recordemos NORBERTO ÁVILA

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A CASA DOS AÇORES EM LISBOA CONTINUA A DIVULGAR AUTORES AÇORIANOS
FOLHETIM
Norberto Ávila
FRENTE À CORTINA DE ENGANOS
Romance
Capítulo 7
Na esplanada, bem junto a uma floreira de argila
transbordante de petúnias e pelargónios, Claudite
Marlene pespegava nos seus postais as consabidas
trivialidades. E, quando em quando, interrompendo-se
na escrita (não isenta de pequeninos e grandíssimos
erros de ortografia), descontinuava também a leitura do
paciente Corujão, sem entender quanto isso lhe era
perturbador. Retenhamos apenas um exemplo:
“Dou o dito por não dito, Zebedeu.”
“E mais concretamente…? É que disseste tantas coisas!”
“Quando subimos todos ao 3.º andar, a dar uma
espreitadela ao quarto individual, lembras-te?, o Bruno ia
connosco.”
“Pois se íamos todos…”
“O Bruno levava ao ombro (tenho quase a certeza) o
saco de viagem azul escuro, aquele com que ele
desembarcou no aeroporto e trouxe à sua conta no táxi
aquático.”
E Corujão, emergindo da leitura acidentada, por isso
mesmo superficial: “O que eu não compreendo, Claudite,
é porque hás-de carregar e transportar essas
preocupações miudinhas. Que te interesses um
bocadinho pelas condições de alojamento concedidas ao
parzito vencedor do concurso, vá que não vá. Sempre é
um compromisso, uma despesa da TV Planeta.”
“Afinal tudo bem. Os nossos pombinhos ficam mesmo
juntos (assim é que é bonito) no quarto que lhes foi
reservado pela produção do programa! Pronto, já fico
mais descansada.”
“E eu volto a dizer-te, Claudite, que não entendo bem
esses teus pruridos. Que te importa a ti que eles durmam
juntos ou separados?, na varanda ou em cima do telhado?
Isso é lá com eles. Contanto que a TV Planeta não te falte
com o pagamento do serviço…”
E, vendo o seu Thomas Mann constantemente
salpicado de claudíticas baboseiras, tratou de o pôr a
salvo no esconderijo do bolso. Meteu-se então a estudar,
muito pela rama, um mapa de Veneza, para se aperceber
das distâncias entre os vários locais de visita mais ou
menos provável. O que poderia ser feito ou não a pé.
(Gostava muito de andar. O pior seria suportar o peso da
câmara…)
E aconteceu que Claudite Marlene, passeando o olhar
em redor, como se buscasse inspiração para o chorrilho
de lugares-comuns, viu que saíam do hotel os festejados
ganhadores do concurso Amor com Amor se Paga. E por
que motivo Marco e Sandra, necessariamente? Tenha-se
na estratégia romanesca do autor a boa resposta.
Na verdade (a verdade da ficção, entenda-se), Marco
descera do seu quarto e, passando pelo de Bruno e
Sandra, chamara por eles, por sinal já prontos para a
saída. Tanto que chegaram os três à recepção, indo para
remeter as chaves, lembrou-se Bruno de que lhe seria
muito conveniente telefonar para Lisboa, aos pais, pelo
que voltaria atrás, por um instante. E assim a namorada
e o respectivo irmão decidiram ir andando para a
esplanada. Mas sobre isto não diga o leitor a mínima
palavra à nebulosa Marlene, sob pena de produzir
naquela cabecinha escusadas e ridículas confusões.
A repórter, portanto, vendo surgir Marco e Sandra do
hotel: “Olha, lá vêm eles, os dois borrachinhos! Preparate para captar esta imagem enternecedora!”
Mas primeiro que Zebedeu se aprontasse já eles
vinham a meio caminho. De pronto lhes saiu ao encontro
a espalha-brasas, com o seu câmara, pedindo-lhes
voltassem a entrar no hotel e logo saíssem agarradinhos,
como grandes apaixonados que deveriam mostrar-se,
num exemplo indesmentível para as vastas audiências
televisivas.
