SANTANA CASTILHO · Tocata para um ministro à distância

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Tocata para um ministro à distância

Vêm aí longas semanas de ensino a distância. Importa pois analisar a que distância está o Ministério da Educação (ME) da realidade.

Incapaz de produzir orientação séria, o ministro começou por proclamar que “os professores não estão de férias”. A maioria das escolas e demasiados professores, apostados em mostrar que não estavam de férias, tomaram iniciativas cujo volume, diversidade e fragmentação conferiram ao sistema a incoerência característica do “salve-se quem puder”. Em vez de desenhar um quadro de intervenção pedagógica e definir os recursos digitais para o executar, o ME arrebanhou tudo o que mexia na Internet e despejou sobre as escolas, para ajudar à balbúrdia. Quando surgiram os primeiros reparos para a falta de computadores e de banda larga ao alcance de muitos alunos, o ministro Tiago chamou carteiros, escuteiros e professores reformados. Receei que se seguisse a requisição civil dos pombos-correios. Mas seguiu-se um roteiro, ora banal, ora prolixo, que transfere para as escolas e para os professores as responsabilidades centrais.

Agora, é preciso aproveitar estas estranhas férias da Páscoa para pensar com serenidade. O sistema não tem recursos para o funcionamento do ensino a distância na escala que é requerida. O ME não pode contar com os seus equipamentos obsoletos, sem capacidade de memória, nem com a sua Internet, que ora é lenta, ora sucumbe, ora não existe. Só o salvam os equipamentos dos pais e dos professores, que pagarão as contas de energia e de Internet. Os problemas logísticos que o ensino a distância coloca vão aprofundar as desigualdades sociais entre os alunos. Muitos (50 mil só no ensino básico) não dispõem de um computador nem de Internet em casa. Muitos encarregados de educação não têm as condições e formação necessária para acompanhar os filhos nas tarefas escolares.

Saia do marasmo, ministro Tiago, e faça, pelo menos, isto:

– Defina já como se processa e como se avalia o trabalho do 3.º período, oficializando o que todos sabem oficiosamente.

– Desista do ensino online para crianças do 1.º e 2.º ciclos, que não têm preparação para tal. Para estas e para todas as que não têm computador nem Internet, recorra à televisão. Siga o exemplo da sua colega de Espanha, que reuniu recursos de 14 editoras e nove portais educativos e partiu para emissões de cinco horas diárias de TV educativa. Reserve o online para o 3.º ciclo e secundário, com identificação das plataformas digitais mais eficazes e a sua disponibilização gratuita.

– Fixe horários nacionais para o ensino à distância. Este tempo de crise tem sido invasivo da privacidade dos alunos, das famílias e dos professores, com um enorme excesso de solicitações e exigências. Se há paradigma já evidente é o da servidão digital. Sem horário de actividades, tanta diligência e desrespeito pela privacidade alheia transformarão pais, professores e alunos em simples plataformas humanas à deriva, no meio das plataformas digitais.

– Anule imediatamente as provas de aferição, marcadas para Maio, e os exames finais do 9.º ano. As primeiras porque, de duvidoso sentido desde o início, são agora redobradamente inúteis. Os segundos porque, sendo praticamente irrelevantes para a progressão dos alunos, ocupariam recursos e tempo necessários para iniciativas prioritárias, em tempo de crise.

– Mande redefinir os conteúdos programáticos dos exames nacionais do ensino secundário (as provas devem ser limitadas ao que foi leccionado presencialmente) e mande reformular, em conformidade, os respectivos enunciados. Claro que isto o obriga a adiar o calendário dos exames e a coordenar com o seu colega do superior a acomodação destas mudanças no processo de acesso ao ensino superior.

– Incumba um pequeno grupo de pessoas sensatas (tem de procurar fora do seu circulo) de desenhar, desde já, um plano de regresso à actividade presencial, que preveja cuidados de vigilância e resguardo para uma eventual segunda onda da covid-19 (reduzir o número de alunos por turma, para aumentar o seu distanciamento em sala; redefinir normas de utilização de espaços comuns, designadamente recreios, e generalizar artefactos de higienização das pessoas e dos objectos). Aquando da reentrada, devem estar previstos apoios pedagógicos suplementares para quem deles necessite.

