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MEUS POEMAS ALUSIVOS A TIMOR
V. TIMOR, Díli, Timor, setembro, 20, 1973
timor cresceu cercado
lendas que a distância empolgou
o sonho
a quietude
as 1001 noites do oriente exótico
o sortilégio dos trópicos
para o europeu
chegar era já desilusão
desprevenido
sobrevoa estéril ilha
montes e pedras
agreste paisagem sulcada
leitos secos
abruptas escarpas
terra sem marca de homem
esparsas cabanas de colmo
será isto timor?
o avião desce o vazio em círculos
em vão os olhos buscam a pista
por trás de um montículo imprevisto
se vislumbra o “T”
e a torre de controlo dos folhetos de propaganda
nunca existiu
a alfândega é o bar e a sala de espera
sob o zinco e o colmo
isto é baucau
aeroporto internacional
a vila salazar dos compêndios
que a história esqueceu
uma turba estranha se amontoa
o patas-de-aço
esta a cerimónia sagrada do deus estrangeiro
descendo dos céus
dia de festa para os trajes multicoloridos
o contraste do castanho de sóis pigmentados
cinco da matina
e é já o pó e o calor
o espanto mudo nas bocas incrédulas
as formalidades aqui com sabor novo
espera lenta e compassada
séculos de futuro por viver
antes que ele venha
antes não venha
num barracão zincado uma velha bedford
de carga com caixa fechada
vidros de plástico sob o toldo puído
pomposo dístico colonial
carreira pública baucau-díli
picada em terreno plano
mar ao fundo
baucau
cidade menina por entre palmares
densa vegetação tropical
connosco se cruzam estranhos homens de lipa[2]
galo de combate ao colo
entre torsos e braços nus
das ruínas do mercado se evocam
desconhecidos templos romanos
estrada n.º 1 até díli
sulcam-se abruptas as encostas
ao mar sobranceiras
ali se adivinham cristais multicolores
em lugar de pontes se atravessam ribeiras
enormes
leitos secos
o tempo as converteu em estradas de ocasião
pedregoso solo
cores indefinidas
castanhos e verdes
palapas [3] dissimuladas na paisagem
imagens tristes de pedras e montes
baías primitivas
inconquistas
praias de despojos e conchas
paraísos insuspeitos
as gentes de sorrisos vermelhos
assusto-me
não é sangue nas bocas gengivadas
masca, mescla de cal viva e harecan[4]
placebo psicológico da alimentação que falta
um sorriso encarnado esconde a fome
súbito
por paisagens que só a memória
sem palavras descreverá
eis díli
a capital
larguíssima avenida semeando o pó nas palapas
casas de pedra com telhados de zinco
na ponta leste chinas e timores
partilham a promiscuidade da pobreza
díli
plana e longa
a vasta baía antevendo imponente
o ataúro ilha
um porto incipiente
a marginal desagua no farol
construções coloniais pós 1945
da guerra que ninguém quis
dos mortos que os japoneses quiseram
da neutralidade do país mãe calado e violado
albergam chefes de serviço
altas patentes militares
sem guerras para lutar
sem movimentos libertadores das gentes
quinze quilómetros de asfalto
três casas dantes da guerra grande
aeródromo em terra batida
um jipe de afugenta búfalo
a rua comercial atravessa díli senhora
de leste a oeste
espinha dorsal
o centro
o palácio das repartições
do governo
perto um museu
o seu nome ostenta o vazio
riquezas sem fim
seus governadores exportaram
patriotas colonizadores de séculos com nada para mostrar
um museu morto
dois sinaleiros nas horas de ponta
ociosos às portas dos cafés
à noite transfiguram-se
os bas-fond
o texas bar
da prostituição às slot machines
o submundo
a vida underground
afogar esperanças em álcool
sonhos há muito perdidos nunca sonhados
restaurantes poucos
melhor comida a chinesa
bares espalhados pela cidade
militares e álcool para calar distâncias
um portugal dos pequeninos
longínquo
cada vez mais esquecido
nunca perdido.
