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UM PAÍS ENTRE ANJOS E DEMÓNIOS
Excerto da obra “Portugal: uma história de prodígios” (Porto, Editora Book Cover, 2019). Disponível na Feira do Livro do Porto, Palácio de Cristal.
Fértil tem sido esta ditosa pátria em historietas e facécias demoníacas. País fidelíssimo que não tem rebuço em servir a dois senhores, deuses repartidos na gestão dos dois territórios, disputados entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas. Neste condomínio planetário fomos armazenando pânicos e temores atrás de sucessivas portas que nos separam de futuroa mais eaclarecidos. Desde sempre, amedrontadas gentes de siso viram-se assediados por figurações diabólicas, no agro mais remoto ou no convento mais urbano. Almas inquietas envolvem-se em sobrenaturais duelos, que as memórias locais ou as crónicas monásticas nos legaram em singulares narrativas.
Adversário comum de muitos credos, o Diabo, rei dos Infernos, desdobra-se também em denominações que premeiam a nossa capacidade de imaginação: ao lado dos mais prosaicos e populares diabretes, diachos, dianhos, demos, satanazes, mafarricos, inimigos, bichos negros, crespos, perfilam-se outros pseudónimos mais personalizados e cosmopolitas, como Pero Botelho, Lusbel, Belzebu, Satanás, Asmodeu, Lúcifer, Behemot, Ahasvero, Leviathan, além de muitos outros, isolados ou simbiotas… e da previsível mulher do diabo.
Rebusque-se bem fundo a arca das nossas memórias, de norte a sul, e lá veremos agitar-se uma pletora de seres demoníacos criados por milénios de superlativos terrores, filhos do Desconhecido:
O Fradinho da mão furada, rodeado de vultos negros, bruxas nuas untadas de preto que à noite lhe vêm beijar a mão. o Pesadelo, bicho que tapa a boca a quem está a dormir; a Mão de ferro, invisível, que nos esbofeteia na cara quando está muito vento e nos metemos debaixo das árvores; o Trasgo, que nas terras transmontanas se apresenta também como um espírito do nevoeiro, perseguidor de mulheres a quem atira pedras pelas janelas; o Tardo, um diabo noturno que visita os que dormem e acordam com um grande pesadelo; o Pedro das Malasartes, personagem que surge nas óperas portuguesas populares do Bairro Alto e Mouraria do século XVIII; o Medo, na tradição mirandesa, parecido com um homem muito alto, vestido de branco; a Coisa ruim, que ao toque das Trindades, hora aberta, aparece nas encruzilhadas na forma de uma porca com bácoros ou galinha com pintos; o Trango-mango, coisa má que acontece a alguém; o Homem das sete dentaduras, génio maléfico que aparece no sítio do Cerro Vermelho, Algarve, à hora do meio-dia…
De todas estas designações e associados do emblema meléfico nos deram aturada conta etnólogos como José Leite de Vasconcelos, Teófilo Braga ou Consiglieri Pedroso, em preciosos repertórios da nossa mitologia e superstições populares. Este argumentário sobrenatural, de fundo pagão, é o resultado natural da fusão migratória de quantos contributos deram à nossa costa ou nos acederam pelos contrafortes do interior.
Gregos e Romanos colocaram o seu Plutão no trono infernal, junto com a consorte Prosérpina, amparados pela corte diabólica e guardados pelo terrível Cérbero. O Cristianismo revogou tão alto mandato e destituiu-os de tão importante posição, despenhando-o nas mais profundas trevas e passou a chamá-lo de «anjo maldito». A partir daí, Belzebu refinou em maldade e tornou-se acérrimo perseguidor de tudo que há de santo e bom.
Joaquim Fernandes, excerto in “Portugal: uma história de prodígios” (Porto, Book Cover, 2019).
Historiador (CTEC-UFP).
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André Louro
Joaquim Fernandes, por acaso sabe dizer-me se existiu mesmo a Maldição de Marialva e que ligação tinha à demoníaca Dama Pé-de-Cabra, que para mim, não era mais que uma entidade de outro mundo? Talvez extraterrestre?
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