conto de Paula de Sousa Lima

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Como não é longo, aqui deixo o conto publicado no livro resultante da Maratona Literária:
As Coisas do Alto
Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra.
Colossenses 3:2
Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra: a fornicação, a impureza, a afeição desordenada, a vil concupiscência (…)
Colossenses 3:5
Tratou-se de um longo processo de ascese.
Começou por subir a rua transversal, calçada íngreme a querer demorar os passos, não, não se demoraria, entre casas que sequer olhava, não se distrairia, depois as escadas, três degraus, um patamar, dez degraus, outro patamar, mais dez degraus, ainda outro patamar, dois degraus, em frente a ermida, e sentar-se à porta do templo, sem olhar para a beleza que se alongava em baixo, as coisas de baixo são passíveis de maliciosamente seduzir, não, não se deixaria seduzir. Encolhia, então, as pernas, juntava os joelhos, apertava-os entre os braços, deixava descair a cabeça, tal o Senhor suspenso na cruz, no alto, e sentia que estava mais perto de Deus, que fizera uma ascensão espiritual, as pernas doídas atestavam o valor do sacrifício, em baixo deixara a terra, de que urgia libertar-se, a terra é hostil ao espírito, contrapõe-se, impiedosa, às coisas do alto, muitos o asseveraram, e ela cria-o sem reserva alguma.
Tinha, à altura, dezasseis anos. Foi-lhe uma revelação: a verdadeira felicidade vem das coisas do alto, do desinteresse total pela matéria, esta que nos agrilhoa, nos faz servos, e quem quiser encontrar-se com Deus há-de renegar o mundo, há-de desapegar-se dos seus sortilégios, há-de castigar a carne, esta que oprime o espírito. Leu-o num livrinho da mãe, não poderia saber a boa senhora que aquele livrinho, ai, aquele livrinho. Os dois anos que se seguiram foram tal se narrou no parágrafo anterior; acresciam os estudos, nada lhe interessavam, mas concluiu com sucesso o ensino secundário, devia-o aos pais. Ao fazer dezoito anos, porém, declarou que não se candidataria à universidade – só me interessa o saber que vem do alto, só aspiro às coisas do alto. Os pais entreolharam-se, questionaram-na, a resposta foi a vacuidade de um ténue esboço de sorriso. Pai e mãe comentaram entre si: manias da idade, hão-de passar-lhe. Nada mais desacertado, nunca pense seja quem for que as determinações dos dezoito anos são coisa ligeira. Por essa altura, já ela evitava os alimentos mais aprazíveis ao palato, de casa só saía para subir ao Alto da Mãe de Deus, recolhia-se ao seu quarto, aí lia avidamente a vida dos santos mártires e ermitas, queria igualar-se-lhes, havia de se lhes igualar, pensava. Admirava particularmente Santo Antão, que, no século IV, vivera cento e cinco anos em peleja com o Mal, perseverando, vencendo-o, também ela perseveraria, também ela venceria.
O desejo de ascese absoluta acirrou-se, espelhando-se no desdém pelo corpo. Passou a escusar mais alimento do que o necessário para não desfalecer, a sempre trajar o mesmo vestido castanho, largueirão, grosseiro e puído, que lhe resguardava as formas do corpo e que, passado algum tempo, lhe camuflava a magreza, tesourou ferozmente o cabelo de forma a desfazer-se de qualquer vestígio de beleza, nada nela havia de aprazer a olhos concupiscentes. Os dela traziam a mágoa dos flagelos que dava ao corpo, e sangravam-lhe costas e joelhos, aquelas da chibata, estes de neles apoiada subir os degraus que levavam à ermida. Havia de ser só espírito, havia de ascender às coisas do alto, havia de se abeirar da imensidade de Deus se ao corpo dissesse não. Mas, oh, mas. O corpo é selvagem, traiçoeiro, persistente, não se esvai só porque muito se deseja, sequer porque é supliciado. E acontecia-lhe sentir prazer ao trincar uma maçã, arrepiar-se a pele ao sobre ela escorrer a água tépida do duche, ter um pensamento impuro quando aquele rapaz com quem se cruzava pousava, insidioso, tentador, os olhos azuis nos dela.
Se o corpo é selvagem, o espírito é indómito, e venceria. Ela havia de ser apenas espírito, ela havia de tocar a fímbria do diáfano manto de Deus, ela havia de se desatar daquele corpo que a agrilhoava, que a fazia serva, não, não o seria. Subiu, no dia vinte e um de Julho de dois mil e vinte e três, ao Alto da Mãe de Deus, fê-lo tal fizera todos os dias ao longo deste ano, de joelhos, sentou-se à porta da ermida, encolheu as pernas, abraçou os joelhos com o braço esquerdo, aproximou a lâmina da jugular. A macieza do sangue fê-la sentir o deleite de se libertar irrevogavelmente da carne e do mundo, ascendendo às coisas do alto.
Paula de Sousa Lima
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