a agonia do estado laico (eu, ateu me espanto com tudo isto)

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« (…) O envolvimento do Estado (Governo e autarquias) no financiamento e organização da Jornada Mundial da Juventude da Igreja católica é, provavelmente, a mais grave violação do princípio constitucional da separação do Estado e das Igrejas desde que foi institucionalizada a democracia. Por três ordens de questões.
A primeira é de moralidade social. Apesar de ninguém querer fornecer dados globais da despesa pública com este evento da Igreja católica, os números conhecidos apontam para bem mais de 80 milhões de euros. O Governo e as autarquias de Lisboa e Loures forneceram terrenos, prepararam infraestruturas, fizeram pontes, construíram palcos megalómanos, asseguraram telecomunicações, mobilizaram forças de segurança à escala nacional, arranjaram transportes, cortaram trânsitos e acessos para que a Igreja católica pudesse levar a cabo a sua majestática mobilização religiosa. De tal forma que soa estranha ao discurso desclericalizante e de justiça social do Papa Francisco.
Num país com um dos mais altos índices de desigualdade e dos mais baixos salários da União Europeia e com gravíssimos problemas de acesso à habitação ou de sustentação de serviços públicos essenciais, investir somas do erário público deste montante como privilégio cerimonial de uma crença religiosa é social e politicamente imoral.
Poupem-nos às justificações deliquescentes dos idílicos jardins floridos que vão ficar, ou às mais cínicas piscando o olho às expectantes negociatas do turismo e do alojamento local. Precisamente o que se reclamaria de gasto público tamanho é que fosse aplicado no interesse geral, ou seja, que ajudasse a resolver algumas das mais urgentes prioridades que enfrenta o país. Por isso, obrigado, Bordalo II.
A segunda é uma questão de princípio e de legalidade. Ao apadrinhar financeira e politicamente a mobilização religiosa da Igreja católica, ao atribuir-lhe um tratamento que configura um enorme privilégio sustentado pelos dinheiros públicos, o Governo e as autarquias que se lhe associaram violam abertamente a natureza laica do Estado, constitucionalmente estabelecida. E com isso atentam contra o princípio democrático e também constitucional da liberdade religiosa e de crença, pois a primeira condição para ela existir é a neutralidade religiosa do Estado. Neste melancólico entardecer das democracias, parece que em Portugal se vai regressando, sem protesto de quase ninguém, aos tempos do neorregalismo funcional em matéria de relações do Estado com a Igreja católica que caracterizaram a ditadura estado-novista.
A terceira é a questão da atitude simbólica de quem nos representa. Quando o Presidente da República faz questão de misturar sistematicamente no exercício das suas funções o seu papel de chefe do Estado com o de exuberante coadjutor da hierarquia católica; quando o primeiro-ministro socialista entende, enquanto chefe do Governo e sem vislumbre de estados de alma, participar nas missas papais; quando o presidente da Câmara de Lisboa, fingindo trazer a cruz da procissão às costas, se desdobra em exteriorizações patéticas de uma devoção toda ela bafejada pelo espírito mais prosaico de caça ao voto; quando os partidos parlamentares (com as honrosas exceções do Bloco e do Livre) se acotovelam para ficarem na fila da frente das cerimónias eclesiais; perante um tão beatífico cenário de unção religiosa por parte dos que deviam ser os primeiros a respeitar e a fazer respeitar a neutralidade religiosa das instituições públicas, eu pergunto se é possível deixar de pensar que estamos, despreocupadamente, a assistir à agonia do Estado laico enquanto pilar fundamental do regime democrático.
No que me toca, sou um cidadão republicano, ateu e socialista, e consequentemente convicto defensor da liberdade de crenças e descrenças. Por isso mesmo, não concebo que os impostos pagos por todos sirvam para financiar as espaventosas cerimónias religiosas só de alguns. Mesmo que estes se considerem religião maioritária. E precisamente por isso mesmo..»
[Fernando Rosas, “Público”, 2/08/2023]
PUBLICO.PT
A agonia do Estado laico
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  • €80 milhões de dinheiro público para vir cá o Papa? Vamos lá analisar melhor, porque eu até acho que no fundo estamos a ser abençoados. Sigam: @casaeumdireito Dia 1 de Abril saímos à rua.
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    €80 milhões de dinheiro público para vir cá o Papa? Vamos lá analisar melhor, porque eu até acho que no fundo estamos a ser abençoados. Sigam: @casaeumdireito Dia 1 de Abril saímos à rua.

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    • 1 d
  • José Mário Costa

    « (…) Somos um Estado laico no verbo constitucional, mas não na prática. É perturbador ver cerimónias de inauguração de obras públicas com o alto patrocínio de representantes do Estado sujeitas à bênção do bispo da diocese. Não se pode invocar o “costume”, porque a deslaicização do Estado teria fraturado os ossos desse costume. A menos que seja apenas por superstição (abençoar a obra para lhe emprestar sorte divina) e entramos no domínio do paganismo. É intrigante ver jornalistas muito excitados com o conclave da juventude católica a entrevistarem um membro do clero ou uma jovem peregrina, parecendo que os plumitivos saíram diretamente de um convento para a redação do canal televisivo. É inaceitável que um Presidente da República não tenha conseguido despir a sotaina metafórica depois de ter sido eleito, como se representasse a hierarquia eclesiástica antes de representar quase 11 milhões de cidadãos.
    Podem os católicos invocar que o catolicismo é a religião dominante e que os seus direitos de manifestação de fé devem ser defendidos. Esses direitos não estão em causa. Acredito que nem o “anticlerical primário” defenderá o encerramento de locais de culto e a perseguição de católicos (a menos que gravite na órbita de supressão das liberdades, que os há). Os privilégios que a Igreja continua a ter não batem certo com a Constituição, deixando-a num patamar superior em relação a outras confissões religiosas. O laicismo do Estado não é respeitado e os privilégios dos católicos violam a igualdade entre as confissões religiosas. Esse é um dever de um Estado laico: sem haver religião oficial, todas as confissões religiosas têm (ou deviam ter) os mesmos direitos. Sem inventariar os fieis para aplicar leis de proporcionalidade que não são reconhecidas pela Constituição.
    Não se pode tolher a liberdade de credo e, portanto, não se pode impedir que um católico se despeça dizendo “se Deus quiser”. Pela mesma medida, pode alguém ficar indisposto se um ateu (talvez imediatamente abjurado como anticlerical primário) ripostar no avesso da moeda, declarando “até amanhã, sem o dedo de Deus”? Pode um ateu formular todas estas interrogações sem que os católicos o encostem a um canto, acusando-o de reconhecer Deus pela simples negação da sua existência? Pode um ateu não levar com o camartelo do anticlericalismo (e primário, se for para o menoscabar) ao notar a excitação decretada pela comunicação social quando noticia os preparativos para as JMJ? (Como se a manifestação dissesse respeito a uma maioria de cidadãos, não sendo esse o caso, a atestar pelos estudos recentes que identificam um retrocesso do catolicismo e o emagrecimento das hostes dos católicos.)
    Pode um ateu propor uma subscrição pública para ser devolvida à República Portuguesa a laicidade constitucional sem ser atirado para o anticlericalismo primário?»
    [Paulo Vila Maior, “Público”, 3/08/2023]
    PUBLICO.PT
    Pode-se perguntar pela laicidade sem se ser acusado de anticlericalismo?

    Pode-se perguntar pela laicidade sem se ser acusado de anticlericalismo?

Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
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