TRUMP

Trump não é o trunfo, é o problema
Um excelente artigo que envio aos meus amigos que estão fora de Portugal e não só.
Daniel Oliveira, um excelente jornalista, escreve entre outros jornais no Semanário Expresso .
Os democratas deverão perder as eleições e se não corrigirem o seu divórcio crescente com a classe trabalhadora a caminhada para o precipício vai continuar. Mas este foi o melhor resultado de quem está na Presidência desde 2002 e 1998. Trump é um problema para a democracia norte-americana. Mas o desempenho dos seus candidatos numas eleições fáceis mostra que também é um problema para os republicanos. Ganha no partido para fazer o partido falhar no país
O anúncio da maré vermelha não se confirmou. Os democratas perderam alguns lugares no Senado e Congresso. À hora a que escrevo, ainda não se sabe quantos perderam e se chegam a perder o controlo de qualquer uma das duas Câmaras. Mas isso não é a notícia, isso é a regra. Quem está no poder perde quase sempre estas intercalares e este foi, ainda por cima com inflação e empréstimos bancários na habitação e gasolina em preços sem precedentes nas últimas décadas, o melhor resultado de quem está na Presidência desde 2002 (no rescaldo unificador do 11 de setembro) e 1998 (depois da absurda tentativa de impeachment de Clinton).
Desse ponto de vista, pode-se dizer que Joe Biden teve uma vitória relativa. Não apenas em relação às espectativas alimentadas pelas sondagens, mas em relação à tradição. Nada a ver com a derrocada que Obama sentiu em 2010, ou mesmo com os seus resultados em 2014.
Não sei se a decisão do Supremo em abrir as portas para um recuo na questão do aborto levou a maior participação de mulheres e jovens. Os números parecem indiciar que sim e este é o único tema de costumes que traz vantagem aos democratas – de tal forma que muitos candidatos republicanos tentaram apagar as suas posições mais radicais do passado sobre o tema
Os jovens votaram esmagadoramente democrata – uma vantagem de 28 pontos nos eleitores entre os 18 e os 29 anos, de acordo com a sondagem à boca da urna efetuada pela CNN. E os reformados deram uma vantagem de 13 pontos aos candidatos republicanos. Para uns e para outros as questões dos costumes são mais importantes do que para os trabalhadores. Os primeiros por razões óbvias, os segundos porque são os menos afetados pela inflação – as suas reformas estão-lhe indexadas. Fica-lhes o medo perante um mundo que muda e eles não compreendem.
Não sei se foi a deriva antidemocrática dos republicanos que travou a maré vermelha. Ou seja, se Trump, sempre tratado como um trunfo, impediu uma vitória mais clara dos republicanos. É, ainda assim, bom recordar que, neste século, só um republicano venceu eleições presidenciais no voto popular (a reeleição de Bush) e que muitas das vitórias republicanas para Câmara dos Representantes se deveram ao redesenho dos mapas das circunscrições depois do censos de 2020.
TRUMP PERDE GÁS
Trump não teve a vitória que desejava. Com exceção de J.D. Vance, quase todas as suas cabeças de cartaz foram derrotadas: Lee Zeldin perdeu em Nova Iorque, Don Bolduc perdeu em New Hampshire e Doug Mastriano perdeu para governador da Pensilvânia. Todos com apoio do ex-presidente. E foi no estado determinante da Pensilvânia que Dr. Oz, com a campanha mais cara para o Senado, foi derrotado por John Fetterman, que a fez em casa por causa de um derrame cerebral. Fetterman é próximo de Bernie Sanders, progressista (acusado mesmo de ser socialista pelos seus adversários internos), com posições fortes sobre o aumento do salário mínimo, o sistema de saúde e a reforma do sistema criminal. Conseguiu segurar voto das classes trabalhadoras para os democratas. Em sentido inverso, é bom assinalar as derrotas de Beto O’Rourke, no Texas, e Stacey Abrams, na Geórgia, que ficaram bem longe do entusiasmo que provocaram há quatro anos.
