A ligação cultural e de sangue a Macau e Timor-Leste

A ligação cultural e de sangue a Macau e Timor-Leste
27 Nov, 2014

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Nasceu há meio século em Timor, tal como os dois irmãos. Corre nele sangue de várias origens e diásporas: macaense por parte materna, português europeu, chinês, mexicano, timorense e até inglês. Filho do falecido capitão Canuto, morto em território indonésio em circunstâncias nunca bem esclarecidas, Alexandre Miguel, cidadão de Macau, foi aluno do Colégio Militar, tenente miliciano, tem o curso de paraquedismo, e na grande fusão cultural que constrói a sua vida, dedica grande parte das reflexões a Macau, à China e a Timor-Leste

Helder Fernando

Apresenta-se Alexandre Miguel Canuto, cidadão de Macau: “as minhas origens são muito engraçadas. A nossa mãe era filha de chinesa e pai mexicano; o nosso pai, de ascendência portuguesa, tinha avô inglês. Nasci em Timor, sou oficialmente cidadão da RAEM onde vivo. Dos meus filhos, Ricardo, o primeiro, nasceu há 23 anos em Portugal, fez o estágio no Four Seasons em Macau, e a minha filha Rita, nasceu em Macau no ano histórico de 1999, foi o último bebé feminino a nascer aqui antes do momento transição”.

Das principais recordações de Alexandre Miguel, a frequência com que em casa se conversava sobre Macau. Dando continuidade à diáspora e ao apelo macaense, insiste em sentir-se como em terra sua, nesta região chinesa onde deseja “continuar a viver, a construir amizades, a contribuir com o que me for possível, para o seu prestígio e desenvolvimento. Terra que tanto me disse e tanto todos os dias sinto que tem para me dizer”.

Seu pai, o oficial de carreira César Canuto – “do curso do Senhor General Ramalho Eanes, tendo também conhecido na Academia Militar o Senhor General Rocha Vieira”, faz questão de sublinhar Alexandre Miguel Canuto, este filho, hoje integrando esta série “Perfis da Nossa Gente” – aqui conheceu Marta Sanchez, jovem senhora macaense, de mãe chinesa e pai mexicano, com quem casou na Igreja de Santo António. A vida militar levou-o até Timor Leste onde nascem os três filhos – César, em 1963, quadro de um banco em Lisboa, Alexandre Miguel, em 1964, exercendo funções num escritório de advocacia em Macau, e João, em 1966, professor de mandarim na Universidade Católica no Porto.

Tinha Alexandre Miguel dois anos, em 1966, quando a mãe e os filhos, o João nascido recentemente, abandonam Timor debaixo de enorme tristeza – o pai de família, o capitão César Canuto, morrera repentinamente em território indonésio em circunstâncias que este seu filho considera ainda não esclarecidas: “o processo continua secreto”.

Do que leu desse processo, fica esta síntese: “Em Dezembro de 1966, por acordo com as autoridades indonésias, meu pai foi enviado, juntamente com um condutor, a Timor indonésio para trazer de volta uns prisioneiros que tinham desertado do exército português. Destinado a determinado hotel, foi obrigado por elementos indonésios a alojar-se num outro. Era eu tenente miliciano, com ajuda de algumas pessoas de que não revelo a identidade, consegui consultar os autos onde vem indicado que um jornalista suíço alertou-o no sentido de meu pai ter muito cuidado. Também há declarações do condutor dizendo que meu pai foi interrogado pelos indonésios. Relaciono este interrogatório com um facto de que eu só tomei conhecimento muitos anos depois, graças a testemunhos timorenses: ele trabalhava em criptografia, como se sabe uma escrita em cifra que envolvia documentação secreta trocada entre Portugal e Timor. Recusou revelar fosse o que fosse, retirando-se sozinho para o quarto. Pelas declarações dos indonésios que constam no processo, nessa noite ouviu-se um tiro no quarto, meu pai foi encontrado morto por bala na cabeça. Na versão indonésia, suicidou-se. Acontece que, pelo que as fotografias mostram, a bala entrou pela têmpora esquerda, só que meu pai nunca foi canhoto, não podia ter-se suicidado como tanto se esforçaram por convencer a nossa família. Em Portugal, oficialmente a morte está registada como acidente de viação, em serviço, para que minha mãe pudesse receber a pensão de sangue”.