“E já agora, se não se importam,” recomendou ela, “vão
trocando uns beijinhos ternurentos. Melhor ainda:
fogosos!”
“Haverá bombeiros nas redondezas?” gracejou Marco
Galisteu.
“Água não há-de faltar nesses canais!” argumentou a
Marlene.
Entraram no Marconi os pretensos amorosos, lado a
lado. Ressaíram abraçados, com manifesta firmeza.
Satisfizeram o pedido da apresentadora.
“Perfeito!” exclamou ela.
Só então compareceu Bruno Santiago. E Claudite
propôs aos dois rapazes e à rapariga que se sentassem
um instante na esplanada, a saborear uma bebida
qualquer. Até porque ela e o Corujão ainda não haviam
pago os seus cafés. Mas Bruno, sensato, sugeriu-lhes que
pagassem a despesa e, já que aquela tarde “não seria
infinita”, tratassem todos de alcançar o vaporetto, na
direção de San Marco.
Transpuseram então a Ponte do Rialto, que àquela
hora fervilhava de coloridas roupagens em apressado
movimento. Encaminharam-se para o embarcadouro e,
por sorte, bem poucos minutos tiveram de aguardar o
transporte pitoresco, no qual entraram com manifestos
sinais de boa disposição.
E, espontaneamente, foram-se acomodando sob o
toldado da proa, de modo a usufruirem o melhor possível
as preciosidades arquitectónicas ainda não apreciadas
em pormenor, em tão elevado número erguidas na
margem esquerda do Canal.
Ainda o autocarro aquático não havia desencostado e
já o Bruno chamava a atenção dos companheiros para a
frontaria clássica do Palazzo Manin-Dolfin, construído
por Jacopo Sansovino, em 1538-40. E que não
confundissem este arquitecto com o outro Sansovino
(André), émulo de Miguel Ângelo, que o próprio
Lourenço de Médicis recomendara ao nosso D. João II,
vindo a trabalhar para ele e para D. Manuel I uma boa
meia dúzia de anos, com o título de escultor e arquitecto
régio. (Referência um tanto ou quanto desnecessária
para quem, como eles, era menos versado nestas artes.)
O elegante edifício de pedra branca, sólida arcaria e altas
janelas, – acentuava ainda o cicerone –, estava ligado ao
último doge de Veneza, Ludovico Manin, falecido nos fins
do século XVIII.
Logo a seguir inculcava-se, impunha-se o Palácio
Bembo, gótico do século XV, um tanto ou quanto pesado
com seus cinco pisos, abundante em janelas de moldura
branca recortadas no rosa velho da parede. “Aqui nasceu
o eminente Cardeal Pietro Bembo, que foi amante de
Lucrécia Bórgia,” informou o Santiago.
“Ai o devasso malandreco!” soltou Claudite Marlene,
benzendo-se, fingidamente escandalizada.
Acrescentou então o jovem cicerone: “Favorito dos
Papas Leão X e ClementeVII, correspondia-se com o
nosso D. Manuel I e escreveu até uma História do Novo
Mundo Descoberto pelos Portugueses.”
“Ena!” espantou-se o Marco, sentando-se ao lado da
irmã. E a simplacheirona apresentadora de Amor com
Amor se Paga: “Isso, isso. Fica aí muito bem, junto da sua
namorada. E veja lá se vão agarradinhos, como convém
às imagens que Corujão irá colhendo de vez em quando,
hã?”
Tanto que viram o repórter erguer a câmara ao ombro,
prestes a reiniciar o trabalho, cumpriram os
pseudonamoradinhos as patarocas recomendações.
“Assim é que é bonito,” asseverou a Marlene. “Quero
que mostrem mesmo aquilo que são: dois apaixonados
portugueses numa cidade maravilhosa, nuns prelúdios
(muito antecipados, creio) de fogosa lua-de-mel! De vez
em quando… uma carícia, um beijinho. Pode ser?”