Mas, acima de tudo, parece haver um novo candidato que pode desafiar o regresso de Trump: Ron DeSantis, que depois da vitória à tangente de 2018 foi reeleito governador com um resultado esmagador na Florida. Esta foi a grande vitória republicana e a maior derrota de Trump. É em DeSantis que está depositada a esperança da direita norte-americana? Meteu 50 migrantes num avião pago pelo Estado (teve de ir buscar alguns ao Texas) para os deixar na ilha de Martha’s Vineyard, só para mostrar aos democratas o que custa tê-los ao pé de casa. Acho que está apresentado o traste que usa a vida de outros seres humanos para uma provocaçãozinha. À direita, a esperança contra Trump já são apenas políticos igualmente desumanos, apenas um pouco menos perigosos. Até ver.
Este alívio não pode, no entanto, fazer ignorar duas tendências perigosas que perduram há uma década: os republicanos estão a perder a democracia, os democratas estão a perder os trabalhadores.
REPUBLICANOS CONTRA A DEMOCRACIA
Mais de 90% dos candidatos que Donald Trump apoiou venceram as primárias republicanas. Depois do ataque ao Capitólio, pensava-se que ou o Presidente era preso ou era, no mínimo, proscrito pelo partido. Nem uma nem outra coisa aconteceu. E como nem uma nem outra coisa aconteceu, a sua narrativa da fraude legitimou-se e os poucos que lhe tinham resistido foram atirados borda fora. Quando Liz Cheney nos aparece como um exemplo atípico de moderação que já não tem lugar no partido republicano percebemos onde as coisas já estão.
Só um terço dos candidatos republicanos que foram a votos nas muitas eleições nacionais e estaduais é que aceitam o resultado das presidenciais em 2020 e metade recusa-os ou tem dúvidas. Duzentos séticos foram eleitos esta terça-feira, incluindo trinta que recusam liminarmente, e desde o primeiro dia, a vitória de Biden. Metade dos eleitores republicanos continua a acreditar, sem indícios ou provas, que Joe Biden foi eleito com base numa fraude. Os Estados Unidos, que têm um sistema eleitoral e de escrutínio arcaico e caótico – são uma das poucas democracias no mundo sem uma agência nacional para contar votos e anunciar resultados –, estão na linha da frente dos efeitos da indústria da desinformação que promete ganhar novo fôlego com Elon Musk à frente do Twitter. Uma democracia que se mostrou fraca perante o autor político da ocupação do Capitólio com fortes indícios de traição ao país na sua relação com a Rússia pagará por muito tempo o preço da sua tibieza.
No entanto, como sublinhou a CNN, os candidatos a governadores que cavalgaram a tese da fraude foram derrotados: Tim Michels no Wisconsin, Tudor Dixon no Michigan, Doug Mastriano na Pensilvânia, Ditto Dan Cox em Maryland, e Darren Bailey no Illinois. No Arizona, a candidata negacionista Kari Lake estava em pequena desvantagem à hora em que escrevo este texto.
A exceção é J.D. Vance. Autor de “Hillbilly Elegy ”, um retrato cru da América que virou para Trump e um anti-trumpista de sempre, vergou-se humilhantemente para conseguir o apoio do ex-presidente e os financiamentos que lhe se próximos e conseguiu ser eleito senador pelo Ohio. Um pouco por toda a América, em eleições para senadores estaduais, representantes estaduais e outros cargos menores, centenas de negacionistas da vitória de Biden foram eleitos. Ouviremos falar deles se Trump for candidato e perder, em 2024, as eleições.
Seria bom abandonarmos o discurso sobre a “polarização” nos EUA, como não a deveríamos usar para falar do Brasil ou de grande parte dos países. Não há dois lados que se extremaram. Há uma direita antidemocrática que chegou ao poder e recusa as regras do jogo. E há uma reação que só pode ser indignada e agressiva a este ataque à democracia. Se há coisa que continua a acontecer à esquerda (ou entre os democratas norte-americanos, que não correspondem apenas ao centro-esquerda europeu) é o abandono de causas estruturantes que a definiam, um excesso de centrismo nas questões económicas e sociais e, por isso mesmo, uma perda de influência em setores da população que eram a sua principal base de apoio. Falta-lhes radicalidade, não a têm em excesso.
