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Travessias – Luís Cardoso
O Município de Paços de Ferreira, terra do móvel, decidiu fazer uma exposição cuja temática é a cadeira dos seus sonhos. Pediu a diversas personalidades que projectassem a cadeira dos seus sonhos. Participaram José Ramos Horta, Mourinho, Ronaldo, Marisa etc etc etc. Um sucesso.
Também foi pedido a diversos escritores que escrevessem um conto sobre a cadeira dos seus sonhos. Aqui está o de Luis Cardoso.
CADEIRA DE SÂNDALO
Benvindo da Fonseca, meu pai e coronel de segunda linha do exército português, quando regressou da última batalha em que participou, ao lado do malae boot, contra os rebeldes da rainha de Manumera, entrou na sala, abriu uma cadeira de lona e sentou-se nela sem que tivesse proferido uma única palavra
– Está aí
disse a minha mãe quando regressei da casa dos meus avós.
Se o coronel tivesse perdido a guerra tinham vindo para lhe roubarem os pertences, a casa, o ouro, a mulher e a filha
– Está aí
na esperança de que acordasse, se porventura soubesse que eu estava de regresso. Mas acordar de quê se continuava a manter os olhos bem abertos. Ausentou-se para um sítio distante, lá para os lados de tasi balu, sentado nessa cadeira de lona. A única coisa que trouxe lá das montanhas onde se acantonaram os rebeldes
– Há quanto tempo?
e a minha mãe sem me dar a resposta, também ela já não sabia há quanto tempo. Talvez um ano, dois ou toda uma vida, dado que o meu pai sempre andou em guerras contra reinos sublevados, desde o dia em que aceitou o título honorífico de coronel de segunda linha. Era solicitado pelo governador quando havia uma rebelião
– Coronel
já sabia que o malae boot quando o tratava pelo posto militar era porque precisava dele. Para que fosse à frente com os seus homens para assustar os rebeldes com haklala. Gritavam de peito aberto, sem medo da morte
– Mate bandera hun
supondo que estariam protegidos das balas dos inimigos por terem jurado fidelidade à bandeira do aliado português. Quando tombavam, ouviam do outro lado da barricada o clamor dos rebeldes, que ecoava pelas montanhas
– Malae sa’e ró imi sa’e rai
– Está aí
a minha mãe sem saber o que fazer. Também ela está aí, não sei há quanto tempo, por ter jurado fidelidade ao meu pai que esperaria por ele. Nunca o abandonaria
– Espero
também ela está aí sentada na esteira, à espera que um sopro de vento faça o marido voltar à realidade. Lembrei-me então que podia
– Não te atrevas
como se tivesse adivinhado os meus pensamentos.
Desde o início que dei conta que o meu pai, apesar de manter os olhos bem abertos, mostrava nos músculos do rosto um esgar. Como se tivesse feito um esforço para se libertar de uma força que o prendia. Ao esticar-se na cadeira de lona deixou-se prender pelo assento. Como se este tivesse mãos que não o largavam por nada deste mundo
– Não te atrevas
a tocar-lhe com as mãos. Ausentou-se para um sítio distante, fatigado de guerras. Por não ter dormido durante tantos anos. Sempre a conjecturar batalhas desde o dia em que o promoveram a coronel. Agora que a guerra estava acabada precisava de descanso. Trouxe de lá de cima das montanhas essa cadeira de lona
– Não te atrevas
quando me aproximei dele para lhe pegar ao colo e levá-lo para a cama. Apesar de me aplicar com todas as minhas forças não consegui. Foi como se alguém do outro lado fizesse forças ao contrário e o puxasse para o abismo
– Que cadeira é esta, mãe?!
que não quer largar quem nela se senta. Pregaram de certeza um feitiço ao meu pai. Foi como se tivesse afundado num poço sem fundo
– Está aí
se o velho coronel trouxe a cadeira das montanhas foi porque achou que lhe seria útil. Alguns levaram ouro, dinheiro, cavalos, roupas e por, mais estranho que possa parecer, cabeças cortadas de rebeldes para depois enfeitarem os paus nas aldeias. Mas porquê uma cadeira? Precisamente essa cadeira de lona?
– Está aí
e, com a mão, tentava afastar uma mosca que poisava no nariz do coronel.
Fazia tudo para que nada incomodasse o descanso do guerreiro. Talvez fosse mesmo esse o desejo secreto da minha mãe. Para o manter em casa. Dado que se não era a guerra eram as feto ki’ik que o mandavam chamar
– Anda apagar o fogo
um menino que nos entrava pela casa dentro com o mesmo à vontade de quem se achava que era o dono do mundo. Assim também era o meu pai quando entrava pela casa das outras mulheres, mais novas e mais belas. Minha mãe fingia não saber de nada. Dizia, eu sou a única. A legítima. Aliás sempre soube que o meu pai tinha outras mulheres e uma soma infinita de filhos. Alguns vinham reclamar heranças
– Está aí
estendido nessa cadeira de lona, cansado de guerras, das mulheres e dos filhos como se estivesse mesmo nas lonas para o mundo
– Já volto
enchi-me de coragem e dirigi-me à cozinha para buscar um alguidar com água fria para o acordar dessa sonolência
– Não te atrevas
interpondo-se entre mim e o coronel.
