Santa Cruz, o cemitério mais simbólico de Timor-Leste onde são proibidos novos enterros

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Santa Cruz, o cemitério mais simbólico de Timor-Leste onde são proibidos novos enterros

Díli, 11 nov (Lusa) – José Mesquita, coveiro desde 1970, tem a certeza que “nem a contar um dia inteiro” se consegue saber quantas pessoas estão enterradas no cemitério mais antigo e mais importante de Díli, o de Santa Cruz.

“Eu acho que nem numa semana se acaba”, diz, enquanto navega por entre a confusão de campas, colocadas desordenadamente e em todo o espaço do cemitério que está plantado em três aldeias – Bemori, Quintal Bot e Balide – no suco de Santa Cruz, em Díli.

É praticamente impossível chegar de um ponto ao outro do cemitério passando só entre as campas, tal é a confusão que vai aumentando quanto mais se vai entrando no espaço.

Invariavelmente, é necessário pisar sepulturas em diferentes graus de abandono, decoradas com maior ou menor riqueza, e onde se misturam azulejos multicores, cimento, tijolo, pedra e até ‘carcaças’ de munições antigas.

“Não importa pisar. Agora já não tem espaço”, explica Mesquita, contratado ainda no tempo da administração portuguesa, forçado a abandonar o cargo entre 1975, ano da invasão indonésia, e 1987, quando retomou as suas funções, que ainda hoje ocupa.

Até os dois ossuários “estão cheios”, motivo pelo qual há dois anos que Santa Cruz deixou de receber campas novas. Simplesmente não há espaço: até nos pequenos corredores entre campas se podem ver pedras a cobrir túmulos sem identificação que, pelo tamanho, poderiam ser de crianças.

Há muitas campas abandonadas, ou por famílias sem posses para as manter, ou porque simplesmente se trata de túmulos de quem já não tem família por perto, como é o caso de muitos dos estrangeiros ali enterrados: civis e militares portugueses, civis indonésios e até pelo menos um bebé vietnamita, Nguyen Chi Dyong, que pela identificação viveu apenas 4 dias em setembro de 2009.

Santa Cruz está cheio e não recebe funerais, mas continua a ser local de peregrinação para muitos timorenses e muitos estrangeiros, especialmente pelo seu papel na história da luta contra a ocupação indonésia.

O cemitério tornou-se famoso, cumpre-se no sábado 25 anos quando militares indonésios levaram a cabo o que ficaria conhecido como o massacre de Santa Cruz, um momento trágico de viragem na luta pela independência de Timor-Leste.

Mais de duas mil pessoas tinham-se dirigido a Santa Cruz para prestar homenagem ao jovem Sebastião Gomes, morto por elementos ligados às forças indonésias uns dias antes no bairro de Motael.

No cemitério, os militares indonésios abriram fogo sobre a multidão e provocaram a morte de 74 pessoas no local. Nos dias seguintes, mais de 120 jovens morreram no hospital ou em resultado da perseguição das forças ocupantes. O massacre foi filmado por Max Stahl e a atenção internacional sobre Timor-Leste mudou para sempre.

Ao fundo, à direita, a campa de Sebastião Gomes acaba por ser o principal ?símbolo’ do massacre de 1991. O jovem, que muitos consideram a primeira vítima do massacre, morreu menos de dois meses depois de cumprir 18 anos, a 28 de outubro.

Um busto seu decora a campa onde se amontoam flores multicores frescas e de plástico, entre duas sepulturas anónimas, uma de cimento decorada apenas com uma cruz ferrugenta de ferro, a outra sem campa e simplesmente coberta com pedras.

Os restos mortais de Sebastião Gomes estão na zona mais nova de um cemitério onde se entra por uma pequeno portão e uma calçada portuguesa paga por Portugal em 2001, quando se fizeram também algumas obras no muro exterior, algo recordado numa simples placa à direita do portão de entrada.

Mais à direita outra placa, em tétum, deixa o aviso de “higiene e saúde pública” da Administração de Díli que confirma que “Santa Cruz está oficialmente fechado” a funerais desde 27 de julho de 2014, ameaçando com “castigo” a quem ignorar esse aviso.

Sabe-se quando fechou mas há mais dúvidas sobre quando abriu.

Alberto Godinho, 76 anos, vive no bairro desde sempre mas admite não saber ao certo quando Santa Cruz abriu como cemitério, avançando o ano de 1804. Os coveiros avançam outras datas, já no século 20.

Inspecionar as campas ajuda em alguma da datação mas a data certa escapa, até porque há muitas campas sem identificação, como é o caso da mais imponente entre as mais antigas, em pedra, com vários degraus e uma campa, em formato de caixão, decorado com uma cruz talhada na pedra.

Mármore decora a campa mais antiga que a reportagem da Lusa encontrou, pelo menos entre as identificadas: a do alferes Francisco Duarte, “morto em combate em Atabai, no ataque das pedras de Bicari” a 12 de julho de 1899.

Algumas estão cercadas por correntes de ferro atadas a invólucros de munições de guerra e outras com decorações mais imponentes como a pequena torre de castelo no topo da campa de Leovigildo de Mascarenhas Ingles “e de um outro seu companheiro de armas”, que morreu a 05 de agosto de 1912 “ao serviço da pátria como chefe do Estado Maior do Comando Militar de Timor”.

Mascarenhas Inglês, que nasceu em 1859, é tido como um dos “descobridores de ocorrências de petróleo, nos termos da lei de minas em vigor”, segundo o historiado José Manuel Brandão.

Chegou a comprar em Inglaterra equipamento de perfuração que pretendia utilizar em propriedades que detinha em Rai Noco, no reino de Suai, mas acabou por falecer na Guerra de Manufahi, uma das maiores revoltas contra a administração portuguesa.

Ao seu lado uma campa que aparenta ser igualmente antiga, sem identificação e decorada, nos quatro cantos com uma munição de 140 mm de artilharia, colocada sobre quatro bolas de chumbo, já com vários séculos de idade.

Noutras as marcas estão a desaparecer com o tempo, como a do tenente-coronel José Eleutério da Rocha Vieira, que morreu num dia ilegível de outubro de 1962 e que jaze agora ao lado de um antigo marco geodésico, o número XXIV da Missão Geográfica de Timor de 1938.

Que como outros símbolos no cemitério de Santa Cruz também já está abandonado.

ASP // PJA