O DIVÓRCIO ENTRE OS DEMOCRATAS E A CLASSE TRABALHADORA
42% dos eleitores norte-americanos são brancos sem formação e os democratas estão a perder esse eleitorado para os republicanos. Desde 2012 que este voto lhes foge. E não é só o branco, mas também o de minorias trabalhadoras, com destaque para os hispânicos. Uma queda que é compensada pelo crescimento entre os eleitores com formação universitária.
Como nos conta Ruy Teixeira, num extraordinário artigo na “The Atlantic”, os democratas têm uma desvantagem de 15 pontos entre os eleitores da classe trabalhadora, mas uma vantagem de 14 entre os eleitores com formação universitária. E Teixeira sinaliza as duas trágicas campanhas de Hillary Clinton – para as primárias e contra Trump – que levaram à sua derrota, em 2016, como momentos fundamentais na aceleração deste processo. Nas primárias, para vencer Bernie Sanders, Clinton tentou combater as propostas económicas e laborais progressistas de Sanders com as questões identitárias. O politólogo recorda o momento em que, num comício, Hillary pergunta se uma posição demasiado firme com os bancos acabaria com o racismo, com o sexismo ou com a discriminação contra a comunidade LGBT? Como para muito centro-esquerda europeu, as causas identitárias serviram para esconder a cedência na economia e no trabalho.
Quando enfrentou Trump, Hillary concentrou-se no carácter do oponente. E assim perdeu o “rust belt”, incluindo, por pouco, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, três estados que teriam feito a diferença para vencer as eleições. Os eleitores brancos de classe trabalhadora que perdeu para Trump não são racistas. São, segundo Ruy Teixeira, que cita Justin Grimmer e William Marble, trabalhadores sem diploma universitário com visões moderadas sobre raça e imigração. Este ano, mais uma vez, os democratas focaram-se no aborto, no controlo de armas e na democracia, quando o eleitorado estava preocupado com a economia, a inflação e o crime. Não é defeito, é feitio.
A luta renhida pela Pensilvânia e as derrotas sucessivas no Ohio são explicadas pelo voto daqueles a que Clinton chamou de “deploráveis”, gabando-se de ser votada pela maior parte do PIB do país: os vencedores da globalização. É a ausência do foco social e económico que explica que os republicanos conquistem este voto apesar de serem contra o aumento do salário mínimo, a licença de maternidade paga e o serviço de saúde universal e por cortes fiscais para os mais ricos. Todos os exemplos que estou a dar são de votações republicanas nos últimos dois anos, não de qualquer projeção ideológica sobre o seu posicionamento.
CONCLUINDO…
Os democratas não venceram estas eleições. Até deverão, olhando para os resultados à hora a que escrevo, perder o controlo da Câmara dos Representantes e manter o empate no Senado, o que pode paralisar os próximos dois anos da presidência do impopular Biden, no meio de uma guerra, de uma crise de energia e de uma crise inflacionista. E se não corrigirem o seu divórcio crescente com a classe trabalhadora a caminhada para o precipício vai continuar. Mas olhando para o histórico das intercalares, a hecatombe anunciada ficou muito longe de acontecer.
O financiamento democrata a candidatos republicanos tresloucados, moralmente errado e politicamente arriscado, afinal nem foi má tática. Dos nove candidatos mais radicais entre os radicais, e para os quais os democratas angariaram 53 milhões de dólares, apenas a candidata a governadora do Arizona ainda pode ganhar. Trump é um problema para a democracia norte-americana. Mas, olhando para o desempenho dos seus candidatos numas eleições que deveriam ser bastante fáceis, ele é um problema para os republicanos. Ganha no partido para fazer o partido falhar no país. Tem fortíssimas taxas de rejeição e, dominando os republicanos, pode acantoná-los por muito tempo. Veremos como é que os oportunistas que se passaram para o seu lado se comportarão nos próximos dias.
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  • Lusa Ponte

    Também reparei. Deve ter sido gralha. Acabei agora de ler. Obrigada pela partilha, minha prima. Beijinhos.
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    • 15 h
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