PAULA CABRAL, O SANTO CRISTO

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Artigo no CA de hoje.
Ato de fé…
Durante as transmissões de cobertura da procissão do Sr. Santo Cristo na RTP-Açores, cujos funcionários felicito pelo extraordinário serviço público, há um momento que me sensibilizou particularmente.
A imagem sai do seu percurso habitual. Desloca-se até à atual entrada do Lar de Idosos da Santa Casa da Misericórdia do antigo hospital e lá está um grupo de velhinhos à espera. Uns levantam-se e vêm mais à frente, olhando a imagem com olhos que derramam ternura, que só os olhos que já tanto viram sabem soltar, outros estão em cadeiras de rodas ou acamados, outros continuam sentados, tão aconchegados na sua paz e silêncio, como que dando por certo o encontro com Ele em breve. Um velhinho, sentado, tira o chapéu em sinal de respeito.
Lembrei-me do meu pai. Usava sempre boné e descobria a cabeça sempre que passava à nossa porta a imagem da nossa padroeira nos dias de festa. Lembro-me dos homens daquela geração que costumavam estar nos bancos do jardim da freguesia ou no adro da igreja e que tiravam o chapéu quando os sinos tocavam trindades.
É um gesto que se perdeu. As gerações atuais provavelmente não o conhecem nem conhecerão o repicar dos sinos pela hora das trindades e o que significa.
Emocionei-me com aquele gesto de humildade. Para muitos insignificante, mas, para aquele senhor, o sinal maior de reverência que ele pôde oferecer. Despojados de tudo, aqueles velhinhos só podem oferecer o seu sofrimento, as dores, as fragilidades, a sua esperança na aceitação daquela demora do dia que há de vir. E este é o maior sentido de grandeza que um ser humano pode ter. Esta esperança não é acessível a todos. Só àqueles que podem aceitá-la. É a fé.
Muitas vezes penso se a fé é uma capitulação. Não será quando ela nos faz transcender a nós próprios. Nem nunca será um estado de resignação ou mesmo de simples aceitação. É quando nos transcendemos, que nos rebelamos, que amamos para além das nossas forças, que nos exaltamos perante o belo, que ultrapassamos o limite dos nossos medos, que superamos a estreiteza dos nossos egos para integrar o de outros, que somos maiores. Mesmo quando Dele não temos consciência.
Aquele velhinho tirou o chapéu, como quem diz “aqui estou, faz de mim a Tua vontade”.
E é dessa vontade transcendente de que temos fome. Viu-se isso mesmo nas festas deste ano. Não foi mais um ano a somar a tantos em que a nossa festa maior dos Açores se realiza. Este é um ano marcado pela guerra na Europa, pelo fim da pandemia, pelas enormes dificuldades que inúmeras famílias enfrentam, pelas perplexidades de um mundo cada vez mais desorientado nas suas lideranças, na intolerância que se torna rotineira, pelas apreensões de um futuro incerto. Precisamos de espiritualidade na nossa vida. Foi o que concluí depois dos rios de gente que vi desfilar atrás da imagem de Cristo.
Não será esta a procura que a todos satisfaz, mas é uma procura necessária, que pode ser consubstanciada de tantas formas. Basta ter a humildade de oferecer a nossa vontade aos outros. Tirar o chapéu a quem passa na nossa vida. Como aqueles velhinhos que vi, aceitar a inevitável espera em grupo é uma lição de partilha.
Devíamos assimilá-la. Muitas vezes, seguimos em procissão na vida, mas a olhar para o umbigo.
Quantas vidas se perdem, quantas pessoas a precisar de ajuda, pobres, indigentes, doentes, solitários, tristes, deprimidos, desfasados do mundo, enquanto a procissão passa indiferente, estratificada, soberba na sua hierarquia, também ela desfasada da realidade.
O Campo de S. Francisco é, todos os dias, uma mácula de desumanidade às portas da Igreja.
A procissão precisa de, efetivamente, sair à rua e olhar com olhos de ternura toda uma miséria que se alastra nesta ilha.
“Eis o Homem” que vai aos ombros de outros homens que fingem não perceber nada disso.
Como para Antero, a âncora da Esperança é, por vezes, demasiado pesada para levarmos, bem sei. Como a cruz. Temos de vê-la primeiro. Olhá-la de frente, como o exemplo dos velhinhos que olham a imagem do Sr. Santo Cristo com a certeza do encontro.
Pedi-Lhe que nos proteja de nós próprios, fé uns nos outros, que nos dê vontade para emergir juntos.
Seremos uma só ilha sempiterna, se Contigo à proa.
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Gabriela Almeida

Amiga, não encontro adjetivos para este texto. Ultrapassa os habituais desta vida e entra num nível de grandiosidade tal que nos leva para a questão da existência divina e o nosso caminho por esta terra. Precisamos ter fé, mas é preciso fazermos a nos…

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Paula Cabral

Gabriela Almeida, obrigada, Gabi, pelo teu emocionante comentário! O teu pai era um homem grande na sua humildade! Procurei a tua mãe. Ela está bem?