Zebedeu registou um beijo boca-a-boca, num plano
aproximado, e depois os dois Galisteus num plano mais
amplo, cujo fundo era o Palazzo Farsetti, agora ocupado
pelo Conselho Municipal.
“Este palácio tem mais de 800 anos,” disse Bruno, “mas
sofreu alterações ao longo do tempo, como bem se
percebe. Nele faleceu, nos meados do século XVI, o poeta
Pietro l’Aretino, muito famoso pela desmedida
licenciosidade.”
Claudite Marlene afitou a orelha. No entanto, como o
cicerone prosseguisse noutra via, limitou-se a gravar na
memória o espectro fugaz daquela arquitetura
luminosa.
“Aí funcionou também uma academia para jovens
artistas. Dentre as que a frequentaram recordarei
António Canova, o célebre escultor, esse que, conhecido
por muitas obras notáveis, ousou criar uma estátua nua
de Napoleão Bonaparte (diabos o levem, ao imperador!),
que bem pode ser vista num museu de Milão.”
“Napoleão? Nu?” procurou logo certificar-se a Marlene.
“Quem visse! E é que passámos ontem por Milão,
carago!”
“Claudite,” resmoneou Corujão, “não sejas libidinosa.”
“E o ‘instrumental’… é de mármore ou de bronze?”
tornou ela, tilintando pulseiras e braceletes.
“De bronze,” respondeu o rapaz. “Pelo que… de
qualquer forma… não funciona, minha boa amiga.” E,
receando tornar-se fastidioso, deixou passar sem
referência o Palácio Grimani, austero edifício
renascentista, com suas colunas coríntias e arcos
semicirculares. Quanto ao Palácio Mocenigo, já quase na
volta do Canal, chamou apenas a atenção para o facto de
existir uma placa em honra de Byron, que ali se hospedou
em mil oitocentos e tal. (1818 – confirma e certifica agora
o autor do romance , após compulsar uns apontamentos
sobre as andanças do poeta.)
Bruno deixou passar outrossim uns tantos exemplares
de excelente arquitectura mas que lhe não
proporcionariam os desejáveis, acessíveis comentários
culturais. Pelo que só muito depois, ficando já para trás a
Ponte da Accademia, se dignou selectar o Palácio
Barbaro, construção requintada do século XV, colorada
de ocre, com seus dois delicados balcões de pedra branca,
sobrepostos. “Ali teve o pintor Claude Monet, durante
não sei quanto tempo, o seu local de trabalho. E assim
também o romancista Henry James, onde escreveu The
Aspern Papers.”
Bastante mais abaixo apontou aquele que é um dos
mais distintos e luxuosos hotéis de Veneza: o Gritti
Palace, em que costumava instalar-se Ernest
Hemingway.
“Havemos de lá ir,” desejou o jovem Galisteu, profundo
admirador do laureado escritor norte-americano.
Tratava-se de um equilibrado edifício quatrocentista,
de cujas paredes de tijolo aparente ressaltava a pedra
branca das molduras góticas. E na ampla esplanada, ao
rés do Canal, toldada de azul e creme, recortavam-se
alguns hóspedes sentados às mesas, em ameno convívio.
Poucos metros sulcados na superfície turquesa daquelas
águas mansas, já o prestimoso guia turístico exclamava:
“Atenção, muita atenção! Aquele palacete, ContariniFasan de seu nome, é também do século XV ( e peço
desculpa se tenho de referir tantas vezes os séculos XV e
XVI). É tradicionalmente considerado como a ‘Casa de
Desdémona’. Para utilizar uma bem conhecida expressão
italiana, si non e vero e ben trovatto.” (E a luz do Sol
declinante dourava os rendilhados das varandas.) “Em
todo o caso, imaginemos numa gôndola o perverso Iago,
proclamando ao pai da donzela que a sedução de Otelo se
consumava, acentuando a frase preparatória: Look to
your house, your daughter, and your bags!”
