar, aproveitar os solos úberes para outros produtos e mercados de nicho e exportar (em 2020 na Terceira começou a exploração da dispendiosa carne Wagyu). Mas o que se vê, todos os dias no telejornal é o inefável “dono das vacas “a pedir subsídios: porque choveu, ou há seca e não choveu, porque o furacão estragou isto, a tempestade tropical estragou aquilo, os “lavradores” (donos de vacas, entenda-se) precisam que os apoiem para pagarem o seguro, eu sei lá 1001 pedinchices ameaçadoras roçando a chantagem. Não fala em dar formação aos associados, nem converter as vacarias, só subvenções do governo e da UE. Não penaliza os que produzem leite a mais, pede mais subsídios. Os tempos mudaram, cá e na Europa, mas, impérvio, permanece na sua, encravou na gravação. Creio que ainda não pediu dinheiro para compensar o nevoeiro cerrado, mas, cuidado que posso estar a dar-lhe ideias.

Reservo-me o direito de emitir opiniões e ser controverso quando afirmo que nos meios rurais, os açorianos continuam tão escravos, como os antepassados, mesmo sem o saberem, neste país de brandos costumes como erradamente Salazar clamava. Há quem alegue que a servidão hodierna é mais humanizada e de matizes esbatidos (decerto nunca foram escravos). Os açorianos seguem fados tradicionais sem os questionarem. O fatalismo insular pode ser explicado pela brutal aspereza dos elementos, fogo e manifestações telúricas. A energia positiva é muitas vezes dirigida para ações cotejadas com o culto cristão eivado de paganismos, como romarias. Existem alternativas, fugir, emigrar, ou (de forma simplista) mandar a escravidão às urtigas e viver do rendimento de inserção social. Os políticos vivem em torres de marfim, ao ritmo da reeleição sem visão para os Açores a 10, 20 ou 30 anos, na mira da próxima contagem de votos, a única que interessa. Nada sabem nem tentam, além de obras de betão com o nome na reluzente placa.

Não há autonomia sem meios, e não há democracia sem capital. Karl Marx nunca o soube. Só com poder de compra se pode ser livre. Sem posses, os pobres não podem almejar a liberdade, nem os escravos, a alforria. É mais fácil depender de subsídios e atribuir as culpas ao Terreiro do Paço Miguelista, governa como se nunca tivéssemos saído da monarquia absolutista. Nem os cães ladram quando a caravana passa, tornaram-se indolentes. Mimetizam as pessoas, conformistas e aburguesadas, pobres burgueses e burgueses pobres. Só se as turbas despertarem da letargia acomodada e saírem à rua ou apanharem um choque de alta tensão ou se as meterem no Grande Colisor de Hádrons em busca do bosão de Higgs (partícula de deus).

Compete aos açorianos decidir o destino. Salvo raras exceções, satisfeitos com a submissão a Lisboa, poucos manifestam desejos face ao poder central. Se optassem pela autonomia, seria tanto ou mais viável que no Kosovo, Kiribati ou Nauru. Cristóvão de Aguiar aventou, que teriam de ser nove, opino que bastam quatro: S. Miguel e a colónia de Sta Maria; a Terceira e a colónia da Graciosa; o Faial e colónias do Pico e S. Jorge; as Flores e a ilha adjacente Corvo, como possessões ultramarinas: Toronto, Nova Bedford, Santa Catarina e outras.

14.11.2. AUTONOMIA SEM SUBALTERNIDADE

A autonomia, instituída no papel, dá a ilusão de liberdade ao feudal ciclo secular e é pedida com salamaleques, quando necessário, mas contestada pelo governo central. Aquando das grandes tragédias (telúricas, fogo e água), a revolta popular manifesta-se sempre da única forma que a lei permite, nos pés, na fuga à fome e escravidão, para paraísos no lado outro do Grande Mar Oceano. À exceção do Havai, o Éden (podia ser aqui mas não é) é nas Américas.

O orgulho em ser-se açoriano é profundo, arreigado ao húmus, mas difuso. Confunde-se com bairrismos de ilha, insularismos de freguesia, lesado pela idiossincrasia micaelense de chamar Açores às ilhas, perpetuando vassalagens obsoletas de 48 invernos salazarentos e primaveras bafientas da 3ª República anestesiante, alegadamente democrática.

Havia sempre revoltados com a miséria, sem presente nem futuro num excesso de passado, prontos a meterem pés ao caminho, rumo à verdadeira autonomia, a do dinheiro, única que permite sonhar. O desprezo a que votam os ilhéus é como a desertificação humana no interior. Para os ibéricos, em 2005, quando se falava dos Açores era como Timor quando fui em 1973, sabiam que eram ilhas, nada mais. Como a anedota na TVI “a senhora é dos Açores, mas é branca?” Não avisaram que a paisagem é verde, as pessoas não. Depois com as companhias aéreas de baixo custo tudo mudou, passamos a melhores, na crista da onda, a funchalizar, construir hotéis, alojamento local, empresas turísticas, a Disneylândia da natureza. Havia mais projetos de hotéis e resorts mas veio um vírus e estagnou. Manuel Leal, expatriado nos EUA escreveu:

A revolução açoriana vem-se mostrando à janela há séculos. Nunca teve uma face persuasiva. Não a possui em ideologia. Fazem-no nos cafés, numa elite dentro da ilha e sem eco. A revolução à mesa do café não chega a parte nenhuma.”

É tempo de demonstrar capacidade identitária perante o país encafuado em Lisboa, submisso à omnipresente Europa. A emancipação autonómica sem macrocefalias nem subalternidade com um Governo Regional sem ser filial de Lisboa, sem ser defensor dos donos disto, que sempre exploraram os ilhéus, sombrias e persistentes personagens que perenizam monopólios. Arrivistas pequenos, limitados como as ilhas. Nos Açores, compete aos mestres da palavra apontarem o caminho da Atlântida perdida, a autonomia vive-se em círculos circunscritos. Surgirá, um dia, da “elite esclarecida” (à falta de melhor adjetivação). Haverá elites para além das que se emproam em encontros de intelectuais de fina-flor com direito a nome no jornal? Uns pararam no tempo, outros em busca dele, que nunca à frente. A populaça não os segue nem os entende. Nem mesmo os ditos. Ufanos por preencherem as revistas cor-de-rosa. Todos, incapazes de congregarem mentes. Temerosos de perderem a caleche em que se pavoneiam na avenida, tal como os antepassados de 1890.