Na época, Portugal perdera os territórios indianos, suportava a guerra colonial em três frentes africanas, em Macau viviam-se momentos algo dramáticos com o célebre “1, 2, 3”, a rebelião chinesa contra a governação portuguesa neste território. Um tempo amplamente crispado na política portuguesa. Alexandre Miguel fala num agente da PIDE enviado a Timor com a missão de “abafar tudo. Daí que muitos camaradas de armas, tantos anos depois, não falem deste assunto. Compreendo, o meio castrense possui um código de honra que, entre outros registos, recomenda que não falando na altura, não falarão depois. Fui aluno do Colégio Militar, sei o que são essas regras. Também consta dos autos as honras militares feitas pelos indonésios na entrega do corpo à parte portuguesa. Consegui saber muita coisa através de várias pessoas. O nosso Governo não quis tornar público que o meu pai sofrera interrogatório pelos indonésios. Mantém-se a dúvida se terá sido torturado antes de abatido, como penso que foi. Nunca deixaram que minha mãe falasse com o condutor, furriel português que o acompanhou na referida missão e que presumo tenha sido imediatamente recambiado. Nunca consegui chegar à fala com ele. As autoridades portuguesas terão instruído militares e talvez as esposas destes para afastarem a minha mãe até dos mainatos”.

Enviados logo para Macau, a viúva com 30 anos, o filho João com seis meses, o César 4 e Alexandre Miguel com 2 anos de idade. Era Governador o general Nobre de Carvalho. Imediatamente sob escolta, são levados até Hong Kong seguindo depois para Portugal onde os avós paternos, Sofia e Afonso, assumiram a educação dos filhos do capitão César Canuto. Externato Frei Luis de Sousa em Almada, depois todos os três irmãos no Colégio Militar, na Luz.

Outros episódios algo rocambolescos, alguns com cenário de tristeza, preenchem a vida desta família habituada ao rigor, disciplina e solidariedade. Naturalmente não cabem neste espaço.

Alexandre Miguel forjou-se em quase duas décadas de vida militar, contando os anos no Colégio Militar e os nove como militar propriamente dito. Foi activo em várias missões sobre as quais recusa falar. Entretanto obteve o curso de paraquedismo –“até que me desiludi, não com o meio castrense, mas com o modo como o Governo tratava os militares. Estes merecem mais respeito por parte dos nossos políticos”.

Um dos grandes desgostos no seio familiar, fica assim registado: “Minha mãe, órfã desde os três anos, pai mexicano ausente de Macau para tratar de vários assuntos e depois presumivelmente falecido no exterior, guardou com ela uma das maiores mágoas que era também desgosto profundo de minha avó chinesa; diz respeito ao facto de durante muito tempo as autoridades portuguesas em Macau não terem sido justas para com a comunidade chinesa”.

Questiono Alexandre Miguel sobre esta reflexão. Responde com serenidade: “Minha avó não dominava a língua portuguesa, minha mãe pouco português falava. Foram publicados editais avisando que os corpos sepultados no cemitério de S. Miguel tinham de ser reclamados das campas ou seriam enviados para vala comum. As autoridades de então pouco publicavam em língua chinesa. Um dia, minha avó e minha mãe levavam flores para depositar na campa da minha bisavó, Estela Maria, também chinesa. Verificando que a campa já lá não estava, disseram-lhes que o corpo estava na vala comum. Nada puderam fazer. Se o chinês não tivesse poder, força, as autoridades portuguesas não se interessavam. Fácil imaginar o desgosto repentino de minha mãe e minha avó. Ainda hoje, quando vou ao cemitério de S. Miguel homenagear os meus antepassados, chineses católicos, coloco flores nas duas valas comuns porque desconheço em qual delas estão os restos mortais deles. Temos de sentir, como portugueses, que foram feitos erros gravíssimos fosse com preto, com branco, com indiano ou com amarelo. A nossa história da colonização não é uma história de rosas, é de muita vergonha que temos hoje de sentir”.