Bruno mostrou ainda outro palácio da família
Giustinian. “E aí temos a sede da Bienal.
Nos séculos XVIII e XIX foi um hotel bem conceituado,
em que se hospedaram algumas celebridades: o inglês
William Turner, incansável a pintar Veneza e a divulgála, mas também Giuseppe Verdi e Marcel Proust.”
Ia o vaporetto chegando ao desembarcadouro de San
Marco Vallaresso quando o jovem cicerone apontou uma
rua que partia do cais: “Ali, naquela rua…” Mas logo se
arrependeu do encaminhamento da revelação. “Nada.
Isto há-de ser uma pequena surpresa, sobretudo para um
lisbonense do Alto de Santo Amaro.”
Ficaram os outros intrigados, na expectativa.
Passaram desta vez muito mais cerca daquele conjunto
arquitectónico deveras singular, com a Zeca (antiga Casa
da Moeda, segundo explicou Bruno), o Campanile, a
Basílica e o Palácio dos Doges. E, como o cicerone
insistisse para que se apeassem em San Zaccaria, que era
a próxima paragem, assim fizeram. Deambularam então
pela Riva degli Schiavoni (que Bruno traduziu por Cais
dos Esclavónios), recordando-se ele próprio, tão
intensamente, do quadro de William Turner sobre
aquele motivo, que vira há dois ou três anos no Museu
Britânico. E muito a propósito citou mesmo o pintor
referindo-se a Veneza. “Cito de memória,” disse o rapaz.
(Mas não o autor do romance, que se documentou a
respeito:) “…uma cidade branca e rosa, surgindo de um
mar de esmeralda e sob um céu de azul safira.”
Tinham ali em frente o Hotel Paganelli, pelo que
Claudite Marlene perguntou aos jovens acompanhantes
se queriam entrar um instante. Eles porém, mais por
sentirem falta de tempo que falta de curiosidade,
decidiram adiar essa pequena visita.
Depois, de um bloco de prédios de semelhante porte,
adossados ao Convento de San Zaccaria, Bruno apontou
aquele em que o supracitado Henry James completou o
romance Retrato duma Senhora, aí por volta de 1880. E
apreciaram a vigorosa estátua equestre de Vítor
Emanuel II, primeiro rei da Itália unificada, erguida
precisamente em face de outro hotel de muita nomeada:
o Londra Palace.
“Tchaikovsky, na sua permanência veneziana,”
explicou o jovem erudito, “ficou aqui instalado, gozando
desta vista encantadora sobre a ilha de San Giorgio
Maggiore.”
“Tal como nós, Corujão!” comentou a Marlene ‘DiaTriste’, passando-lhe o braço pelo ombro.
“Mas da estadia do russo,” respondeu o jovem
irreverente, “resultou a composição da Quarta
Sinfonia…”
Subiram e desceram então a Ponte del Vin, e
detiveram-se junto ao Palácio Dandolo, este do século
XIV, de amplo frontispício rosa, com uma belíssima
galeria de pedra floreada. “Este edifício,” revelou Bruno
Santiago, “é particularmente relevante para a história da
Música. Em Veneza foi aqui que se cantou a primeira
ópera. Tratava-se de Proserpina Rapita de Cláudio
Monteverdi, em 1630. Aliás, não sei se estarei a maçá-los
com estas miudezas…”
“Eu por mim,” respondeu Sandra (e Claudite pareceu descobrir-lhe algum embevecimento), “não me cansarei
de escutar-te.”
“Já agora,” acrescentou o providencial guia turístico,
convém lembrar que Monteverdi, mestre de capela de
São Marcos, viveu em Veneza os seus últimos anos, e para
os teatros públicos da cidade escreveu outras duas
óperas, belíssimas, ainda hoje do repertório universal: O
Regresso de Ulisses e A Coroação de Popeia.”