Poderíamos afogá-lo de vez. Que tinha caído num poço escuro. Lançar água fria para cima do meu pai não era de todo a melhor maneira de o resgatar. Talvez ir à procura do dono da cadeira, para esclarecer o que tinha de especial. Quiçá regressar ao local do último combate para saber quem enfeitiçou o coronel
– Sei que virias
uma voz altiva e segura saudou-me quando decidi a regressar ao local onde o meu pai havia travado a sua última batalha.
Tive alguma dificuldade em saber de onde vinha mesmo a voz. Se do tronco do colosso gondoeiro, se das pedras grossas que circundavam a centenária árvore, se da mulher sentada no chão enquanto mastigava a masca
– Eu…
a minha voz foi abafada por uma outra mais forte não me permitindo continuar a frase. Tinha intenção de me apresentar
– Serve-te
ao mesmo tempo que me oferecia um cesto com areca, cal e betel.
Hesitei se devia sentar-me ou não. Reparei nas grossas raízes da árvore que cresciam para fora da terra. Também nas mãos dela. Finas, belas e compridas. Lembrei-me do meu pai agarrado à cadeira de lona por umas mãos invisíveis. Fiquei de pé, enquanto observava a anciã que me fez sinal para me sentar
– Eu…
– Não precisas de te apresentar
num tom mais agressivo por causa da minha insistência em me querer anunciar como filha do coronel Benvindo da Fonseca. Um nome que deveria ser abolido na face da terra. Esse era o desejo dos rebeldes de Manumera
– A cadeira é sua?
– Se não é minha que vens cá fazer?
gritou como se estivesse possessa ao ouvir a minha inútil pergunta.
Antes do meu pai, nenhum estranho se tinha sentado na cadeira de lona, cuja armação era feita de madeira de sândalo. Uma preciosidade. Sentava-se nela para ouvir os súbditos, receber convidados, fazer alianças e ditar sentenças
– Devolve-me o meu pai
– Devolve-me primeiro a cadeira
com o dedo em riste apontando na direcção dos meus olhos.
Assustei-me. Disse-lhe que de momento era de todo impossível dado que ambos estavam pregados um ao outro. Foi essa a maldição que rogou
– Que morra
por ter provocado a guerra contra ela com a intenção de ficar com a sua posse. Torná-la sua escrava doméstica. Era muito cobiçada por causa da sua beleza. Mas como o malae boot não lhe concedeu essa graça e o advertiu que não ousasse nunca tocar-lhe no corpo ou com os dedos na ponta dos seus cabelos
– Ela perdeu o reino, não perdeu a dignidade
levou como refém a cadeira de sândalo, símbolo da sua autoridade, para exibir na praça pública. Ela dizia que o meu pai, como coronel, não devia ter esse comportamento de caçador de troféus. Não passava de um pequeno ladrão
– Devolve-me o meu pai
gritei com raiva pela ofensa dirigida ao coronel.
Virou o rosto para o lado e soltou uma estrondosa gargalhada que me fez ficar zonza. Foi como se tivesse levado uma bofetada. E, antes de desaparecer, no outro lado do grosso tronco do gondoeiro, soltou a sua sentença
– Larga fogo à cadeira
– Larga fogo à cadeira
foi isso mesmo que disse à minha mãe quando regressei à casa.
Tínhamos de fazer algo para salvar o coronel. Se a água o podia afogar então devíamos seguir os conselhos da rainha de Manumera
– Também estás louca como essa rainha
e afastou-se quando me viu com uma tocha na mão, pronta a incendiar a cadeira. Assim que a madeira começou a arder e, a deitar o cheiro de sândalo para o ar, o coronel levantou-se bruscamente e correu para fora da casa no meio do fumo e gritar
– Atirem-me água fria! Atirem-me água fria!
GLOSSÁRIO
Malae boot – governador (trad. lit., estrangeiro grande)
Haklala – grito de guerra
Mate bandera hun – morrer à sombra da bandeira portuguesa
Malae sa’e ró imi sa’e rai – se o estrangeiro se for embora, vocês estão lixados (trad. lit., estrangeiro sobe barco, vocês montam terra).
Barlake – dote de casamento
Feto ki´ik – esposa secundária (trad. lit., mulher pequena)
Inkay bolu – a mãe chama