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Hoje, em Leituras do Atlântico, no semanário “Atlântico Expresso”. Com abraço ao Urbano Bettencourt, por mais este livro!
Sala de Espelhos
A editora Companhia das Ilhas, arrojado projecto de Carlos Alberto Machado, na cada vez mais presente e afirmativa ilha Montanha, onde há pouco tempo abriu um interessante e acolhedor espaço de livraria, nas Lajes (mais uma tentativa de remar contra as marés e as mentes – Urbano dixit), assumiu há alguns anos um compromisso editorial de mérito que tem vindo a desenvolver segura, mas paulatinamente, e que é a (re)publicação das obras completas de alguns escritores açorianos, nomeadamente Álamo Oliveira, José Martins Garcia, Vitorino Nemésio (este em co-edição com a Imprensa Nacional) e agora, com o primeiro livro, início da publicação, também, da obra completa de Urbano Bettencourt.
Um projecto difícil, trabalhoso, mas de grande significado, num tempo em que, mais do que nunca, revisitar os nossos grandes escritores é contribuir para a afirmação e percepção deste grande mundo que é a Literatura Açoriana.
E usei a expressão Literatura Açoriana, propositadamente, porque poucos escritores têm abordado este tema com a frontalidade e o destemor de Urbano Bettencourt. Recordo-me do Livro “O Amanhã não Existe” (Edição Companhia das Ilhas, 2017) em que num dos capítulos retoma o assunto da Literatura Açoriana. Explanando o que entende como literatura regional e indo até ao caso dos Açores, aqui há matéria mais do que suficiente para ser alargada e tratada em separado. Sei que o assunto é polémico e que desperta paixões, e por isso mesmo acho que nunca será um debate encerrado e Urbano Bettencourt, pelo saber e pela vida, por ser protagonista e referência, como poeta, escritor, ensaísta e professor, tem uma palavra forte a aglutinadora, neste desafio fundamental de um importante ponto de afirmação da identidade açoriana que passa pela sua literatura que não se pode ver pela linha redutora do regionalismo, mas pelo caminho do universalismo do que identifica a realidade insular. E, na altura em que escrevi sobre este livro, em 2018, deixei o desafio a Urbano Bettencourt para o tratar numa obra exclusivamente dedicada à matéria, calculando que já terá estudos e elementos para aprofundar este seu pensamento que congrega muitíssimos apoios nos meios académicos e literários.
Repito o desafio que me acompanhou na leitura deste “Sala de Espelhos”, com chancela “Companhia das Ilhas”, o primeiro do projecto de publicação da Obra Completa de Urbano Bettencourt, com a feliz coincidência de ser na sua ilha natal.
Urbano Bettencourt é um dos mais distintos ensaístas dos Açores. Lê-se sempre com agrado e, acima de tudo, com proveito, pois que a sua veia de professor está presente em tudo o que escreve. Durante muitos anos, e já depois de ter publicado “Ilhas Conforme as Circunstâncias”, em 2003, marcou presença em muitos colóquios, conferências, apresentações de livros, publicações em revistas e outras comunicações que agora aqui reúne neste primeiro volume da sua “Obra Completa”.
Ler este “Sala de Espelhos” é revisitar muitos momentos e muitos nomes da nossa literatura e não só. São quatro dezenas de ensaios que nos fascinam, pela diversidade de escritores que seria difícil qui enumerar, e pela sempre actual abordagem dos temas que, segundo o próprio autor “pretendem também assinalar a continuidade de uma prática literária, mesmo graças a autores que, podendo não ter em cada caso nem a visibilidade nem o valor representativo e estético de outros, asseguram o fio que se estende ao longo do tempo, preenchendo aquele espaço intermédio que por vezes escapa ao olhar mais preocupado, com figuras cimeiras, com os postes”.
De realçar ainda o prazer que sentimos, no final do livro, ao ver, em resumo, a “história” de cada uma dos capítulos, uma espécie de “agenda passada” pela qual perpassam tantas presenças de Urbano, em tantos acontecimentos culturais e literários. E seja-me permitido referir aqui um texto que muito me tocou, porque nele vi, em espelho, o próprio Urbano Bettencourt. “Ser Ilhéu… e salvar-se pelos livros”. Simplesmente maravilhoso. “Os meus amigos estão por aqui e por ali, em muitos lados, e já não dependemos da lentidão dos correios para trocarmos ideias e traçarmos projectos”.
Numa entrevista dada ao Diário dos Açores, no dia 6 de Novembro, data em “Sala de Espelhos” foi apresentado no Auditório Natália Correia, Urbano diz que “o livro não tem a pretensão de estabelecer um qualquer cânone oficial, mas reflecte sobre livros e autores, alguns dos quais até nem costumam ser muito referidos, mas cumprem no seu tempo um papel a ter em conta, não menosprezável. E para lá disso lança alguns olhares sobre outras literaturas insulares atlânticas, a da Madeira e a das Canárias e principalmente a de Cabo Verde, por via desse momento histórico em que o modernismo cabo-verdiano se projectou sobre os Açores e a sua geração (sobretudo micaelense) de quarenta”.
Com toda a razão Urbano Bettencourt afirma que este é o livro em que “mais me reconheço como autor de ensaios literários”, porque “o livro representa cerca de quarenta e dois anos de investigação traduzida em dossiês de documentos, recortes, centenas de fichas e apontamentos, cadernos de anotações e mesmo os planos e os «papéis» das minhas aulas de Literatura Açoriana na Universidade
dos Açores”.
Leio Urbano Bettencourt desde os anos setenta (até muito antes, nos velhos tempos de jovens em Angra que fomos), e sempre me fascinou a sua forma de ver a realidade literária e também o seu altruísmo capaz de valorizar e, acima de tudo, trazer à ribalta do conhecimento nomes que por vezes são esquecidos ou menorizados.
Neste “Sala de Espelhos” sinto precisamente isto e por isso mesmo considero que foi chave de ouro para abrir a publicação das suas obras completas.
Um livro que merece leitura atenta e que deveria constar do Plano Regional de Leitura, presente nas escolas onde é dever ensinar sobre autores e obras literárias açorianas e de outras regiões insulares.
Santos Narciso