O excelente Palácio Dandolo tornara-se, em 1822, no
Hotel O Danielli, um dos mais famosos da Europa. “Por
aqui passaram,” prosseguiu Bruno, “escritores e artistas
de grande nome, como Balzac, Dickens, Proust, Cocteau,
Wagner e Debussy, por exemplo. Nos anos 30 do século
XIX, – no quarto nº 10, para ser mais preciso –,
desencadeou-se um grande escândalo.” (E Marlene afitou
a orelha.) “A romancista francesa George Sand, trintona
por essa altura, empreendera uma viagem à Itália
trazendo o amante de então a título de secretário.
Tratava-se do jovem poeta Alfred de Musset, meia dúzia
de anos mais novo. O que é certo é que, estando aqui
hospedados, Musset (autor de uma primeira comédia
que fora um fracasso: A Noite Veneziana) resvalou, dias
seguidos, nas orgias que o levaram ao leito, enfermo, mas
gravemente enfermo. Foi então que a doidivanas da
George Sand o abandonou e deitou a fugir com um
médico conhecido entretanto.”
“Talvez o que foi chamado a tratar do doente…?”
aventurou Marco Galisteu.
“Isso não sei,” respondeu o amigo.
Súbito avançou Claudite um passo destrambelhado.
“No quarto n.º 10, diz você?”
“Exacto. Assim rezam as crónicas desse tempo.”
E logo ela se lançou para a porta do Danielli e entrou,
expedita, num rompante. Olharam-se os outros
reciprocamente, perplexos com semelhante atitude. E ali
ficaram, aguardando.
Mas não tardou que perguntasse o Zebedeu Corujão:
“Essa tal George Sand foi a que se tornou amante de
Chopin, não foi?”
“Um ano depois, se tanto,” confirmou Santiago.
Passados uns 5 minutos reapareceu a bisbilhoteira,
acelerada, sacudindo pulseiras e braceletes: “Espreitei
pelo buraco da fechadura. Não se vislumbra grande coisa.
Uma doce penumbra. Mas pelo menos levo na retina um
ligeiro vestígio daquele amor desgraçado.”
***
Muito embora os tivessem por locais de visita
obrigatória nos dias seguintes, com mais vagar,
decidiram-se por uma olhadela à Praça de São Marcos e
à Basílica da mesma invocação. E, transitando pelos
Giardinetti Reali, o jovem cicerone encaminhava os
companheiros para a Calle Valaresso e, mais
concretamente, para o Harry’s Bar, que nisso consistia a
surpresa por certo agradável ao Marco Galisteu. “Tratase do primeiro Harry’s Bar, dos vários que agora se
dispersam por esse mundo. E este ganhou renome a
partir de 1931, ano da sua fundação, pela frequência com
que nele se foram mostrando figuras principescas e
chefes de estado, estrelas de cinema, músicos e escritores
consagrados.
Recordo os nomes de Aga Khan, Orson Welles, Chaplin,
Toscanini, Truman Capote, além de outro representante
muito destacado da Literatura Norte-Americana…”
Pouco depois, abancados à volta duma pequena mesa,
optaram todos por cocktail Bellini, por sugestão e a
convite de Bruno, que o classificou como um aperitivo de
vinho espumante do Véneto, misturado com sumo de
pêssego. E sobejamente louvada foi a refrescante bebida.
“Uma excelente ideia, Bruno, esta de nos trazeres
aqui,” reconheceu Marco.
“Sim? Pois ainda não sabes a razão desta primordial
investida no domínio dos bebestíveis regionais.”
Ainda que o bar fosse propriedade de um italiano, o
financiamento da iniciativa partira de um americano de
Boston, Harry Pickering de seu nome, informou o solícito
guia turístico. E acrescentou: “Agora o mais importante
do caso.” Fez uma pausa geradora de expectativa. Ingeriu
mais um golinho de aperitivo. “O bravo Ernest
Hemingway, que muitas vezes andava por aí a caçar na
laguna, era frequentador assíduo deste local.”
