AÇORES DEVEM PREPARAR-SE PARA A PRÓXIMA PANDEMIA

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Os Açores devem preparar-se para a próxima pandemia criando uma unidade onde a epidemiologia e a saúde pública sejam pilares básicos. A ideia é de Mário Freitas, especialista em saúde pública e medicina do trabalho. O médico já trabalhou nas ilhas. É hoje autoridade de saúde em Braga. Defende que na “hecatombe nacional” da Covid19 os Açores foram salvos por Tato Borges, que saiu das ilhas demasiado cedo.
Diário Insular: Esteve em Angra do Heroísmo a proferir uma conferência no âmbito das Jornadas Parlamentares do CDS-Açores. Anotou diferenças na evolução da pandemia de Codiv19 entre os Açores e o Continente. Pode traçar o quadro geral dessas diferenças?
Mário Freitas: Os serviços de saúde pública servem para que, quando aconteça uma situação como esta pandemia, se consiga baixar o número de “casos” (doentes) para um valor que seja sustentável para a sociedade, ao nível da incidência (pessoas doentes não trabalham, e esse absentismo em elevada proporção leva ao colapso da sociedade), ao mesmo tempo que reduzimos (ao máximo) a mortalidade pela doença. Nesta pandemia podemos constatar, em termos de incidência em Portugal Continental, essencialmente duas importantes curvas, vagas, que destaco entre as diferentes vagas. A vaga de incidência que aconteceu entre novembro/2020 e março/2021, numa altura em que ainda não tínhamos população vacinada, e por outro lado a vaga que aconteceu entre sensivelmente novembro/2021 e fevereiro/2022. Esta última com níveis de incidência absolutamente estratosféricos, e que podemos associar à emergência da variante omícron.
Ora, em termos de mortalidade, a primeira destas vagas teve um impacto brutal: no dia 3 novembro de 2020 Portugal tinha um valor acumulado de mortes por COVID19 que andava à volta dos 2500 óbitos; apenas 4 meses depois esse valor ultrapassava os 16000 óbitos.
Ou seja, mais de 13500 compatriotas nossos morreram, por COVID19, em apenas 4 meses. Uma das maiores catástrofes da História de Portugal!
Posteriormente, em Portugal Continental voltamos a ter alguns picos de mortalidade, directamente associados à COVID19, mas muito aquém daquele pico, do início de 2021. Ora, quando olhamos para as curvas de incidência, e de mortalidade, na região Autónoma dos Açores vemos que naquele tal período de “hecatombe nacional” a região Autónoma dos Açores passou relativamente incólume, apesar de nessa altura os Açores estarem abertos ao exterior, coisa que não sucedeu numa fase inicial da doença (em que a região “se fechou” – inclusive entre ilhas). Ora, todos sabemos que medidas extremas de saúde pública podem ter, e acabam por ter, um impacto fortíssimo a nível social e económico. E, este aspecto tem de ser colocado na mesa, quando se tomam estas medidas… Posteriormente, no período que decorre entre dezembro/2021 e maio/2022 os Açores, mas em particular São Miguel, tiveram uma incidência muito alta, havendo períodos em que foi extremamente elevada, e com um impacto elevadíssimo nos serviços de saúde.
DI: Os Açores tiveram uma Comissão de Luta Conta a Pandemia, entretanto extinta. Que papel atribui a essa comissão, que foi presidida pelo Dr. Tato Borges? Há um antes, um durante e um depois da comissão? Concorda com a extinção da comissão?
MF: Repare: Quando se actua perante uma epidemia, ao nível da saúde pública, há 2 importantes níveis de implementação das medidas, o nível local e o nível regional/nacional. Ora, nos Açores, como é sabido, há autonomia ao nível da saúde. Debrucemo-nos sobre aquela importante curva que referi anteriormente, a de mortalidade, catastrófica, que vai de novembro/2020 a março/2021. Nesta altura, a região autónoma dos Açores teve uma mudança de governo, e o novo governo definiu como prioritário, ao nível da saúde, controlar a epidemia nos Açores (ao mesmo tempo, na passagem de um governo para o outro a curva epidémica tivera um acentuado crescimento, em particular em São Miguel) reduzindo assim o seu impacto, quer ao nível de doentes, quer ao nível de mortos.
