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Retorno ao livro único e nacionalização das crianças de três anos?
O homem que apoiou a criação de estruturas salazaristas de controlo do pensamento e da informação e iniciativas de supervisão moral da sociedade teve a deselegância de dizer a um deputado que não o autorizava a fazer juízos morais a seu respeito, porque o deputado não o conhecia de lado nenhum. O feudalismo deste raciocínio indigna qualquer cidadão livre e torna necessário lembrar a António Costa que toda a gente o conhece, e demasiadas vezes pelas piores razões.
António Costa reagiu à intervenção de Coelho Lima com a arrogância de quem não tolera que o contestem. Com a irritabilidade à flor da pele, tentou mostrar que, a quem manda, não se fazem perguntas incómodas. Porque não preciso da autorização dele para o considerar empenhado em impor chavões ideológicos sem fundamentação, endereço-lhe as perguntas em título e passo aos argumentos que as sustentam.
1. O Plano de Recuperação e Resiliência prevê gastar 73,5 milhões de euros para produzir recursos educativos digitais para todas as disciplinas do básico e secundário. Sucede que esses recursos já existem, para a maioria delas. É o que se retira da execução do Projeto-Piloto de Desmaterialização de Manuais Escolares (24 instituições, 187 turmas e 3755 alunos), coordenado pela Direção-Geral da Educação, com forte envolvimento dos grupos editoriais que, de há muito, vêm produzindo manuais e outros recursos digitais, de reconhecida qualidade. Com efeito, no quadro da monitorização do programa, designadamente na experiência que o próprio ME promoveu em nove escolas, em 2020/21, com manuais digitais já existentes, não vi reportada qualquer falta de recursos, que não a falta de meios informáticos (computadores e acesso à Net). Acresce que a Região Autónoma da Madeira já vai no terceiro ano de utilização total de manuais digitais (todos os alunos do 5º ano em 2019/20, todos os do 5º e 6º em 2020/21 e todos os do 5º, 6º e 7º anos em 2021/22) e também não identificou qualquer falta de recursos, assim como vários colégios com uso 100% digital. Qual é a ideia? Secar a edição privada e impor uma plataforma única, do Estado?
2. O Governo anunciou a intenção de tornar obrigatória a escolaridade a partir dos três anos. Se a medida colher, estaremos a estender ao pré- escolar o seu desígnio para a escola pública: ser um simples depósito de alunos durante o tempo de trabalho dos pais. Se a medida colher, estaremos a implodir a natureza intrínseca do pré-escolar, porque o sistema cederá, definitivamente, à pressão que já se verifica para antecipar aprendizagens formais, reguladas e tipificadas. Ora o aspecto mais importante da educação pré-escolar não é a preparação das crianças para os programas de ensino que as esperam no básico. É antes um tempo e um espaço para crescerem naturalmente, brincando, adquirirem capacidades neuro-motoras e sociais, envolvendo-se em actividades sensoriais, reguladoras de emoções, tanto mais relevantes quanto cada vez é mais escasso o tempo em que interagem com a respectiva família. Essas capacidades têm um valor intrínseco, por si só e para tudo o que virão a ser as crianças, bem mais importante que qualquer intencionalidade preparatória do ensino formal.
É desejável criar condições para que as cerca de 18 mil crianças, que estão fora do pré-escolar, o possam integrar? Obviamente que sim. Mas sem tornar isso obrigatório e com fundamento pedagógico, que não por razões assistencialistas.
Combate-se a pobreza apoiando as famílias, mas não retirando coercivamente os filhos às famílias. Dito de outro modo: o combate à pobreza e o apoio às famílias e à natalidade são vitais e necessários. Mas o direito das crianças ao desenvolvimento próprio de cada fase do seu crescimento não pode ser subalternizado em nome desse combate e desses apoios. As famílias devem ter a última palavra sobre os cuidados que preferem (ou podem) dar aos filhos. O Estado deve criar os recursos para acolher todos os que não permanecerem no seio da família. E, neste caso, falamos de todos, que não apenas a partir dos três anos. Ou estamos a fingir que ignoramos a insuficiência da rede pública de creches, situação dramática para os pais que trabalham e não podem pagar o acolhimento dos filhos na rede privada?
In “Público” de 13.10.21
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