Marco Galisteu, por mais motivado quanto ao assunto,
procurava guardar na retina aquele quadro vivo de luz
atenuada. Mas não tardou que voltassem à Riva degli
Schiavoni, para o jantar, ao ar livre.
E, porque algum leitor mais acepipeiro e inclinado aos
prazeres da mesa não me desculparia se eu não
inventariasse aqui os pratos seleccionados pelos
convivas portugueses, darei breve notícia a tal respeito.
Para Sandra Galisteu escolhi (porque ao fim e ao cabo
será sempre o autor a ter esse privilégio) escolhi
medalhões de vitela com espargos e alcachofras. E para
o irmão? Esturjão cozinhado com sal grosso. Galinha-daguiné com molho de pimenta (dado ser condimento de
vocação afrodisíaca) para Bruno Santiago. Para Claudite
Marlene hesitei entre rodovalho com manteiga negra e
risotto de lagosta com alho-porro e cebolas. E acabei por
deixar-lhe o rodovalho. Resta-nos então saber a sorte de
Zebedeu Corujão. Pois esse… exultou sobremaneira ao
ver pousar na mesa o seu pato-bravo com fettuccine. Para
acompanhamento dos peixes trouxeram-lhes vinho
branco Gambellara; para coadjutor dos medalhões de
vitela e do pato-bravo, vinho tinto Bardolino. Quanto à
sobremesas, tiveram à disposição três especialidades:
crepes de framboesa, crema frita alla veneziana e
gelatina de uvas moscatel com molho de pêssego, e de
todas elas fizeram amistoso intercâmbio.
No decurso do jantar foi a conversação animada. E
Claudite, tendo ao lado um bloco-notas de papel cor-derosa, aproveitava a registar alguma sugestão de Bruno
para os dois dias seguintes, em que ela e Corujão ainda
permaneceriam em Veneza, porque os outros
companheiros, melhor afortunados, não partiriam antes
que se completasse a prevista estadia de uma semana.
“Já nos vai faltando uma pequena volta de gôndola pela
cidade,”considerou Santiago, deliciando-se com uma
garfadinha do oloroso crepe que a Sandra, do seu próprio
prato, lhe foi levar à boca.
(E a Marlene deteve-se uns segundos, avaliando o grau
de intimidade que entre ambos poderia haver.)
Mas o rapaz concluiu o seu raciocínio: “Uma passeata
de gôndola por esse labirinto de canais e canaletes é uma
experiência inesquecível. Poderíamos talvez começar
pela parte que ainda não vimos do Canal Grande, acima
da Ponte do Rialto.”
Concordou plenamente a apresentadora de Amor com
Amor de Paga. E pareceu-lhe que o grupo deveria seguir
em duas gôndolas, uma após outra. A saber: na primeira,
o parzinho de apaixonados, Marco e Sandra; na outra,
além do gentil cicerone, ela própria e Zebedeu Corujão,
que iria colhendo as imagens mais aliciantes de cada
circunstância, partindo dos referenciados protagonistas
e regressando a eles de quando em quando, para a
expressão de uma carícia, de um beijinho, etc. (Afincava
muito neste pormenor.)
Mas o Santiago pediu licença para divergir: “Não sei
qual a vantagem em ocuparmos duas gôndolas a não ser
a de fazer pagar à TV Planeta o dobro do que poderia
gastar. Porque a gôndola é mesmo um transporte de luxo,
para turistas endinheirados. Basta dizer que alguns
venezianos só a terão utilizado em dia de casamento, seu
ou de algum familiar.”
“Caramba! Será assim tão caro?” interrogou-se Marco,
e consumiu a última gota de Gambellara.
Zebedeu prestou então ao diálogo o seu pequeno
contributo: “Na verdade creio que vi, não sei se ontem se
hoje, pelo menos uma gôndola com 5 passageiros.”
“É o máximo que podem levar,” esclareceu Bruno.