Eu destacaria dois aspectos fundamentais nesta nova definição política: por um lado a decisão, certíssima, de iniciar a vacinação pelos mais vulneráveis (recordo que no Continente se começou pelos profissionais), pelos Lares de idosos, e, por outro lado, a criação da comissão liderada pelo Dr. Tato Borges, um jovem médico de saúde pública, reconhecido a nível nacional (actual presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública), com um conhecimento à prova de críticas, a que (paradoxalmente) foi sujeito permanentemente. Foquemo-nos nos resultados: o Dr Tato Borges passa por essa “hecatombe nacional” salvaguardando a saúde dos açorianos de forma exemplar, usando estratégias cirúrgicas de intervenção (nomeadamente, o isolamento das áreas geográficas onde a incidência da doença era maior, enquanto se permitia “liberdade de movimentos” em todas as outras áreas – numa fase inicial da epidemia nos Açores a estratégia passou por isolar concelho a concelho…) e reduzindo, substancialmente, quer o impacto económico e social da doença, quer das medidas tomadas para controlo da doença. Ora, o Dr. Tato Borges deixa os Açores em setembro/2021 com um acumulado de 42 óbitos por COVID19. Façamos um exercício (bem sei, difícil de fazer), mas apenas para efeitos meramente “académicos”: Isto equivaleria, no Continente português, a termos um número acumulado de óbitos por COVID19 de cerca de 1600, na mesma altura. Ora, em Portugal, nessa altura, havia um acumulado de cerca de 18000 mortes por COVID19… consegui que fique claro quantas vidas foram salvas, pela estratégia utilizada nos Açores…? E, quantas vidas foram salvas pela vacinação – urgente – dos mais frágeis e vulneráveis?
Faço mais um apelo à sua memória, porque é importante fazê-lo: houve muitos, alguns com elevada responsabilidade, que numa fase em que havia poucas vacinas disponíveis entendiam que elas deveriam ser “desviadas” dos mais frágeis para jovens, residentes em áreas geográficas de elevada incidência.
Dir-me-á, agora que conversamos os dois, que isso não teria feito qualquer sentido. Efetivamente não teria. Efetivamente não foi feito. Mas, efetivamente, muitos insistiram para que tal fosse feito.
Este ruído permanente, criado à volta de cada uma das medidas implementadas (e que se revelaram certíssimas), a certa altura, acredito, poderá ter criado uma sensação de exaustão no Dr Tato Borges, como se o dia-a-dia da gestão da Pandemia não fosse já suficientemente cansativo.
A extinção da comissão foi uma decisão tomada por quem de direito, legitimado para o fazer.
Obviamente que, o nível, a qualidade, que o Dr Tato implementara nos Açores era difícil de igualar.
E, esta é uma variável importante, muito importante, no combate a uma epidemia: a qualidade técnica e científica de quem toma decisões, nesta matéria.
Até porque, após a sua saída, a emergência da variante omícron trouxe novos desafios para a região autónoma … nessa altura, final de 2021, assiste-se a uma taxa de positividade de testes muito elevada (sinal de elevada contaminação na Região), e neste cenário entendeu-se reduzir o tempo de isolamento de “população doente”, de 7 para 5 dias. Ora, pense comigo, se tem uma nova variante, muito mais contagiosa do que as anteriores, “à solta”, para controlar a epidemia e reduzir mortalidade nos mais vulneráveis, o que acha que é mais importante: ter alguém “presumivelmente negativo” em casa mais 2 dias, ou ter alguém positivo (doente e contagioso) na rua? A cautela a que a Comissão nos habituara, aqui não existiu. Esta medida antecede a vaga, em particular em São Miguel, que durou muitos meses, e que poderia ter levado a um colapso dos serviços, nomeadamente hospitalares. No HDES atingiram-se as 82 camas com doentes COVID19 (e, aqui é indiferente aquela conversa do “por covid” ou “com covid”: um doente covid tem de estar isolado, exige medidas extra de prevenção de contaminação, nomeadamente em ambiente hospitalar, e a certa altura se “não houverem camas livres” isto significa apenas que “não há camas livres”… e “livres” significa “disponíveis para todas as outras doenças”, que continuam a existir), um número brutal, para os meios da Região. Por isto, sim, extinguir a Comissão pelo menos 6 meses depois teria sido mais previdente.