1973 numa cidade sem vida
morrendo nas cinzas próprias de cada noite
por entre o silêncio e a voz triste dos tokés[5]
o calor putrefacto
por entre o voo alado das baratas gigantes
carros poucos
de dia só do estado
motocicletas pululam por entre viaturas oficialmente pretas e verdes
esperando mulheres de oficiais
às portas dos cabeleireiros
do liceu
militares a pé, em berliets ou unimogs
chineses muitos
díli é isto
a desolação
na parte alta da cidade o complexo militar
barracas insalubres
sob a sombra dos hospitais
um civil um militar
fresco e verdejante vale
triste esta cidade
pretensamente euro-africana
palapas marginando ruas
nelas vive o timor
sem água nem luz
dez ou quinze filhos
que importa
a miséria é só uma e a mesma?
esta “a terra que o sol em nascendo vê primeiro”
aqui as imagens
e são já história
não se repetirão
aqui não daremos testemunho
como transfigurar
colónias pacíficas
em palcos de guerra.
433.1. bucólica bobonariana-i, bobonaro, nov 23, 1973
a colina à esquerda ergue-se
mansamente, sem pressas
caminha do mar, reproduz-se altiva
pico agreste me vigia
não há vegetação nem sinais de gente
(terá emigrado daqui a seiva?)
as rochas puras primitivas, nascituras
erguidas por ciclópicas mãos do fundo dos mares
quedaram-se ostensivas, desafio de nuvens eternas
arbustos pequenos insignificantes como as gentes
espraia-se na vastidão o olhar (começa em mim)
só montes, pedras, horizonte
eu aqui fechado, cercado, ilha de mim próprio
o vale profundo (talvez abismo, talvez acusação)
diviso emaranhados nas brumas ciscos amarelos
(segredam-me são casas de gente)
ENTÃO PARTO
sem hesitar cavalgo
pedras
ribeiros
encostas
subo
desço
e nada destrinço
insensível à rude beleza
atinjo inóspito cume
estranhamente plano
nele plantaram casas
cinco ou seis
uma ao centro
baixo-me e entro
teto erguido a pique
muro de pedra a tocar baixo sobrado
térreo madeirame trabalhado segue as vigas
quadros sacros
sol
elementos
animais
no andar elevadiço
um lar entesourado em morada última
assusto-me
em volta ósseas relíquias
cheiro imenso a fumigação
saio
respiro ar puro
sacrossanto
das montanhesas cercanias
uma laje quadrada
uma placa tipo tumular
flores murchas e perdidas
casas sem muros
no andar térreo
animais se abrigam
por cima pessoas alojadas
deitadas
a nascer
a cozinhar
a comer
a dormir
a morrer
quando as chuvas tombam
e o colmo amolece
quando o sopro do vento vem
rasgar a mirrada pele
nascem surdos lamentos
ninguém ouvirá
olhei e vi gente
acocorada
semidespida
esquelética
nuas crianças
algumas de colo
a mim chegaram
sorrindo orgulhosas da alva pele
pedindo as fotografasse
como quem se afirma
compreendi esse estranho orgulho ilegítimo
bastardo
mulheres se alugam para não perecerem
da fome vil
quando novas servem de pasto
a abutres forasteiros
depois
escavacadas
descarnadas
desdentadas
mascam infindáveis sementes
esboçam sorrisos
para a objetiva acusadora e cúmplice
não mais suportei este dantesco inferno
saí
acenei
virei costas e voltei ao exílio.
– NAUSEADO –
433.2. bucólica bobonariana II. Bobonaro, nov 23, 1973
(permaneci calado traído por pensamentos galopantes
onde as mulheres, cadê as crianças?
que gente esta, donde vem?
que peso arrasta penosa, mecanicamente?)
ao longe divisei um ancião
vergado como uma aduela
corri para ele, inspirou-me medo
fez um gesto vago, um arremedo a suster-me
estaquei na distância
nem um pássaro riscava a muda quietude do céu
tremi
como se de súbito
me penetrassem
as respostas todas
virei costas
corri, corri
e aqui estou hoje
a dar-vos conta
do que assisti
eu vi-os
de olhar gasto e gestos caídos
vinham com neves eternas nos cabelos
enxada às costas
vergados ao peso de séculos
maltrapilhos
descalços
rotos
bronzeados por sóis perdidos
na memória dos tempos
uma grande fome para contar
e o silêncio sem fim
de todas as solidões
falei-lhes
acenaram sem se deterem
cadência de autómatos
sem vontade
explicaram por gestos
o que presumi sorriso
nas gengivas descarnadas informes
perguntei
donde vinham
de que estranha guerra
sobreviviam
sem abrandarem a insólita marcha
puxaram da bia sem idade
acenderam-na na concha dos dedos recurvos
suspiraram fundo como jamais ouvira
era um sopro indefinido
murmurado
amargo
entretanto havíamos chegado
povoado estranho sem gente
nem cães ladrando em redor
casas singulares
elevações de colmos
suspensas de estacas mudas
sem janelas nem portas
um silêncio velho de morte
imperioso deixar a alma
deste ritmo
parar
deixar o instante
deste tempo
renascer
eterno
esta a proposta inicial
iniciática
até lá, como?