“Se há conveniência em alugar duas gôndolas,
conforme justificou a Marlene… nenhum problema! Uma
delas seguirá a expensas de Marco Galisteu,” declarou o
próprio. “Melhor dizendo: a expensas e com o patrocínio
do papá Fortunato. As duas que fossem, Santo Deus!”
“De modo nenhum!” barafustou a das muitas pulseiras
e braceletes, “A TV Planeta deu-me rédea solta para estas
e quaisquer outras despesas!”
“Pois seja,” aceitou o Bruno. “Um pormenor apenas, mas
de certa importância. A gôndola dos namoradinhos irá
atrás da nossa e não o contrário. Para que o Corujão os
possa apanhar de frente, ou pelo menos a três quartos.”
Chegados a esta concordância, ocorreu a Bruno
recordar-lhes que Verona, imortalizada por Shakespeare
nos trágicos amores de Romeu e Julieta, era cidade
próxima e de fácil acesso, lugar sobejamente significativo
para um apontamento de reportagem.
Claudite Marlene delirou com a sugestão: “Bravo,
Santiago! Lá iremos nós então na quarta-feira. Depois de
amanhã, portanto.”
Satisfeita a conta do restaurante, Bruno, Sandra e
Marco acompanharam Claudite e Corujão ao Hotel
Paganelli. Por ser já um pouco tarde não quiseram subir.
E, prosseguindo a noite deveras agradável, decidiram-se
os três por um passeio a pé, de regresso ao Marconi.
“É longe?” perguntou a rapariga, lançando o braço, por
trás, à cintura do namorado verdadeiro.
“Meio quilómetro, talvez, ou pouco mais,” respondeu
ele retribuindo-lhe o gesto afetuoso.”
Cruzaram depois a Praça de São Marcos. (Fosse em
pleno dia, erguer-se-ia um bando de pombos, num
alvoroço de asas.) Foram cortando a direito para a
margem esquerda do Canal Grande. E então, passando
pelo Campo de San Bartolomeo, prestaram breve
homenagem à estátua do dramaturgo Carlo Goldoni,
veneziano dos mais ilustres. Súbito tiveram vista da
Ponte do Rialto, com a sua pedra branca suavizada pelas
luzes nocturnas. E, antes de a atravessarem pela segunda
vez, Bruno dispôs-se ainda a facilitar-lhes um mínimo de
informações sobre a história do monumento.
“É uma ponte muito original, como vêem. Além das
escaleiras junto às balaustradas, tem duas alas de
pavilhões com seus arcos de volta inteira, e nesses
pavilhões, abertas para a passagem central, haverá umas
duas dúzias de pequenas lojas comerciais. As pontes
anteriores, neste local, eram de madeira. Uma delas,
cheia de populares que assistiam ao casamento do
Marquês de Ferrara, em 1444, abateu estrondosamente,
fazendo muitas vítimas. Outra, posterior, com uma parte
levadiça, deixava passar os galeões de altos mastros. Mas
no século XVI foi aberto um concurso para o projecto de
construção duma ponte de pedra. A ele se apresentaram
artistas famosos: Miguel Ângelo, Andrea Palladio e
Jacopo Sansovino, por exemplo.”
“E quem foi o escolhido?” quis saber a Sandra.
“Nenhum dos três. (Isto porque os desaires também
acontecem aos grandes criadores da Humanidade.) O
projecto preferido foi o de António da Ponte. Esse que aí
vemos concretizado.”
Alcançado o Hotel Marconi, subiram os três ao
aposento destinado a Marco, onde Bruno recuperou o
seu saco azul de viagem. Convencionada a hora do
reencontro na manhã seguinte, desejaram-se boas noites
e bons sonhos. Só então o verdadeiro par de apaixonados
desceu ao seu quarto do piso imediatamente inferior.