DI: Desafiou a Autonomia a ser ousada nas medidas no âmbito da Covid19, não ficando à espera das decisões nacionais e sustentando cientificamente o seu caminho. Pode desenvolver esta ideia?
MF: Quando eu falo da Autonomia dos Açores falo com o coração, e falo com a razão. Com a razão, uma vez que esta possibilidade de “pegar” em 9 unidades epidemiológicas, livres da estrutura burocrática, pesada, em que assenta qualquer ministério, com as suas diferentes componentes, e subestruturas de decisão, é um desafio que os Açores nunca agarraram, no que toca à saúde pública. Obviamente, não vou aqui maçá-lo, uma vez que já falei de tal na conferência, dos fenómenos paradoxais em que “curiosos” sobrepõem as suas opiniões, às posições e pareceres dos técnicos. Isso aconteceu com a Gripe A, com evidências claras, estudadas, falando apenas dos dados que foi possível estudar. Porque, nisto dos dados, às vezes parece que acontecem “fenómenos cósmicos”, no local onde só pode haver seriedade nos números.
Acredito que os Açores têm todas as condições para serem ousados, no que toca à saúde pública. Que quero eu dizer com isto? Preparar a próxima pandemia (que é algo inevitável – só não sabemos a data em que tal acontecerá) como nos preparamos para qualquer emergência, ou catástrofe. Criar uma entidade onde a epidemiologia e a saúde pública sejam pilares básicos, coordenando uma estrutura laboratorial, associada, para monitorização, vigilância e deteção precoce, e coordenando uma outra estrutura, esta dedicada à comunicação com a população, de forma a que se facilite ao máximo a adoção de medidas de prevenção pelos cidadãos. A par desta entidade, reformar os serviços de saúde pública da Região Autónoma. No fundo, criar condições para que os Açores estejam preparados para a próxima pandemia, de uma forma que impeça que cenários de desorientação (decerto todos nos recordamos do episódio do avião de Hong Kong que entrou em São Miguel, no início desta Pandemia…), ou em que a intervenção técnica seja desadequada (recordo a Gripe A), se repitam. Independentemente daquelas que possam ser as orientações a nível nacional, os Açores podem, e devem, pegar na evidência científica e tomar as melhores decisões, na defesa da saúde do povo açoriano. Recorda-se das máscaras…? No início da pandemia, em serviços de saúde da região, não haviam as máscaras adequadas para proteger os profissionais… e, apesar de tudo aquilo que já sabíamos, até empiricamente, mais tarde o uso de máscaras na comunidade andou a reboque de orientações nacionais, que não eram as mais adequadas.
DI: Somos surpreendidos com dados sobre mortalidade geral que talvez possam ser considerados assustadores. Na sua opinião, quais as causas de tantos mortos? E como podemos interpretar dados sobre a Covid nos Açores que são muitos divergentes em óbitos (e também em infetados) entre as estatísticas regionais e as estatísticas nacionais)
MF: Olhando para os números que me apresentou o que me parece estranho, nesta divergência entre as duas fontes de informação (DRS/DGS) é tal acontecer, com esta dimensão, apenas a partir de março deste ano. Não sei as causas, mas é inevitável esta constatação. Obviamente, também me parece estranho que desde junho, há mais de 3 meses, não tenha ocorrido qualquer outro óbito, nos Açores, por COVID19. E quando digo estranho, mais uma vez o faço sem qualquer juízo de valor, apenas o faço pensando epidemiológicamente.
Quanto à mortalidade, constatamos em vários períodos deste ano, a nível nacional um aumento da mortalidade, acima do expectável. Essa situação, pelos dados que o vosso jornal apresentou, aconteceu também nos Açores, de forma sustentada, ao longo deste ano. Vivendo de perto esta fase da epidemia, e recordando os altíssimos valores de incidência durante boa parte deste ano, ao mesmo tempo que olho para a taxa de adesão à terceira dose da vacina, não posso deixar de especular uma possível relação causal, a dois níveis (entre outros que possam existir): Por um lado, a eventualidade de pessoas com doenças crónicas, que descompensaram durante este período pandémico (porque elas deixaram de ir às consultas regulares, porque não tiveram acesso às mesmas, etc), acabando por morrer em consequência das doenças crónicas que já tinham; por outro lado, podemos ter mais desfechos fatais decorrentes da COVID19 do que aquilo que colhemos diretamente… Uma das principais fontes de informação em saúde é precisamente a mortalidade; dito de outra forma, a informação que consta do certificado de óbito permite-me também perceber o estado de saúde de uma população. Ora, esta informação tem de ser analisada e tratada em tempo útil, para se perceber o que está a acontecer à saúde da nossa população, e poder tomar medidas atempadas.
