açorianidade, nemésio e machado pires Manuel Sá Couto

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Pela importância do tema, aqui vai o texto da entrevista do Diário Insular:

E o que é isso de açorianidade? Como é que este pensamento foi sendo construído?

Apalavra açorianidade começou com uma ace­ção diferente da que tem hoje, num sentido mui­to mais restrito e individual. A açorianidade é um termo inventado por Vitorino Nemésio, mas é um termo que diz respeito à experiência afeti­va que ele teve afastado da sua terra. É um con­ceito experiencial de vida, um conceito poético e lírico, e não propriamente tudo o que diz respei­to aos Açores, ao comportamento dos açorianos e à sociedade açoriana. Foi minha preocupação, neste livro, explicar a origem do termo e provar que começou como um sentimento pessoal, que só depois se começou a utilizar para outros fins. Não há nada como ler o que está escrito no livro: “Um dia, se me puder fechas nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações para com o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio sobre a minha açorianidade subjacen­te, que o desterro afina e exacerba”. A primeira vez que ele utiliza a palavra é, portanto, referin­do-se a um ensaio sobre a sua açorianidade, a sua experiência de alma açoriana e as suas saudades da terra, que o desterro – o viver no continente – afina e exacerba. Aos 31 anos, saudoso da sua terra e a viver em Coimbra, Vitorino Nemésio es­creveu um artigo para o que se achava ser o cen­tenário da descoberta dos Açores – as ilhas foram descobertas em 1427, mas durante muito tempo pensou-se que tinha sido em 1432. Em 1932 pe­diram ao Nemésio, então, um texto comemorati­vo e ele escreveu o célebre texto onde diz que a geografia vale tanto como a história e onde usa, pela primeira vez, a palavra açorianidade, refe­rindo-se à sua relação com a ilha. Apalavra te­ve uma grande fortuna; é um termo feliz que Vi­torino Nemésio inventou a partir da “Hispanida­de” de Unamuno. Dá para os Açores, mas para a Madeira, por exemplo, não dá, e isso funciona a nosso favor. Apalavra foi ficando conhecida, foi-se alargando ao domínio etnográfico, ao domínio antropológico e ao domínio político. Tão vaga se tornou que, hoje em dia, escrever sobre qualquer coisa que diga respeito aos Açores é tratado como açorianidade. A verdade é que não é bem a mes­ma coisa, porque a açorianidade é a experiência de ser-se açoriano e de se sentir ligado, impreg­nado com as saudades dos Açores. Penso que se deveria ter feito, e foi isso que tentei fazer com este livro, a história do termo, para salvaguardar de usos excessivos e vagos, porque esvaziam o conteúdo da palavra e banalizam-na.
Se se usar muito o termo açorianidade, a propósito de tu­do e de nada, o termo perde impacto. Deve ter um sentido vais reservado, resguardado, para ter mais força.
Já se verifica, então, essa perda de importância do termo?
Penso que sim. Usa-se tanto a palavra açoriani­dade, para tudo e para nada, que perde o caris­ma que tinha na linguagem de Nemésio. Quan­do se fala em “defesa da açorianidade”, confun­dindo a açorianidade com autonomia, empobre­ce-se o conceito. O conceito foi pensado, como dizia, relacionado com a “Hispanidade” de Una­muno – que diz respeito à alma espanhola, às ca­racterísticas da identidade peninsular -, e, por isso, a açorianidade é a condição de ser insular e aquilo que isso faz no nosso mundo interior. É mais mundo interior do que a descrição das coi­sas exteriores, embora também seja possível. Se se falar na defesa da açorianidade enquanto de­fesa da condição do ser insular, defesa do nosso património e experiência enquanto povos isola­dos. A autonomia é uma consequência da iden­tidade, ou seja, a identidade serve de sustentá­culo da autonomia.
A geografia e a história influenciam, em todos os povos, o ser, isto é, a alma de quem habita os lu­gares. Consideraria, ainda assim, que o caso dos Açores é um caso específico?
O caso dos Açores é um caso relativamente es­pecífico. Em toda a parte a geografia interessa, de facto: se um individuo vive no nordeste do Brasil é influenciado pela “nordestidade” – se é que se pode inventar o termo; se vive na Escan­dinávia é influenciado pela sua condição. Mas o caso dos Açores é mais do que, por exemplo, a condição do ser alentejano, sendo certo que a al­ma alentejana também é muito característica. O transmontano e o alentejano reivindicam muito uma alma própria, porque também são geogra­fias muito típicas. No entanto, ilhas, mar, iso­lamento e meio do Atlântico são condicionan­tes geográficas mais poderosas. Nos Açores esse sentimento é especificamente mais forte. Lem­bro-me, a propósito, daquela frase de Nemésio de que gosto muito: “As ilhas são o efémero e o contingente. Só o mar é eterno e necessário”. É o mar que define a insularidade e não as ilhas. O ver a partir do mar é muito mais importante, porque a geografia das ilhas não decorre tanto da orografia, dos vulcões, mas da situação que elas têm no mar. Este mar não é igual a qual­quer outro; é um mar do Atlântico, está a um terço de distância da Europa, a dois terços das Américas. É um mar especial. E já que se fa­la disso, nos Açores, a geografia tem tanta ou mais importância do que a história – diria, sem querer emendar o Nemésio -, porque a geografia condicionou a distância das viagens, a geogra­fia condicionou o clima. Os Açores são o pon­to mais ocidental da Europa e os europeus não se lembram disso. Não são só os centralistas ou os continentais; a Europa está esquecida e in­grata à situação e ao valor patrimonial histórico dos Açores. O ponto mais Ocidental da Europa é um ilhéu nas Flores, e não o Cabo da Roca, em Lisboa. Pelo facto de serem ilhas, os Açores não deixam de ser Europa.

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