Marco chegava entretanto à janela, para apreciar um
pouco o movimento nocturno das gôndolas, táxis
aquáticos e outras embarcações. Nas esplanadas da Riva
del Vin havia ainda algum convívio de naturais e
forasteiros. Reparou então na janela da louraça, cuja
presença fora naquela tarde apercebida. Nenhum traço
de luz. Andaria ainda por fora ou estaria já recolhida a
vale de lençóis.
(Aqui ficaria a matar o esboço de um vago sentimento
de solidão. Porém o autor não se mostra, nesta
circunstância, propenso a semelhantes lamechismos,
pelo menos em referência ao bravo Galisteu.)
Por sua vez Bruno e Sandra, no quarto duplo do 2.º
andar, contemplaram também o Canal Grande, as
esplanadas da Riva del Vin, a Ponte do Rialto. Mas foi
apenas um momento breve. Porque não tardaram a
deitar-se, e nos braços um do outro. Não para o descanso
incontestavelmente merecido: antes para os deleitosos
combates que o Amor lhes vinha preparando.
E o autor, por uma estratégia narrativa, neste quase
final de capítulo, retransfere a ação para a zona de San
Marco.
Zebedeu Corujão andará por ali perto, num bar
qualquer. Será talvez o mesmo da véspera? (Cujo nome
agora sabemos: Riviera, a dois passos do local de
hospedagem.) Ou talvez o Harry’s Bar…
E Claudite Marlene? Sozinha no seu quarto,
pesadamente esparramada na cama alta e lêveda,
tentando conciliar o sono, olhos persistentes na parede
que a separa do bebedanas Zebedeu. Num devaneio
romântico, quase uma quimera, acorria-lhe à imaginação
uma fascinante e irresistível hipótese: a de que fora bem
sucedida numa sedução a Marco Galisteu, que acabara
recebendo-a no seu quarto do Hotel Marconi. Ai, mas a
realidade era bem outra, e muito triste. Àquela hora
estaria ele na doce companhia de Sandra, “usurpadora”
(que já assim lhe chamava em pensamento). Ai, que
pretexto plausível poderia congeminar para subtraí-lo
momentaneamente aos afectos da felizarda? E então,
abandonando-se aos caprichos da fantasia, já admitia
que a Sandra pudesse ser atormentada por uma forte
enxaqueca, pelo que resolveria recolher ao Hotel
Marconi, ficando livre o jovem Galisteu, por uma hora ou
duas. Do que resultaria ele desviar-se um poucachinho
da sua rota amorosa, e aceitar subir por um instante
àquele mesmo quarto do Hotel Paganelli, em que ela, a
incandescente, a vulcânica Claudite Marlene, agora se
encontrava, ai, inconsolável.
E (porque o imaginar não custa dinheiro e está ao
alcance do mais simples mortal) já a lambisgóia admitia
outra hipótese, não menos lisonjeira. E era Marco que
evidenciava sinais de cansaço ou desencanto em relação
à Sandra. E daí aquela irresistível atracção pela sua
“Claudidite” (como já ela o ouvia sussurrear-lhe ao
ouvido).
Mas afinal, pobre insensata, porque haveria ela de
perder tempo com tão desmiolados pensamentos? Triste
realidade: Marco estava inevitavelmente nos braços da
sua querida Sandra.
Porém o devaneio prosseguia. E a vítima era agora o
inocente Bruno, que ela acreditava disponível por
inteiro. Assim, regressava ao voluptuoso cerimonial da
sedução, de que era oficiante o jovem cicerone, em cujos
braços ela não tardava a sentir-se aconchegada. E porque
ao jantar ele lhe havia contado (por insistência dela)
certas passagens da vida licenciosa de Pietro l’Aretino,
via-se, ao deslizar no sono, concubina favorita entre as
seis ou sete que o poeta mantinha no seu opulento
Palácio Farsetti.
Esvoaçante, entrava e saía pelas altas janelas, envolta
em veludos macios e rendas vaporosas. E fervilhava-lhe
no espírito a maneira subtil (mas não menos prática) de
como haveria de eliminar as companheiras suas
concorrentes…
Continua …
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