434. a lepra. Díli, dez 3, 1974
eu vi-os
de olhar gasto e gestos caídos
vinham com neves eternas nos cabelos
enxada às costas
vergados ao peso de séculos
maltrapilhos
descalços
rotos
bronzeados por sóis perdidos
na memória dos tempos
uma grande fome para contar
e o silêncio sem fim
de todas as solidões
falei-lhes
acenaram sem se deterem
cadência de autómatos
sem vontade
explicaram por gestos
o que presumi sorriso
onde só havia gengivas descarnadas
informes
perguntei
donde vinham
de que estranha guerra
sobreviviam
sem abrandarem a insólita marcha
puxaram da bia sem idade
acenderam-na na concha dos dedos recurvos
suspiraram
fundo
como jamais ouvira
era um sopro indefinido
murmurado
amargo
entretanto havíamos chegado
povoado estranho
sem gente
nem cães
ladrando em redor
casas estranhas
elevações de colmos
suspensas de estacas
mudas
sem janelas
nem portas
um silêncio velho de morte
deixar a alma
deste ritmo
parar
deixar o instante
deste tempo
renascer
eterno
esta a proposta
inicial
iniciática
até lá, como?
[1] cacatua-bote ou patas-de-aço eram designações dadas pelos timorenses aos aviões
[2] lipa, saia de tecido colorido, típica, de origem malaia, os timorenses usam-na enrolada à cintura descendo até aos tornozelos.
[3] casas cónicas, quadradas ou retangulares em colmo
[4] folha de planta semelhante à do tabaco
[5] espécie de lagarto sonoro, cuja idade se determinava pelo número de vezes que emitia o som toké.
[6] lúlic significa sagrado em tétum
[7] o equivalente a deus em língua tétum
[8] designação dada aos brancos pelos timorenses
450. o teto do mundo. díli, dezº 3, 1974
como romper as palavras?
o som e o lamento do ai-tassi
sagrado lenho
em ti se moldaram
faces e rugas milenárias
caminhos de teto do mundo
nas mãos vazias viaja o passaporte
para que não sucumbas hoje
há muitas mortes nos amanhãs
teus pés ligeiros voam vinte quilómetros
o cacho solitário que colheste
bananas com que não matas as fomes
enganas malai com parco lucro
e teu rosto infantil e puro sorria
vendeste a sobrevivência duma semana
caminhas curvado e galgas montanhas
teus os reinos de Railaco e TataMaiLau[2]
por isso retornas e teu sorriso é jovem
na cal e harecan misturas o prazer e o engano
também teu estômago sorri confiante
também tua a linguagem do corpo
no regresso de braços dolentes
firme em teu braço direito
o teu combate de penas
pobre mercador de ilusões em galos de luta
acaricias teu ganha-pão
teu desporto
e apostas
mais
sempre mais
são tuas as lágrimas
a revolta e a derrota
é teu o sangue e o alimentaste
guardas o estilete acerado
não decepou medos
são tuas as planícies e as ribeiras
as torrentes inundaram o arrozal
levaram pontes e caminhos
e ris do grande engenheiro malai
como do búfalo do china luís
navegando rumo à liberdade
nem pensas na tua
das árvores pendem camarões doces do rio
e o pequeno jacaré
faz o cruzeiro oceânico Ribeira de Seiçal-Díli
maubere é diac [4]e vai passar
esse o lado outro do abismo.
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[1] o equivalente a cinco escudos em moeda de timor
[2] picos mais altos de timor, rondando os 3 mil metros de altitude
[3] maromác o equivalente a deus em língua tétum
[4] maubere é diac, o timorense é bom, coisa boa
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