Se precisar de ajuda, diga. Vou trabalhar consigo, pro bono.

In “Público” de 1.4.20

Comments
  • Cláudia Marçal Que reconfortante ler este texto.
    É tudo o que estamos a precisar.
  • Cláudia Marçal Só faltou, se me permite a modesta opinião, incluir os alunos com necessidades educativas especiais … q resposta para estes casos?

    Cláudia MarçalCláudia Marçal replied

    2 replies 57m

  • Mário Jorge Parabéns, Sr. Professor. Se o ministro da educação for sensato, saberá quem consultar para o ajudar a resolver este grande problema que o COVID-19 arranjou ao processo ensino – aprendizagem.
  • Paula Cristina Rego Muitos parabéns professor. Sempre digo que não basta dizer mal, é importante apresentar decisões. Sem tirar nem pôr, apresenta um conjunto de medidas exequíveis e reais, sem ilusões e práticas. Haja alguém com visão e percebe a realidade da maioria das famílias portuguesas. Grata.
  • Ana Maria Pires Espero que esta sensata missiva chegue aos olhos do nosso ‘homem do leme’… é quiçá o possa inspirar.
  • Sandra Vieira Cardoso Não há outras alternativas senão estas! Espero bem que o Sr. Ministro deixe o orgulho de lado e lhe peça para cooperar com o ME neste momento tão difícil para os nossos alunos. Se o Primeiro-ministro for sensato, vai ouvi-lo, Professor, pois não se podem desperdiçar génios em tempo de guerra.
  • José Manuel Pinto Sousa Sempre uma referência a ler para reflectir e fazer caminho. Obrigado por tudo! Para além do que se escreve há ainda outros aspectos a reflectir. Como será a ADD? Alguém saberá responder, em especial para aqueles que têm aulas assistidas?
  • Pedro Costa 5 estrelas…
  • Carla Ponte Montero Completamente de acordo com as medidas concretas que propõe, já o fazer bandeira ao gasto de energia e internet por parte dos professores é descabido.
  • Carmo Roby Amorim Professor, assertivo como sempre. Espera-se sensatez do ministério da educação…
  • Carla Nicolai Obrigada professor
  • Fernanda Lima Obrigada Professor. Assertivo como sempre.
  • José Pereira Um ministro que não existe… 🤔
  • Zinha Nascimento Como sempre muito assertivo. Neste momento é pura futurologia…beijo grande familia linda❤️
  • Alexandra Santos Rosa Como sempre excelente, já agora permita-me acrescentar que os processos 54/2018 que não foram concluídos impedirão que atempadamente as crianças sejam abrangidas por os apoios que necessitam no início do próximo ano lectivo. Este é outro problema que precisa de solução à vista. 👏👏
  • Rui Faria Um ministro à distância e distante da realidade educativa nacional.
  • Joao Marques Silva Um excelente contributo (pro bono) esta sua reflexão. Passados 20 dias da interrupção do ensino presencial é caso para perguntar quando é que estes senhores regressam “de férias”?
  • Paulo Carocinho Em absoluto!
  • Ângela Bernardo Carvalho Assertivo neste tempo confuso
  • Natércia Carrachás 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
  • Ana Coelho Preciso, como sempre. Obrigada.
  • Alberto De Matos Inteligência e bom senso, como sempre.
  • Xana Pacheco 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
  • Vera Esteves Não entendo é como é que os professores ainda não o tiraram do poleiro!!!!!
  • Maria Fernanda Beça As escolas em pouco tempo serão hospícios…. os primeiros a ingressar quem criou o pandemónio Excelente artigo 🙏👏
  • José Manuel Pereira Texto lúcido e assertivo, como tem sido habitual.
  • Maria Antónia Antunes Martins O que o Ministério não quer é reformular os exames no Secundário, pois ja estão feitos e para eles dá muito trabalho reformular.
  • Helena Cristina Romano Muito bom! Adorei. É preciso serenidade para ser comandante e definir o rumo. Nem todos…
  • Maria Coelho Silva Parabéns professor.mais uma vez um análise excelente.