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Ainda sobre o monumento à vaca e a Capital da Cultura deixo aqui a minha resposta a uma pergunta do Paulo Do Nascimento Cabral no mural do Luis Filipe Franco porque a pergunta me parece pertinente e acho que é uma discussão que deve ser tida…
“Não concorda que a agricultura também faz parte da nossa cultura e identidade?”
Caro Paulo Do Nascimento Cabral Não, não concordo. Nem me parece que a identidade possa ser reduzida, ou sintetizada, se quisermos, a algo tão básico ou, mesmo, folclórico como a vaca ou o atum-patudo. Acho, aliás, que essa ideia deve ser combatida, sobretudo no contexto dos discursos identitários regionais, que tantas vezes tendem a cristalizar a identidade em imagens cómodas e estereotipadas, e que, no limite, cerceiam a liberdade criativa e a pluralidade do pensamento.
Na minha modesta opinião, a identidade é um movimento dinâmico, que não se reduz à agricultura nem a qualquer outro elemento isolado, como o mar, as vacas, o verde ou a bruma. A identidade é algo múltiplo e em constante reconstrução. A agricultura pode fazer parte da história e da paisagem, mas não é, nem nunca foi, a totalidade da experiência de ser de Ponta Delgada, ou mesmo dos Açores, nem sequer a sua essência.
E, a sê-lo, por hipótese, e no que estritamente tem a ver com este monumento à vaca, teria então de incluir o chá, o ananás, a laranja, o pastel, o trigo, as baleias e os atuns… se é que queremos, de facto, prestar homenagem à história dos Açores que ajudou a construir a sua identidade.
Essa visão instrumental da “identidade”, enquanto decoração naïve e folclórica, com tudo o que o folclore tem de mau e retrógrado, usada como adorno turístico, argumento político ou símbolo de uma autenticidade vazia, é um fator de atraso cultural. É, aliás, a antítese do que deve ser a Cultura. Em vez de aceitar o cliché do “povo ligado à terra”, pode-se, e deve-se, no meu entender, defender uma identidade feita acima de tudo de contradições urbanas e rurais, tensões sociais, transformações culturais e desafios contemporâneos, onde a paisagem, e a agricultura, se quisermos, ou até a monocultura da vaca, sejam antes lugares de debate e de discussão, em vez de unanimismos identitários e celebratórios.
Eu sei que é tentador reduzir a identidade a uma imagem simples e redutora, o campo, o mar, as vacas, o verde e a bruma. Há sempre uma certa nostalgia que procura conforto nesse retrato bucólico e pastoril de nós mesmos, como se bastasse a agricultura para explicar quem somos ou o bailado da garça para brindar a nossa melancolia intrínseca. Mas essa síntese folclórica é uma ilusão, por mais conveniente que seja. Oferece uma ideia estável de pertença, mas oculta as mudanças reais e as pressões que moldam o presente, onde a vaca, aliás, tal como o turismo, são fatores de dualidade e ambivalência e não de coesão identitária.
A identidade não é, nem pode ser, um museu de tradições, nem um catálogo de símbolos. É um processo vivo, feito de tensões e contradições entre o urbano e o rural, o passado e o futuro, o centro e a periferia. Posso até recomendar um pequeno livro que trata exatamente desta matéria e está à venda na Livraria SolMar…
Ponta Delgada não é apenas a memória da terra lavrada: é também o eco da cidade em transformação, onde o quotidiano já não cabe no seu substrato rural nem nas molduras dos postais turísticos, muito menos no slogan pueril das “vacas felizes”.
A razão por que esta matéria causa tanta estranheza é precisamente a alta expectativa e ambição com que os agentes culturais de Ponta Delgada, e dos Açores, julgo eu, aguardavam um evento tão impactante como Ponta Delgada Capital da Cultura. Perceber, logo no seu início, que está a ser tratado com tamanha frivolidade, numa mistura de marketing empresarial com folclore identitário, é não só desgostoso, como perturbante.