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*** ARTE DE SER TERCEIRENSE ***
Assim escreveu Victor Rui Dores, in DI (09-SET-2012).
“Um dia saí da Terceira, mas a Terceira não saiu de mim. Gosto incondicionalmente desta ilha, porque foi aqui que dei os passos decisivos da minha vida.
A Terceira é muito mais do que o Monte Brasil, o Castelo de S. João Baptista, o Algar de Carvão, a Serra do Cume, a Base das Lajes, o jardim Público de Angra de Heroísmo ou o vasto areal da Praia da Vitória. Esta ilha não é só a alcatra, a belíssima doçaria conventual ou o delicioso vinho dos Biscoitos. A Terceira é um estado de espírito, um modo de ser, um sentimento. Talvez de amor. Porventura de paixão. Certamente de afeto.
O terceirense cultiva a alegria, é acolhedor e comunicativo, vibrante e afável, sincero e solidário. Ele é a sentinela de atalaia ao seu passado histórico e heroico, revelando um pátrio amor à sua ilha. E é óbvio: o terceirense orgulha-se da sua “muito nobre, leal e sempre constante cidade de Angra”, de cunho senhorial e bela traça renascentista, duas vezes capital do Reino, porque aqui já foi só Portugal: na resistência ao domínio filipino, e durante as lutas liberais. Hoje Angra do Heroísmo é património mundial e capital histórica e cultural dos Açores.
Contrariamente ao micaelense, mais afeito à tristeza dos romeiros da Quaresma ou à carga penitencial do culto de Santo Cristo, o temperamento do terceirense é lúdico e dionisíaco.
Com efeito, não conheço povo mais exuberante, festivo e festeiro. A sociabilidade é, na Terceira, uma arte com refinado estilo. O terceirense atira-se de alma e coração ao convívio. Mais do que qualquer outro açoriano, ele tem um espírito festivo. E a alma da Terceira encontrou no toiro embolado e amarrado pelo pescoço o pretexto para a festa, sobretudo o 5º toiro… Sim, a tourada à corda é a festa coletiva da ilha Terceira e é o espaço de todas as conversas, de todos os afetos e de todos os reencontros.
Quem é da Terceira faz a festa não para a interpretar, mas para a viver. Identifica-se incondicionalmente com a festa taurina (touradas de corda, de praça e “espera de gado”), e com as festividades do povo e para o povo: as festas do Espírito Santo, o despique das cantorias, a comicidade hilariante dos bailinhos de Carnaval, o frémito das Sanjoaninas e das Festas da Praia e tudo o que sejam eventos religiosos e profanos. O que ele quer é festa porque a festa está-lhe na alma e corre-lhe nas veias. E o seu amor é “firme e constante”, como diz a moda regional. Gosta de música e de teatro popular e, entre folias e folgas, prefere as folgas…
De resto, a Terceira, ilha agropecuária, é a hospitalidade da porta aberta e luz acesa – a casa aonde chego, vou abrindo e entrando: “Dão licença”? Resposta: “É entrar p´ra dentro”. Como eu gosto e me identifico com esta brava gente da fraterna simpatia: os Andrades, os Barcelos, os Bettencourts, os Bretões, os Borbas, os Borges, os Coelhos, os Cotas, os Coutos, os Drummonds, os Fagundes, os Fourniers, os Godinhos, os Linhares, os Machados, os Martins, os Mendes, os Menezes, os Monjardinos, os Noronhas, os Pamplonas, os Pains, os Parreiras, os Regos, os Rochas, os Sieuves, os Silvas, os Sousas, os Valadões, os Vieiras, entre muitas outras famílias terceirenses.
Mas o “rabo torto” também tem lá as suas artimanhas: é pagão quando lhe interessa e religioso quando lhe dá jeito… No seu estudo “O Açoriano e os Açores” (1), escreve Vitorino Nemésio: “O que no micaelense é aspereza, índole tenaz mas tosca, no terceirense é amenidade, alguma manha, e principalmente uma bizarria que trai a coabitação com o castelhano durante meia centúria”. Ou seja, o terceirense tem as qualidades dos seus defeitos…
Dotado dessa “bizarria”, o terceirense é galante, tem um jeito marialva e resquícios de alguma nobreza perdida. Um ditado açoriano muito antigo assim reza: “S. Miguel, burgueses ricos; Terceira, fidalgos pobres; Faial, contrabandistas espertos”.
E as terceirenses? São afoitas e literalmente bonitas, aliás, a Terceira tem justa fama de possuir as mulheres mais belas dos Açores. É discutível, mas é verdade. No Verão de 1924, tirando notas para o seu magnífico livro As Ilhas Desconhecidas (2), Raul Brandão fala da beleza da mulher terceirense nos seguintes termos: “Foi aqui que vi as mais lindas figuras de mulheres dos Açores – tipos peninsulares, de cabelos negros e olhos negros retintos”.
(Vai para 40 anos que também eu, na “ilha de Jesus”, me apaixonei por uns olhos negros, negros…).
Posso estar muito enganado, mas sinceramente continuo a achar que o melhor que a Terceira tem são os terceirenses.”
(1) Sob os Signos de Agora, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995.
(2) Edição de Artes e Letras, Nova Gráfica, 2009.
Ao Victor Rui Dores roubo-lhe as palavras, são minhas também.
Foto de Duarte Diniz. A Memória. O símbolo que exprime o conceito de um povo livre e bravo, não submisso.
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