O contrato da vergonha I
O meu professor primário chamava-se Rodrigues.
Nunca soube o seu primeiro nome. E não era preciso. Era o professor Rodrigues, que me ensinou as primeiras letras e a maneira de as juntar para ter palavras. À força de cópias e ditados aprendi a escrever o meu nome e outras coisas essenciais.
A minha professora de Português no ciclo foi a Dona Simone. Com ela já aprendi mais coisas, nomeadamente que há uma coisa chamada livros e outra coisa chamada Poesia. As palavras agora já batiam leve levemente como quem chama por mim…
O meu professor no Liceu foi o Dr. Tomás da Rosa. Com ele aprendi ainda mais coisas, nomeadamente que havia um senhor chamado Luis Vaz de Camões, que depois teria um dia só para ele. O Dr. Tomás da Rosa sabia dizer a avé maria em chinês, num tempo em que não havia lojas de olhos em bico em nenhuma das ilhas. Pedíamos sempre que ele recitasse aquilo, porque gostávamos muito de ouvir palavras que não entendíamos mas que pareciam música dentro de uma caixa.
Não posso esquecer a minha tia Maria, que me acompanhou desde o princípio. Tia-avó, irmã do meu avô paterno, sabia falar inglês e francês, escrever em tais línguas e ainda tocar piano. Foi ligando a primária ao ciclo e depois o ciclo ao Liceu, de uma maneira tão sólida que é, em grande parte, responsável pelo homem que sou, agradecendo cada beliscão que levei quando me distraía.
Aos quatro mestres agradeço, penhorado. E a minha maneira de lhes agradecer é tentar, sempre que pego na caneta, não os envergonhar. Não sentirem, mesmo no Além, que falharam comigo. Em cada linha que escrevo, está também a mão de cada um deles. Se ficar mal, deixo-os ficar mal. E não conseguiria viver com essa mancha.
Já na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, aprendi a pensar e a escrever em termos jurídicos. Começando pelos Princípios e pelas Teorias Gerais. Tive nesse caminho muitos e bons Professores, que me formaram para ser advogado e para entender um pouco mais de Política. De facto, no meu tempo, havia a menção de Jurídico- Políticas, e foi essa que abracei para concluir o meu curso.
Entre 2000 e 2004, cumpri funções de adjunto do Grupo Parlamentar do PCP na Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Tive de analisar propostas e projectos de Decreto Legislativo, da iniciativa do Governo ou de outros partidos. Mas tive, igualmente, de redigir as propostas de Decreto do meu Grupo Parlamentar.
Enorme responsabilidade, escrever palavras que poderiam vir a ser, e nalguns casos foram mesmo, Leis. Tinham de ser claras, fáceis de interpretar pelos destinatários das mesmas.
Nunca me passou pela cabeça dizer que não sabia. Tinha muitos anos de estudo, outros mais de prática, estava preparado para as exigências da função. Mais: teria sido uma vergonha dizer que não sabia. Para mim e para quem me ensinou ao longo de décadas.
A Assembleia Legislativa Regional dos Açores celebrou um contrato com uma firma de advogados de Lisboa para “aquisição de serviços especializados de natureza jurídica, no âmbito dos trabalhos da Comissão Eventual para a Reforma da Autonomia (CEVERA)”.
Pelos mesmos serviços, a Assembleia vai pagar 100.000 euros. Ou melhor, vamos nós, contribuintes, pagar 100.000 euros a uma firma de advogados lisboetas. Para mim, esta a vergonha das vergonhas.
57 deputados, mais os seus adjuntos, mais os serviços jurídicos da própria Assembleia, reconhecem a sua falta de capacidade para tratar de uma matéria que é tão nossa. Somam 100.000 euros aos milhões que já nos custam anualmente para depois se levantarem ou ficarem sentados, votando no Plenário as propostas que vierem de Lisboa.
A matéria é de tal gravidade que a sua análise não cabe apenas num escrito. Ao tema voltarei para a semana, escalpelizando o contrato mais vergonhoso que vi em 43 anos de experiência jurídica. Tem de haver responsáveis por este vexame que alguns incapazes fazem cair sobre o Povo Açoriano, com o qual gostam tanto de encher a boca.
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)