Fazendo Timor parte da fusão cultural de Alexandre Miguel Canuto, é também tema de reflexão, onde pode caber polémica: “como natural de Timor-Leste, gostaria que a história fosse clara em relação à invasão indonésia feita com acordo da NATO, pois a Indonésia jamais atacaria um seu membro se para tal não se sentisse à vontade. Nos anos 70 vivia-se em plena guerra fria, a Indonésia sofria constantes sublevações comunistas reprimidas com dureza. Eventualmente, Timor-Leste poderia tornar-se um país comunista, uma ‘nova Cuba’, facto inadmissível no momento histórico e político da época, tendo ainda em conta a posição geográfica. Timor leste, o seu povo, foram sacrificados, incutiu-se o medo que é ferramenta fundamental quando se pretende dominar por completo”.

Macau nestes dias de RAEM: “a comunidade portuguesa, incluindo obviamente os macaenses, devia ser mais unida. Quem tem muitas vezes garantido a língua portuguesa aqui, não têm sido apenas os portugueses de Portugal, mas também os macaenses. Inclusivamente, se tivéssemos uma forte associação cívica, talvez elegêssemos mais de um deputado português na Assembleia. Alguns portugueses que já foram deputados e provaram o seu valor, talvez pudessem regressar e representar a comunidade”.

Comunidade portuguesa tradicionalmente pouco investidora nestas paragens: “Podíamos ter investido muito mais em Macau e na China. Os nossos empresários que ao longo dos anos acompanharam comitivas oficiais fizeram muito pouco. O que vemos no mundo empresarial português em Macau são donos de restaurantes, o que é excelente, mas deviam existir muitos outros exemplos”.

Comentando a transição da administração de Macau para a RPC, que Alexandre Miguel viveu aqui de perto, constata que “a China tratou-nos e respeitou-nos de igual para igual, como poucos países o fizeram com Portugal no último século, incluindo a NATO e a então CEE que raramente nos apoiou na questão de Timor-Leste. Era fácil ver que os elementos da delegação chinesa nas negociações, para além de conhecerem a nossa língua, conheciam a história, a política e a cultura portuguesas, eram extremamente competentes. Enquanto a delegação portuguesa, estou certo que bons negociadores fazendo o melhor que podiam, não falavam chinês, não mostravam conhecer as realidades da Grande China com o mesmo pormenor que os negociadores chineses conheciam as realidades de Portugal. Não duvido do grande valor das delegações portuguesas nas negociações sobre a transição, mas nitidamente era-lhes muito mais difícil”.

Miguel Canuto acrescenta com alguma mágoa: “não houve um verdadeiro auscultar das figuras mais representativas da comunidade portuguesa em Macau para que igualmente e de alguma forma, pudessem fazer parte das negociações. Quando um aluno não estuda convenientemente a lição, arrisca-se a ter má nota no exame. Neste caso foram diversos Governos em Portugal que não souberam preparar a lição”.

Por contraste, Canuto opina sobre o comportamento da governação chinesa em relação a Macau e também à comunidade portuguesa: “a segurança nas ruas, salários mais altos que em Portugal, investimento sem a carga fiscal praticada noutros lados, o que podemos comprar, restaurantes e outros locais que podemos frequentar, férias que temos oportunidade de gozar, a vida que damos aos nossos filhos. Sim, as rendas estão caras, mas não estão apenas para os portugueses, estão para todos, não devemos ser tão queixinhas”.

Como cidadão residente, Canuto apela à vinda de bons médicos, como também gostaria que o Centro Histórico, património da Humanidade, “deixasse de ser uma ourivesaria gigante com bolinhos à mistura e cheirinhos de perfumes para agradar a quem passa e onde constantemente o residente tem de pedir licença para conseguir dar um passo”.
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