DI: Está a ser observado com estranheza o facto de a China optar por isolar milhões de pessoas quando são registados poucos casos de infeção (vinte casos, por exemplo), quando entre nós começamos a dar pouca importância ao vírus. Não há explicações. Terá isto a ver com o chamado Covid longo, sabendo os chineses coisas que não sabemos?
MF: Sabe, eu retive, em particular, da intervenção do senhor presidente do CDS, e vice-presidente do governo dos Açores, Dr Artur Lima, uma expressão que achei particularmente feliz. Acredito que o facto do senhor vice-presidente ser também ele médico, não será alheio a essa frase, sobretudo se associarmos o perfil vincadamente humanista a que o Dr Artur Lima nos habituou. A expressão foi “eu sou muito conservador, quando se trata de defender vidas humanas”. Todos os médicos fazem o juramento de Hipócrates, jurando defender a vida humana, e proteger a saúde de cada doente. Quando falamos deste vírus (Sarscov2) falamos de algo de que ainda sabemos muito pouco, pois com ele convivemos apenas desde dezembro de 2019. Mas, sabemos que já provocou cerca de 7 milhões de mortes em todo mundo, que tem um impacto elevado, e ainda mal estudado, das suas consequências a curto e médio prazo (aquilo que já chamamos “COVID longa”), pelo que obviamente todo o cuidado é pouco. Há poucos dias a autoridade de saúde dinamarquesa dizia que é prudente evitar a reinfecção. Ou seja, vacinado ou não, sabendo nós que este vírus cria variantes a uma velocidade estonteante, pelo sim pelo não, se faz favor, tome cuidados para não se infectar. Foi esta a mensagem. E há cuidados que são muito simples de tomar…
Ora, eu, que estou aqui a falar, sou médico com 25 anos de experiência, quase 3 anos a combater este vírus, e um defensor intransigente da vida humana. Mas, nos antípodas desta visão, temos aqueles que dizem que isto é apenas uma gripezinha, que “não tem consequências”, que “nas crianças não traz danos”, e outras barbaridades que tais. Quando toda a evidência científica rejeita esta última visão. Quando todos os estudos científicos, publicados em revistas e jornais de referência, dizem o oposto do que estes minimalistas (chamemo-lhes assim) dizem.
No início desta epidemia, numa conferência emitida a partir de Macau, eu disse qualquer coisa deste género “Esta pandemia (e olhando para os grupos etários que mais morriam nela) será um enorme desafio civilizacional”: somos ou não capazes de proteger os mais vulneráveis das nossas sociedades? Desde os primórdios da humanidade, quando começamos a proteger aqueles que ficavam feridos por ataques de animais, e muitas vezes protegemos com a nossa vida a vida deles, a humanidade teve momentos altos, e momentos baixos, precisamente no que toca ao que de mais belo há na Natureza Humana: a bondade, a solidariedade, a compaixão, a capacidade de tratarmos os outros como desejamos que nos tratem a nós. Para o futuro, para a História, este momento que vivemos, esta Pandemia, será um momento alto ou um momento baixo?
Numa fase inicial acreditei que seria um momento alto. Um exemplo de Humanidade, para a Humanidade do Futuro. Depois, começaram a aparecer as justificações de que alguém que morrera com COVID19 já tinha várias comorbilidades (doenças). Agora, estas mortes são encaradas com toda a naturalidade do mundo, apesar de ainda serem uma multidão, diariamente, no mundo…
Efetivamente, é provável que estejamos a entrar numa outra fase da pandemia. Talvez estejamos a iniciar a endemia. O que eu não acredito, quer tecnicamente, quer enquanto pessoa, é que uma vida humana valha menos do que outra vida humana, independentemente das doenças que aquela vida humana tenha. E este é o ponto-chave para encararmos esta, e todas as próximas pandemias. É que os que “minimalizam” esta pandemia, podem vir a ser “minimizados” na próxima.
(Diário Insular de 24.09.2022)
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